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cascalenses

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A Porta da Ravessa no Redondo

João Aníbal Henriques, 25.05.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Parte integrante do antigo Castelo do Redondo, no Alentejo, a Porta da Ravessa é, mercê de uma acção de marketing associada a uma marca de vinhos, um dos mais conhecidos e procurados monumentos históricos daquela região.
 
Marcando inicialmente a linha da frente na defesa das fronteira nacionais, num sistema complexo que integrava ainda os castelos de Estremoz, Monsaraz e Portel, o Castelo do Redondo apresenta uma formulação espacial simples, promovendo a integração do núcleo urbano mais antigo da localidade. Tendo feito parte do conjunto de fortalezas recuperadas pelo Rei Dom Dinis no Século XIV, terá tido a sua origem em período muito mais recuado, provavelmente durante o domínio muçulmano , aproveitando uma possível estrutura defensiva de carácter mais precário que ali havia sido construída pelos romanos.
 
 
 
 
A estrutura actual, no entanto, mantendo basicamente inalterada a traça original, deverá bastante mais recente, reforçando a convicção generalizada de que a povoação que hoje temos resulta de um processo histórico marcado pela consolidação da nacionalidade já no final da Idade Média.
 
A Porta da Ravessa, localizada a Norte do recinto amuralhado, também é conhecida como Porta do Sol, definindo a protecção do eixo viário que ligava Évora a Badajoz. Nela se centrava, pelo enquadramento urbano de que é peça central, a estrutura administrativa da localidade, facto ainda hoje visível na presença das marcas da vara e do côvado que fomentam a celebridade deste monumento.
 
Expressão maior das potencialidades do Alentejo, a Porta da Ravessa é um bom exemplo da forma como o património histórico se afigura essencial na determinação da Identidade e da Cidadania, num processo mais amplo e pragmático que determina a condição essencial da própria democracia. 

A Anta da Pedra da Orca em Gouveia

João Aníbal Henriques, 22.05.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A Anta da Pedra da Orca, também conhecida na região como Dolmen do Rio Torto, é um dos mais importantes monumentos do Concelho de Gouveia. A definição estrutural da história da comunidade, marcada de forma evidente pela presença deste monumento megalítico, é bem visível na forma como o designativo do local se impõe como topónimo espacial, até porque, sendo sinónimos as palavras anta e orca, derivam ambos da referência expressa ao megalítico que dá corpo a este espaço, e que desde há muito foi marca perene no devir quotidiano da localidade.
 
Analisada pela primeira vez ainda em pleno Século XIX pelo ilustre investigador minhoto Martins Sarmento, que por ali deambulou em busca das origens primevas da portugalidade, a Anta da Pedra da Orca foi alvo de posteriores investigações sob a tutela de Maximiliano Apolinário, que ali encontrou vários vestígios arqueológicos de grande importância e que actualmente se podem ver no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa.
 
 
 
 
Composto basicamente por pontas de seta, fragmentos cerâmicos e restos de ossadas humanas, o espólio encontrado nesta anta reforça a sua datação como originária do final do período Neolítico, com cerca de 8000 anos, enquadrando-se tipologicamente nas estruturas comuns desse período existentes por toda a Península Ibérica. A sua estrutura pétrea, da qual subsistem alguns dos esteios que suportavam a grande pedra de fecho, estaria originalmente tapada por uma grande quantidade de terra e pequenas pedras que, configurando uma espécie de monte artificial, teria como principal função a de dissimular o monumento na paisagem, evitando assim a sua identificação e o eventual saque que dela resultasse.
 
A câmara, ou seja, o espaço central da anta, teria uma funcionalidade eminentemente funerária, servindo para a deposição dos restos mortais dos membros da comunidade local, num contexto simbólico que denota já uma alargada capacidade simbólica e que exigia necessariamente uma estruturação social complexa e bem organizada. O corredor de acesso, numa alusão simplificada ao canal vaginal feminino, supõe uma ligação perene entre à ritualidade ligada aos cultos da fertilidade, presumivelmente em linha com os cultos da Deusa-Mãe e da mitologia associada ao eterno feminino cujos vestígios surgem amiúde em outras antas espalhadas por todo o território nacional.
 
Nesta perspectiva, em que os cultos matriarcais prevalecem, assume especial importância a sua localização numa das encostas Nascentes da Serra da Estrela, simbolicamente conotada com essa vertente feminina e que determinou de forma evidente toda a simbólica religiosa que virá a caracterizar as comunidades humanas que ali se instalam em períodos subsequentes. É esta Deusa-Mãe, cujo útero úbere se enche de vida num processo mágico que o Homem de então desconhece, quem define a ligação simbólica mas pragmática que os povos desta região desenvolveram com a mitologia de origem feminina e que, depois da queda do Império Romana e da Cristianização do território peninsular, se vai paulatinamente adaptando aos novos uso e costumes, adoptando a essência mais profunda de uma associação que a aproxima da figura primeva da Mãe de Jesus, ou seja, de Nossa Senhora…
 
 
 
 
E, se a Rainha e Padroeira de Portugal é Nossa Senhora desde 1640, é certo também que a devoção mariana conflui no Portugal que hoje temos precisamente para o designativo de Nossa Senhora da Conceição ou seja, numa calara alusão ao carácter fértil da Mãe de Deus, recriando assim uma ponte simbólica entre aquela que se assume como a principal das linhas de pensamento religioso actual e estas primitivas expressões do sagrado nas comunidades. Em suma, é a mesma devoção sagrada, numa expressão de mistério que impõe a ultrapassagem das barreiras do tempo para, no âmbito de um contexto comum, juntar comunidade cujas vidas estão separadas por espaços de vários milhares de anos, mas que convergem na sua capacidade de identificar a divindade nos mesmos pressupostos e de para eles encaminhar a expressão mais profunda da sua Fé.
 
