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Joaquim António Pereira Baraona (1930-2018)

João Aníbal Henriques, 30.03.20

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por João Aníbal Henriques
 
Agitador de massas, de consciências e de paradigmas, Joaquim António Pereira Baraona, nascido em Ourique, no Alentejo, no ano de 1930 e falecido em Cascais em 2018, foi uma das figuras mais marcantes e controversas da História recente de Portugal.
 
Enorme, na sua capacidade de compreender o Mundo e os Homens e de se entregar sem pejo na luta convicta pela justiça e pelos valores que vivia de forma justificante e plena, era simultaneamente humilde na relação com todos aqueles que ele sabia que viviam de acordo com os princípios que sempre nortearam a sua existência.
 
O Comendador Joaquim Baraona nunca deixou ninguém indiferente nos locais por onde passou. E, gerando de forma desconexa uma multiplicidade de amores e ódios que determinaram a sua passagem pela Terra, deixou atrás de si um rasto pujante e pleno de significado, que se multiplica e multiplicará durante séculos de forma exponencial na medida em que muito do que fez e defendeu teve, tem e terá repercussões duradouras na vida de muita gente e que se estenderá por várias gerações.
 
Logo desde muito jovem, quando na Vila de Ourique aprendia as primeiras letras, Joaquim Baraona deixou nota da sua diferença. 
 
Oriundo de uma família ligada ao pequeno comércio local e à exploração agrícola das terras, empenhou-se com muito sucesso na generalidade das poucas iniciativas de âmbito social que existiam naquela região nessa altura. Da Mocidade Portuguesa à Banda de Música Local, Baraona foi sempre figura de destaque nos locais por onde passou. E tal facto, contrariamente ao que dita a mediocridade da História, não resultou de grandes feitos e de enormes iniciativas, até porque a sua tenra idade nessa época impediria tal forma de estar e esse alcance normativo. Veio precisamente do facto de ele ser figura diferente no devir social e anímico da sua terra, tendo assim construído e reforçado a personalidade que o caracterizou até ao final da sua vida.
 

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Sempre preocupado com o bem-estar de quem o rodeava, e com a sua capacidade de contribuir para o sustento dos seus, logo desde muito jovem foi um empreendedor nato, tendo trabalhado arduamente na criação de riqueza em todos os locais por onde passava.
 
Na sua biografia “A Montanha” publicada quando comemorou o 70º aniversário, dizia-se que ainda em criança comprava fruta pelos pomares dos arredores de Ourique, que revendia com lucro no centro de vila, melhorando a vida de quem lhe comprava os seus produtos e também de quem, com esta sua capacidade empreendedora, acabava por ser contributo inestimável na venda desses produtos e no alargamento dos muito escassos mercados dessa época. E era uma criança somente quem assim pensava e fazia, num ímpeto de construir e de criar que nunca o largou até ao fim.
 
E nas terras do seu pai, cumprindo os afazeres que os progenitores lhe encomendavam de acompanhar os trabalhos agrícolas que gente assalariada era paga para realizar, nunca ninguém o viu de braços cruzados dando ordens conforme seria de esperar. Desde cedo, chegando sempre antes dos outros e sendo o último a largar o trabalho, campeava lado-a-lado com quem trabalhava, endurecendo as mãos e o espírito e reforçando de forma inequívoca os valores e os princípios que tão importantes serão nos episódios rocambolescos que deram forma à sua História pessoal.
 
Durante a pujança da sua juventude, Joaquim Baraona foi consubstanciando as suas potencialidades e amadurecendo o espírito, de uma forma tão sentida que, nas descrições que dele fazem os seus contemporâneos, surge envolvido por uma aura de concretizador sem par, que o há-de acompanhar ao longo dos anos. 
 
Quando se mudou para Cascais, num acto de entrega total e absoluta e de adopção assumida de um novo destino que escolheu para corporizar a vida adulta, fê-lo novamente de Alma e Coração, multiplicando de forma abissal a sua lógica de concretizadora e deixando um legado de tal forma impactante que as próximas gerações nunca o conseguirão esquecer.
 

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Na terra de adopção, enquanto consolidava a sua família recém constituída, Joaquim Baraona trabalhou afincadamente em vários projectos em simultâneo e, mais uma vez, os frutos do seu empenho foram de tal maneira fortes que alterou por completo a praxis social do seu local de residência.
 