O regresso às origens, ao útero materno e ao mundo interno configurado pelo ninho escuro do ventre materno, transforma-se assim num processo de recondicionamento da própria vida. Quem nasce, necessariamente cresce, vive e morre, regressando então às suas origens num périplo de retrocesso à primitiva pureza original. A anta, de uma forma geral, e esta de Gouveia em particular, é assim o primeiro pilar estrutural de uma forma de pensamento que dará corpo àquilo que são hoje os alicerces da própria humanidade, ajudando a compreender a complexificação das relações entre os homens a partir da forma como eles expressam o seu entendimento pelos mistérios maiores da vida (ou das vidas) que vão vivendo.
 
No caso específico da Anta da Pedra da Orca, a ligação ancestral à estrela ainda aprofunda mais esse pressuposto. A estrela, simbolicamente expressando a forma da luz primordial e inacessível, ou seja, a candeia que acompanha o homem no se percurso final em direcção ao céu, é fundamentalmente um apelo à condição primordial da dependência da vida relativamente à mulher. Não há vida, nem trabalho, nem prosperidade sem a mágica sublime da concepção e do nascimento. E, da mesma maneira, nada disso existente sem a condicionante final da morte, expressão sublime da existência humana, exigindo assim sistemas complexificados de pensamento que ajudem a explicar e a perceber um fenómeno que, sendo transversal a todos os seres humanos, é por eles entendido de forma incipiente.
 
As ossadas humanas encontradas no espólio da Anta da Pedra da Orca são, por isso, os vestígios que restam das comunidades que certamente durante várias gerações utilizaram este monumento como espaço funerário, sendo que os restantes objectos votivos, principalmente as pontas de seta e os recipientes cerâmicos que ali foram descobertos, teriam uma funcionalidade efectiva na vida subsequente daqueles que ali eram depositados, num regresso ao colo materno, quando a morte de aproximava e a vida chegava ao seu fim definitivo e terreno. Os construtores neolíticos, ainda tão primitivos tecnicamente quando comparados com aqueles que lhes sucederam, tinham já nessa época a convicção profunda da dualidade espírito-corpo que actualmente define as religiões modernas, consignando a morte como um mero momento num percurso ou caminho mais longo e amplo em direcção à eternidade espiritual dos que morreram.
 
 
 
 
Por tudo isto, mais do o impacto maravilhoso que este monumento impõe sobre quem o visita, a Anta da Pedra da Orca, em Gouveia, representa de forma subtil a operação maior pela qual o homem passou em direcção à humanização que hoje temos. E, definindo de forma rigorosa a via que a isso levou, num percurso necessariamente longo e complexo, mostra-nos com exactidão o papel que nesse desiderato desempenhou a comunidade que habitava naquela região do actual território português.
 

 

É que, não sendo ainda o Portugal que hoje temos, é já o embrião totalmente perfeito dos Portugueses que hoje temos a capacidade de ser. 

O Castelo de Noudar em Barrancos

João Aníbal Henriques, 12.05.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Existem poucos monumentos em Portugal como o Castelo de Noudar, situado no Concelho de Barrancos, no Alentejo profundo. A sua situação geográfica, situada estrategicamente junto à raia Espanhola, associada a um cenário paisagístico profundamente impressivo e impactante, fazem deste recanto um dos mais encantados monumentos de Portugal.
 
Com uma história muito longa, que os vestígios arqueológicos comprovam ter-se iniciado ainda durante a Pré-História e durante o período da primeira ocupação humana no actual território português, o Castelo de Noudar que hoje vemos é o resultado de sucessivas campanhas de construção e reconstrução que remontam à ocupação romana e que os Visigodos e mais tarde os Muçulmanos, vieram a adaptar às suas necessidades.
 
 
 
 
Situado na confluência da ribeira de Múrtega e do Rio Ardila, numa elevação do terreno que lhe confere enorme visibilidade sobre o território envolventes, o castelo é uma espécie de sentinela avançada de Portugal, representando um papel essencial na definição do controle territorial nacional perante as constantes investidas do país vizinho.
 
Constantemente alvo de ataques e de contra-ataques, numa luta permanente pela independência, nunca foi fácil a via em Noudar. A vila nascida dentro das suas muralhas, detentora de um poder civil amplamente reconhecido pela Coroa Nacional, foi sempre reforçando a sua importância política, facto que explica a elevada taxa populacional que foi sempre apresentando ao longo dos seus muitos séculos de história.
 
 
 
 
Em termos urbanísticos, com a sua estrutura simples, Noudar configura-se em torno da sua torre de menagem e dos edifícios de cariz oficial que governavam o seu território. A cadeia, ainda hoje um ex-libris da velha povoação, assume especial importância sobre tudo num espaço no qual a força da Lei era imperativo maior na manutenção da qualidade de vida dos cidadãos, apesar da distância quase absurda que medeia entre aquele lugar e os principais pontos do poder administrativo Nacional.
 
A antiga alcáçova, aberta na zona mais central da antiga localidade, compõe um quadro romântico que se acentua pelo cenário de ruínas que actualmente caracteriza o povoado.
 
Quando Gonçalo Mendes da Maia, conhecido historicamente como o “lidador”, a conquistou em 1167, Noudar era uma povoação essencial para o reforço da autonomia nacional. O controle da estrada que ligava a sede episcopal em Beja com a centralidade política espanhola, fazia da povoação um dos pontos-chave na estratégia de definição territorial Cristã, recriando em seu torno um complexo sistema de rentabilização económica do espaço que não deixa indiferentes os principais poderes políticos daquela época. É, por isso, apetecível a ocupação de Noudar, assim se mantendo durante muitos séculos.
 
Em 1644, por ocasião da Guerra da Independência, o usurpador Espanhol manteve Noudar sobre a sua tutela. E a libertação da localidade, acontecida somente em 1715 no âmbito do Tratado de Utrecht, concretiza-se depois de uma acção de destruição massiva das principais estruturas da povoação. Este facto, aliado a uma pretensa epidemia de natureza desconhecida que afectou simultaneamente a população, terá determinado a extinção oficial da vetusta vila, facto que dará origem a um processo paulatino de despovoamento que se prolongará durante algumas décadas e do qual, por exclusão de partes, resulta o florescimento da vizinha Vila de Barrancos da qual este território faz actualmente parte.
 
 
 
 
Noudar é actualmente uma espécie de Castelo Encantado perdido nos alvores da modernidade Portuguesa. Desde o Século XVIII, quando a sua extinção administrativa aconteceu, não mais foi alvo de intervenções que ali tenham construído novas edificações. Mantém, por isso, os traços antigos de um espaço perdido no tempo, assumindo-se como ruína romântica de uma era longínqua cuja memória se foi perdendo ao longo dos tempos…
 
Da sua memória mais ancestral, provavelmente reforçada com a aura misteriosa que o seu abandono configurou, faz parte uma lenda maior do Alentejo marcante e profunda onde a mesma sua desenvolve. Ainda hoje, tantos séculos depois de se ter transformado numa imensa ruína perdida no tempo, há quem afirme convictamente que em certas noites do ano, quando o calor do estio se prolonga noite adentro, é possível ver, no topo da sua torre de menagem, a figura esbelta de uma cobra altiva que, com um toutiço na cabeça, vai dançando fantasmagoricamente à luz do luar!
 
E essa cobra, que a sabedoria popular diz que é uma princesa moura encantada, encaixa de forma perfeita na estória da lendária moura Salouquia cuja vida terminou de forma abrupta quando, no calor imenso das guerras da reconquista, se terá suicidado atirando-se para a morte do alto da torre do Castelo de Moura. A princesa encantada, maravilhosa na formulação que dela faz o imaginário popular, não morreu como era a sua vontade a fugir dos atacantes Cristãos que se preparavam para tomar a sua cidade. Por artes mágicas, ter-se-á transformado numa cobra ao tocar no chão e, dessa maneira, contornando a perniciosa forma da morte, fugiu rastejando através dos plainos férteis do Alentejo até Noudar, onde ainda hoje se prepara todas as noites para receber o seu noivo oriundo do território do Islão!
 
 
 
 
Qualquer que seja a verdade associada a esta história lendária, o certo é que o Castelo de Noudar, classificado como Monumento Nacional desde 1910, carrega consigo o encantamento que o deslumbre da sua monumentalidade deixa transparecer. As suas muralhas velhas, gemendo ano após ano as agruras terríveis do frio do Inverno e o calor insuportável do Verão alentejano, ainda ecoam de forma sublime as vozes avoengas dos que nos precederam, toldando com a sua aura de mistério alguma razão de que pudéssemos fazer uso quando as visitamos. A impressão causada pela antiga vila abandonada de Noudar é de tal forma grande, com o peso ancestral da sua História e das suas estórias, que se torna difícil (senão impossível) manter o discernimento do que é real naquela amálgama de emoções que o espaço transparece.
 
 
 
 
Visitar Noudar, agora que as intempéries determinaram um triste fim para as ruínas que subsistiram ao longo de tantos séculos, é recuar muitas centenas de anos no tempo, pisando de forma sensível as mesmas pedras tal como outrora outros fizeram e recuperando memórias de outras eras.
 
É, enfim, uma autêntica máquina do tempo que, com a magia própria que emana das coisas verdadeiras, representa uma experiência sensorial irrepetível, prenhe daquilo que enche a Alma de qualquer Português.