Da Conservatória do Registo Predial, onde desempenhou funções desde muito novo mas sempre com uma capacidade de criar que fazia toda a diferença, até às instituições sociais da localidade, como a Paróquia de Cascais, a Santa Casa da Misericórdia e as muitas academias e tertúlias culturais que o Cascais de então ainda conseguia ter, Baraona recriou rotinas e dinâmicas, instituiu novos procedimentos e gerou projectos-sobre-projectos num ímpeto de criação de transformou as ditas instituições e as pessoas que com ele participavam nos seus muitos projectos.
 
E, para além dos grandes empreendimentos de vulto e circunstância que lhe granjearam o reconhecimento público e a notoriedade que se prolongou durante a vida inteira, Joaquim Baraona interessou-se, participou, empenhou-se e trabalhou de forma incessante em centenas de pequenos projectos pessoais, em ajudas a todos quantos lho pediam e no apoio desmesurado a incontáveis instituições de visibilidade nula, dos quais quase ninguém ouviu falar, dos quais não ganhava nenhuma fama, mas que alteraram de forma brutal a vida de muita gente…
 
Nesta sua faceta menos conhecida, na linha de benemérito e de benfeitor recatado, foi sempre o mais discreto dos intervenientes, zangando-se mesmo quando aqueles a quem ajudava, por entenderem que ao reconhecerem a sua ajuda estavam a reforçar a gratidão que sentiam por ele, tornavam públicos os actos de grande abnegação e humanismo que só ele tinha capacidade de empreender. 
 
Em termos da sua vida pública, são conhecidos e reconhecidos os projectos enormes em que se envolveu. Bairros sociais construídos de raiz; um novo, moderno e pujante hospital distrital pelo qual a vila ansiava há tantos anos; uma praça de toiros construída a partir da conjugação do trabalho empenhado e da dedicação comunitária de milhares de Cascalenses; a maternidade na qual nasceram sucessivas gerações de Cascalenses; jornais e revistas; colectividades; e tantas estátuas, monumentos, escolas, academias e associações que nasceram pela sua mão e com a ajuda dele…
 

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Não existem palavras no léxico Português onde caiba a obra e o legado do Comendador Joaquim Baraona. Porque ela, sendo reconhecidamente enorme na parte pública, era incomensuravelmente maior na componente que poucos tiveram a sorte de conhecer.
 
A grandiosidade do seu trabalho, trilhando caminhos quase sempre improváveis mas sempre marcados pelo ferro do bem-fazer, espraiaram-se por áreas das quais a sua obra transpira quotidianamente. Baraona foi erudito, escritor, diplomata, político, empresário, benfeitor e tantas outras coisas onde expressou a profundidade da sua excelência. 
 
E, quando foi agraciado pela Presidência da República com a condecoração máxima que existe para a área da benemerência, recebeu os louros do seu trabalho perante uma multidão que todos os dias, na sua vida pública e privada, vivia e usufruía dos resultados de tudo quanto ele estava a fazer.
 
Dias depois, quando a revolução aconteceu, foram muitos aqueles que correram de imediato a defendê-lo. E ao contrário do que seria expectável, até porque na vida de Joaquim Baraona nunca nada foi aquilo que seria de esperar que se supusesse acontecer, os meses seguintes àquela mudança destruturante na vida de Portugal, foram de continuidade e de luta constante para que o universo dos Portugueses não se desmoronasse e para salvar postos de trabalho, ensejo e projectos. Contou nessa altura com o apoio de quase todos os que estavam há muito tempo ao seu lado mas, na força maior da raiva e da inveja, outros houve que não foram capazes ou quiseram honrar os compromissos e as dívidas de vida que com eles haviam contraído e que, de forma fácil e com o apoio dos novos poderes emergentes, num registo de injustiça atroz e de um desprezo que Ser Humano algum merece sofrer, ousaram apunhalar a sua confiança e sacar da sua posse os instrumentos de que ele necessitava para se defender.
 
E Baraona surpreendeu novamente. 
 
Perseguido pelo bem que tinha feito e sofrendo injúrias e as mentiras que uns poucos usaram para toldar a rectidão da sua vida e a dedicação a tantos projectos, teve de salvar os filhos ainda menores e de encontrar um caminho alternativo que os salvaguardasse do sofrimento causado por motivos que ainda nem sequer tinham capacidade de perceber. Rumou para o Brasil, para onde seguiu praticamente sem nada, deixando para trás a casa, os bens pessoais, as memórias da sua vida e o legado dos seus pais. Levava consigo a Alma Grande de Português e a força avassaladora de quem tem a convicção de que esteja onde estiver a força da sua determinação impõe-se a qualquer vicissitude conjuntural que possa surgir.
 

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No Brasil repetiu tudo aquilo que fez durante a infância em Ourique e durante o tempo em que trabalhou em Cascais. Construiu projectos inovadores, arrasou com uma visão estratégica fulminante e mudou a face e o rumo do Estado do Espírito-Santo que o recebeu de forma esfusiante por nele ver uma perspectiva de futuro total e radicalmente diferente. Em Vitória moveu montanhas, criou um resort turístico de fama mundial e dirigiu uma operação sem precedentes de plantio de videiras e de produção do que ele chamava “o melhor do vinho Português”. Criou empregos, gerou riqueza, mudou uma vez mais a vida de muita gente.
 
No meio desse processo, quando o espectro melindroso dos efeitos da revolução começava a dissipar-se em terras de vera gente, foi contactado pelo novo Estado e, sondado acerca de um qualquer natural rancor que pudesse ter depois de tudo aquilo que de terrível lhe haviam feito em Portugal, de imediato se dispôs a abraçar a causa de sempre e, com Portugal no peito, logo se transformou no mais pujante e dinâmico pilar das pontes diplomáticas a estabelecer entre a democracia nascente e o potencialmente brilhante Brasil que estava então a renascer.
 
Contra tudo e contra todas as expectativas criadas por aqueles que miseravelmente e de forma cobarde o tinham atacado, geminou cidades e gerou irmãos, recriou vínculos e laços fraternos entre academias e associações sedeadas em ambos os lados do Atlântico, e fomentou negócios e dinâmicas empresariais que muito contribuíram para a afirmação de Portugal no Mundo com o denodo que só ele sabia ter. 
 
Foi generoso acima do que seria expectável. Foi generoso com aqueles que o apoiaram e com aqueles que o atacaram. Olhou sempre de cima para o lodo da sociedade e impôs-se pela ligeireza com que regia os ódios, as implicâncias, as maledicências e as invejas mesquinhas que a sociedade humana tem grande dificuldade de ultrapassar e esquecer. Soube, porque era figura maior do que os pequenos personagens com quem se cruzou na vida toda, virar a página e abraçar Portugal como causa sua, continuando, praticamente até ao último dia, a trabalhar a favor de toda a gente.
 
Quem teve a sorte de o conhecer bem recorda a sua boa-disposição, a educação primorosa, o saber estar e o saber fazer e, acima de tudo, o carácter implacável perante a ignomínia e a falsidade. Era irredutível em tudo o que dizia respeito ao desleixo, ao desinteresse à incúria e à falta de rigor. E isso gerou-lhe amores e ódios que foram marcantes ao longo de toda a vida.
 
Em Cascais, tudo transborda à obra de Joaquim Baraona. Ele está em cada canto e recanto, em cada esquina e nos pequenos e grandes pormenores das ruas, das casas e das instituições de Cascais. 
 

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Quando inaugurou aquele que seria o mais moderno e inovador hospital Português, numa Vila de Cascais que ansiava pelo mesmo há muitas décadas e que sempre se mostrou incapaz do o desenvolver, logo se deparou com outros projectos e ideias que marcaram a vida da comunidade e que mostram bem a fibra que sempre teve. 
 
Numa entrevista concedida em 1970 ao jornal “A Nossa Terra” o (demasiado) jovem Provedor Joaquim Baraona promete iniciar de imediato as obras de remodelação do velho hospital e dotá-lo da mais moderna tecnologia existente nessa época, num ímpeto de ousadia que não deixou indiferentes os poderes instituídos de então. Considerando que o que existia não era compatível com a vocação turística que Cascais vivia, Baraona menciona os avanços técnicos e científicos que a medicina havia alcançado e refere como exemplo uma máquina denominada “auto-analizer”, existente em vários hospitais Norte-Americanos que era considerada um dos mais revolucionários equipamentos do seu tempo. E, perante a estupefacção do repórter que o entrevistava, desde logo promete que o Hospital de Cascais seria o primeiro a tê-lo em Portugal!
 

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E assim o fez! Procedendo a angariações de fundos e à captação de investimentos, o jovem provedor consegue rapidamente obter os meios para proceder à reconstrução do hospital, para o equipar com as mais modernas tecnologias e com o dito “auto-analizer” que de imediato adquiriu nos Estados Unidos.
 
Mas levantava-se um problema prático que o previdente provedor não tinha conseguido prever: o hospital era demasiadamente pequeno e não existia espaço físico onde se pudesse colocar este equipamento!
 
Mas Joaquim Baraona não desistiu. Procurando em redor do hospital espaços vazios onde fosse possível construir as instalações para montar o tão desejado “auto-analizer” encontra ali mesmo ao lado, num terreno que pertencia ao Estado e que se encontrava ocupado por um edifício onde tinha funcionado há algum tempo um posto de apoio à tuberculose, a tão desejada solução para o seu problema. Mas surpreendentemente foi muito mais fácil encontrar os meios para adquirir o equipamento do que obter as autorizações governamentais para o instalar no edifício devoluto já existente…
 
E uma vez mais Joaquim Baraona não esmoreceu. Com o apoio unânime da Mesa Administrativa da Misericórdia, o jovem provedor dirigiu-se ao prédio devoluto, arrombou a porta oficialmente selada e iniciou de imediato a instalação do equipamento. Como seria de esperar, as vozes críticas de sempre logo se levantaram e as ameaças surgiram imediatamente. Mas Baraona sabia que o espaço continuava legitimamente no domínio público e assim concretizou sem mais atrasos o seu projecto que contribuiu de forma imediata para uma melhoria significativa dos serviços médicos do hospital e que foi responsável pela vida de milhares de Cascalenses. O novo hospital foi inaugurado em Abril de 1974, dias antes da revolução, com a presença do Presidente da República e das mais altas individualidades do Estado e da sociedade desta terra. 
 
Teria sido impossível com outra pessoa qualquer! Com outro provedor é mais do que certo que ainda hoje teríamos o “auto-analizer” por estrear e guardado numa arrecadação qualquer. Mas a coragem e a determinação de Joaquim Baraona foi essencial na defesa dos interesses legítimos de Cascais e dos Cascalenses, resultando numa benfeitoria que funcionou até 2010…
 

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Quando partiu em 2018, o Comendador Joaquim Baraona deixou atrás de si um vazio difícil (senão impossível) de preencher. Diz-se que não existe ninguém insubstituível e que o ritmo da vida impõe que alguns partam e deixem o espaço para outros fazerem e brilharem também. Mas isso não se aplica com Joaquim Baraona. O espaço que ficou, num registo que era só dele, vai ficar vazio para sempre. Infelizmente.
 
Na grandeza do seu desapego e na coragem única que usava para enfrentar os problemas, foi figura de tal forma grande que cobria com o manto do desinteresse os pequenos personagens que nem sequer o conseguiam perceber. 
 
Era o Senhor Comendador. Era pai, amigo e companheiro. Era mestre e professor. Era uma figura de tal maneira grande que qualquer homenagem que se lhe queira fazer ficará sempre aquém da realidade efectiva com que viveu.
 
Que descanse em paz. Porque por cá, ninguém o vai esquecer. 
 
Obrigado Comendador. 

A Aldeia Nova de Cascais no Alto da Bela Vista

João Aníbal Henriques, 21.03.20
 

 

 
O Cascais que conhecemos e em que hoje vivemos, resultante das grandes alterações havidas na vila a partir do último quartel do Século XIX quando o Rei Dom Luís escolheu este espaço como destino privilegiado de veraneio, esconde de forma literal todo um enquadramento histórico que deriva do processo natural de nascimento, crescimento e afirmação da urbe no contexto nacional. O Alto da Bela Vista é exemplo paradigmático desta situação, pois reúne em si mesmo um conjunto de memórias consubstanciadas em património urbano de primeira importância para Cascais, que ficou encoberto pela assimilação daquele espaço pelo perímetro histórico consolidado da vila que agora temos. Conhecer a génese histórico/urbanística do Alto da Bela Vista é, desta forma, um importante contributo para a recuperação da Memória Histórica e, por extensão, da Identidade Municipal de Cascais, reafirmando a capacidade de enquadramento dos projectos que surjam para aquele local e potenciando o seu valor enquanto factores consolidadores da cidadania local.

 

 
por João Aníbal Henriques 
 
 
 
 
A Génese do Espaço e as Memórias de Cascais
 
Ninguém sabe, de forma efectiva, onde Cascais nasceu. A urbe que hoje temos, tradicionalmente marcada pelo epíteto de “Vila de Reis e de Pescadores”, é o resultado efectivo de um enorme conjunto de acontecimentos que por aqui se desenvolveram ao longo dos séculos.
 
Sabendo-se que a ligação de Cascais ao mar é realidade inata à própria existência de aglomerados habitacionais neste espaço, o certo é que a ligação da vila aos seus ilustres pescadores nem sempre se desenhou a partir dos cenários que hoje conhecemos.
 
Nos primórdios da existência humana em Cascais, quando as primeiras comunidades deambulavam em busca de segurança e alimento, o espaço agora ocupado pela vila oferecia condições excepcionais de habitabilidade.
 
O mar, fonte praticamente inesgotável de alimentos, assegurava praticamente ao longo de todo o ano, o sustento necessário à sobrevivência humana. E, se o clima e a paisagem eram (e são cada vez mais) paradisíacos, faltava assegurar somente uma dessas componentes básicas que dão sustento a existência de comunidades humanas: o abrigo e a segurança perante ataques e intempéries.
 
Mas neste campo, possivelmente diferenciando Cascais das demais enseadas arenosas e desérticas que abundavam na região, possui no seu subsolo um conjunto de grutas e cavidades que, furando a pedra calcária que dá forma ao nosso solo, formam um vasto complexo de cavernas que apresentavam excelentes condições de acesso e habitabilidade.
 
 
 
 
Torna-se fácil perceber, desta maneira, a razão de ser de ter sido provavelmente nas actuais Grutas do Poço Velho, situadas no sopé do morro da Bela Vista, que Cascais nasceu efectivamente. E de, nesses tempos imemoriais do Paleolítico, terem sido ocupadas por caçadores-recolectores que naturalmente utilizavam o mar como sua fonte principal de alimentos.
 
Cascais nasceu ali, há dezenas de milhares de anos atrás, a partir do binómio que ainda corporiza o inconsciente colectivo da grande maioria dos Cascalenses: o Sol e o Mar, definindo na sua lógica de desenvolvimento urbano uma componente que vincula ambas as realidades perante a necessidade maior de oferecer qualidade de vida a todos os seres humanos que ali se instalaram e que escolheram este como o local ideal para viver.
 
Suficientemente afastadas do mar para poderem salvaguardar a segurança desejada mas, ao mesmo tempo, próximas o suficiente para serem acessíveis no labor quotidiano, foi no espaço das Grutas do Poço Velho que nasceram as primeiras comunidades piscatórias locais. Foi também ali, a partir dos pressupostos atrás elencados, que nasceram e se criaram as técnicas, as práticas e os conhecimentos que aproximam Cascais do mar até à actualidade.
 
A consolidação e a sedentarização destas primeiras comunidades humanas na génese do território Cascalense inicia então um processo de paulatina aproximação física ao mar e às praias. O desenvolvimento de conhecimentos na área das construções e a pacificação que resultou do processo de Neolitização, tornou possível virar costas aos abrigos naturais proporcionados pelas grutas e optar por formas de abrigo mais precárias e melhor posicionadas relativamente ao mar. Nascem assim os primeiro aglomerados pré-urbanos, possivelmente localizados em torno da Baía de Cascais, a partir da construção de casas feitas com materiais perecíveis e cujos vestígios não chegaram naturalmente até à actualidade.
 
Na época Romana, na qual a urbanidade já tinha atingido outros níveis de conhecimento, já encontramos vestígios arqueológicos de ocupação humana na actual zona do castelo, de cara voltada para o mar mas ainda assim aproveitando o desnível do terreno para assegurar alguma segurança suplementar (ver as Cetárias Romanas situadas na Rua Marques Leal Pancada), ao mesmo tempo que o espaço antigo das velhas grutas de outros tempos vai ficando olvidado.
 
 
 
 
 
Durante muitos séculos a vida de Cascais recentrou-se em volta da Baía. Era ali que se situavam as velhas cabanas abarracadas onde pernoitavam os pescadores que aqui chegavam, era também ali que se situavam as indústrias de salga e conserva de peixe que tornaram próspero o lugar.
 
Utilização e Usufruto
 
Mas como nada é linear na História de Cascais, importa perceber que a concentração de esforços e o assentamento das primeiras comunidades na actual zona junto ao mar, não representou necessariamente o abandono dos velhos espaços. Pelo contrário.
 
Nas Grutas do Poço Velho e, de forma muito progressiva nas encostas do morro da Bela Vista, foram ficando pequenas comunidades humanas que trabalhavam e rentabilizavam esses espaços.
 
A primeira notícia que temos desta realidade situa-se precisamente junto à entrada nas Grutas do Poço Velho numa das ruas que dá acesso às mesmas para quem vinha da zona saloia situada no triângulo verdejante e próspero que liga a Serra de Sintra ao mar. Na pequeníssima e quase desconhecida Capela de Nossa da Conceição de Porto Seguro, está ainda hoje uma placa votiva que refere que o templo e o hospício que lhe estava anexo foi construído em 1691por Paschoal Dias e Maria da Costa, originários de Oeiras e que ofereceram esse espaço aos Frades Capuchos  de Santa Cruz da Serra de Sintra.
 
E por ali, contrariamente ao que hoje se sabe, consolidou-se um núcleo de povoamento dependente do apoio social proporcionado pelo hospício e, concomitantemente, pelo amparo espiritual da invocação maior que Nossa Senhora da Conceição represente em Cascais e em Portugal…
 
 
 
 
De tal forma foi importante esse povoamento do local, demonstrando a documentação existente que houve efectivamente um afastamento real entre esse espaço e o da consolidação urbanística da Vila de Cascais e seus arrabaldes, que já no Século XIX, quando a Corte escolhe a vila como estância de veraneio, Francisco Marques Leal Pancada, um benemérito Cascalense também relacionado profissionalmente com a conservação do peixe, adquire a capela e o hospício e efectua amplas obras de conservação e restauro.
 
É importante não esquecer que foi precisamente Leal Pancada que, tempos depois, oferece à população de Cascais o terreno onde virá a ser construído o Hospital dos Condes de Castro Guimarães, situado mesmo em frente ao local onde se situava o Campo Santo e o cemitério principal da localidade.


 
 

A Vila Nova de Cascais, por ironia do destino localizada precisamente sobre o local onde Cascais nasceu, cresceu assim com uma dinâmica própria e a pujança de um local que detinha meios próprios de subsistência. Sendo um arrabalde da vila propriamente dita, preservou a sua identidade e consolidou a sua importância no crescimento e consolidação geral da vida Cascalense.
 
Memórias e Identidade
 
Na caracterização da unidade urbanística que resulta do devir histórico da Aldeia Nova de Cascais e do próprio Alto da Bela Vista, importa recuperar muita da informação presente no “Levantamento Exaustivo do Património Cascalense” (Fundação Cascais: 2000) onde se elencavam cada casa e cada detalhe com relevância para a compreensão deste importante núcleo Cascalense.


 
 
As peças que hoje restam, para além do aglomerado habitacional que foi sendo construído a partir da criação do velho hospício e da Capela de Porto Seguro, ambos peças-chave para compreender e contextualizar eventuais intervenções futuras a realizar naquele espaço, cingem-se tão somente aos detalhes arquitectónicos que sobreviveram às agruras impostas pelos novos tempos e pelas novas necessidades. As cantarias das portas e das janelas, muitas delas com decoração singela em memória de realidades que não existem já, foram reutilizadas em processos de demolição e reconstrução sucessivas que por ali se foram fazendo. E na divisão dos lotes, mesmo com as contrariedades impostas pelo emparcelamento, ainda é possível encontrar os vestígios daquele que foi o Cascais primordial de outros tempos, com as suas courelas e pequenas quintas, os velhos currais de gado e até as actividades de apoio à vida quotidiana no coração da vila.


 
 
Esta vertente “saloia” da Aldeia Nova, o local onde se produzia muito daquilo que se consumia na vila de então, foi-se consolidando com o desenvolvimento industrial. Em primeiro lugar, logo ali ao lado, a Real Fábrica de Lanifícios de Cascais e, mais adiante, a Fábrica de Conservas de Peixe que ajudou a definir a margem direita da ribeira. O hospício, que entretanto foi evoluindo para um verdadeiro hospital (e cujo edifício ainda lá se encontra transformado em espaço residencial), era destino eminente para os mais pobres e desfavorecidos da sociedade de então. Convergiriam para ali os que tinham menos posses e meios, sendo certo que pescadores e mareantes ali encontravam o consolo físico e espiritual para os males que os afectavam.
 
Será eventualmente por isso que, a título de explicação, se mantém a ligação perene entre o mar e este arrabalde “longínquo” do centro de Cascais onde, aliás, se situava o cemitério onde encontravam os pescadores o seu eterno descanso. Possivelmente por isso igualmente, e parecendo pôr em causa toda a lógica e discernimento, ali é construído em época mais recente o “Bairro de Nossa Senhora dos Navegantes” (vulgo Bairro dos Pescadores) que, até há muito pouco tempo era cenário de velhos barcos esventrados ou em operações de reconstrução, pousados em pequenos terrenos cheios de redes e apetrechos velhos de pesca.


 
 
Enquadramento Urbanístico
 
A apreciação de operações urbanísticas neste espaço, natural por sabermos que o envelhecimento do espaço determina necessariamente a sua recuperação, actualização e modernização, deveria ter em conta esta identidade própria do Alto da Bela Vista e a sua importância efectiva na definição daquilo que ainda hoje é Cascais.
 
O enquadramento dos futuros projectos nesta realidade, bem como a rentabilização das memórias patrimoniais que ali subsistem, ajuda a qualificar as intervenções e, desta forma, consolida a Identidade Municipal e promove a memória colectiva.
 
Interpretar desta maneira a realidade que temos em linha com as pré-existências dos diversos lugares, assegura aos que projectam nos mesmos condições ímpares para reforçarem igualmente a sua atractividade e, por extensão natural, o valor intrínseco dos empreendimentos e espaços.
 
Por esse motivo ganha redobrada importância a proposta de requalificação do edifício situado na Rua da Bela Vista, cuja Certidão Urbanística foi discutida na última reunião de Câmara. Toda e qualquer intervenção efectuada no âmbito do contexto urbanístico e patrimonial que seja sinónimo de melhoria da qualidade dos edifícios, e que o faça sem desvirtuar o seu enquadramento genérico na realidade local, é contributo decisivo para o reforço da vocação turística municipal, sendo que esta, conforme está plasmado no próprio Plano Director Municipal, deverá ser resultando de um acréscimo na identidade dos moradores e frequentadores do local.


 
 
O potencial educativo e pedagógico do Alto da Bela Vista, tal como acontece em tantos outros cantos e recantos de Cascais, é imenso. É ali que reside a possibilidade de as novas gerações criarem laços e vínculos perenes com quem os antecedeu na ocupação deste espaço. Só assim, com esses laços bem evidentes e com uma abordagem politicamente consciente desta importância, será possível fazer crescer Cascais com qualidade, motivando os equilíbrios sociais com as necessidades de prosperidade e empreendedorismo, e zelando por um reforço efectivo da Identidade Municipal, essencial para uma cidadania consciente e, em última instância, para uma democracia saudável.


 
 
Conclusão
 
A Aldeia Nova de Cascais é uma realidade desconhecida de quase toda a gente. E esse facto, associado aos naturais processos de rejuvenescimento dos nossos espaços habitacionais consolidados, acaba por fazer perder potencialidades que um conhecimento enquadratório daquela realidade almejaria alcançar.
 
Compreender a razão de ser daquele espaço, os motivos que levaram a que tivesse chegado até nós com as características que nele reconhecemos e as potencialidades imensas que possui para a definição da qualidade que todos desejemos para Cascais, ajuda os técnicos que formulam e apreciam os projectos para aquele lugar, os professores e educadores das escolas locais, os políticos que decidem os destinos da nossa terra, e até o cidadão comum que pretende construir ali (ou reconstruir) a sua casa, a tomar as decisões que melhor correspondem aos interesses de todos os Cascalenses.
 
Porque sem consciência de quem somos, de onde viemos e para onde vamos, as discussões acabam naturalmente por perder-se nos interesses mais mesquinhos e imediatos, delas resultando pouco mais do que uma pequena peça na engrenagem imensa com que o sistema político que temos nos constrange.
 
 
Porque como dizia Pedro Falcão no seu “Cascais Menino”, este é “o Cascais com que sonhamos”.