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cascalenses

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A Igreja de Santa Maria da Graça em Setúbal

João Aníbal Henriques, 24.02.22
 

por João Aníbal Henriques

A cidade de Setúbal, com a sua origem provavelmente pré-histórica, tem uma relação directa e permanente com o Rio Sado. O alimento das suas gentes, bem como a prodigalidade dos seus engenhos, ofereciam condições extraordinárias de vida aos primeiros assentamentos humanos que escolheram este local para viver. Por esse motivo, e também porque o bem-estar geral providenciado pela abundância de recursos não trazia grandes exigências a quem ali morava, o burgo foi crescendo ao sabor das necessidades quotidianas, sem grande ensejo de uma pujança que de nada servia nem acrescentava absolutamente nada ao esforço permanente de angariação de sustento que determinava as leis da vida.

A invocação a Nossa Senhora das Graças, provavelmente de origem muito mais recente, é ela própria tradutora desta ligação milenar que determina a intercessão da Virgem Maria no dia-a-dia dos habitantes. Na sua faceta de defensora dos seus filhos humanos, a Senhora das Graças é a personificação adaptada da Imaculada Conceição de Maria, a Nossa Senhora da Conceição que é simultaneamente Protectora e Rainha de Portugal. Concebida sem pecado, a futura Mãe de Deus – e por extensão mãe divina de todos os homens – faz parte da matriz identitária da grande maioria das cidades portuguesas, carregando consigo um laivo de Fé que é transversal e que, até em última instância, justifica a independência política e o sucesso tantas vezes alcançado por Portugal.

 

 

No caso de Setúbal, em particular, a actual Igreja de Santa Maria da Graça é o resultado da reconstrução concretizada no Século XVI com traço do Arquitecto António Rodrigues. A magnanimidade do projecto, assente na força telúrica emprestada à sua fachada maneirista pelas duas enormes torres sineiras, é demonstrativa da pujança que tinha a sociedade sadina durante esse período áureo dos descobrimentos portugueses, nos quais o porto de Setúbal, bem como a linha de navegabilidade que o Sado definia e que era essencial para a ligação aos mananciais agrícolas daquela zona do Alentejo (veja-se p.e. a História da Herdade da Palma em Alcácer do Sal), acabavam por ser determinantes na capacidade de produzir e de comercializar que eram essenciais para suportar estruturalmente a estrutura dinâmica das próprias descobertas.

Digna de uma nota especial, não só pelo impacto que tem neste projecto, mas também porque simbolicamente ajuda a perceber essa situação verdadeiramente extraordinária no contexto do que foi Setúbal durante esse período virtuoso da História de Portugal, é a intervenção de Mestre José Rodrigues Ramalho na criação da Capela-Mor da igreja, em talha dourada, que em 1697 foi acrescentada ao templo original.

 

 

Nas suas origens documentalmente mais antigas, até porque provavelmente existirão pré-existências neste espaço que permitirão estender a sacralidade do lugar a mais alguns séculos, a igreja original que antecedeu estruturalmente a actual terá sido sagrada no dia de Nossa Senhora da Assunção no ano de 1245.

Em plena Idade Média, terá sido a Igreja de Santa Maria da Graça a definir o perímetro urbanístico da cidade, dela dependendo o surgimento dos primeiros bairros que estenderão a ocupação urbana até ao local onde actualmente se encontra a Praça Bocage, a Poente deste núcleo inicial.

Magnífica no seu enquadramento simbólico, e eminentemente tradutora da significação mais profunda da Cidade de Setúbal no contexto nacional, a Igreja de Santa Maria da Graça é hoje um testemunho muito importante que nos permite compreender melhor a interacção existente entre os recursos disponíveis para uma determinada comunidade humana e a consolidação da sua estruturação identitária a partir de uma concepção do sagrado que lhe define os contornos mais profundos.

As sombras impostas à sua volta pela altura determinada pelas suas torres, ainda hoje significa para os setubalenses a cobertura provida pelo manto de Nossa Senhora enquanto padroeira maior da cidade e de Portugal.  

 

O Edifício dos SMAS de Cascais

João Aníbal Henriques, 17.02.22

 

por João Aníbal Henriques

Actualmente devoluto, depois de em 2012 os serviços das Águas de Cascais terem mudado a sua sede para a Aldeia de Juso, o edifício dos SMAS, situado na Avenida do Ultramar, mesmo no coração da Vila de Cascais, é um dos mais interessantes exemplos da forma como a arquitectura e o urbanismo acompanharam o pujante desenvolvimento do concelho ao longo de toda a primeira metade do Século XX.

 

 

A escolha do arquitecto que o projectou denota igualmente a forma intencional como a expressão urbana de Cascais foi adaptada para incorporar os valores que o Estado havia definido como essenciais para a definição do novo Portugal. Joaquim Ferreira (1911-1966), um dos mais eminentes membros das Belas Artes, defendia uma cisão programática com as perspectivas arquitectónicas vigentes, criticando a visão paradigmática da denominada “Casas Portuguesa” e assumindo-se frontalmente contrário àquilo que ele pragmaticamente chama o “Português Suave”.

E se em termos formais tudo é novo na obra de Joaquim Ferreira, em linha com o modernismo que transversalmente alterou a praxis das cidades portuguesas em meados do século passado, o edifício dos SMAS de Cascais apresenta inovações igualmente ao nível das técnicas e dos materiais utilizados, recriando um palco de linearidade futurista onde a experimentação acabou por se transformar numa espécie de escola com resultados que se espraiam até à actualidade.

 

 

O projecto original deste edifício, assente na eminente funcionalidade programática para o qual ele foi pensado, repercute a linearidade da abordagem que Joaquim Ferreira já havia intentado no projecto do carismático edifício do Cinema São José, junto à Ribeira das Vinhas, que veio substituir as instalações novecentistas da antiga fábrica de conservas de Cascais.

O anteprojecto do edifício, datado de 1961, havia sido previamente aprovado pelo Secretário de Estado das Obras Públicas e foi inaugurado, com pompa e muita circunstância, em 1965, de forma integrada no importante programa comemorativo do 600º aniversário da autonomia de Cascais. A partir dessa altura, com o alto patrocínio das mais altas entidades estatais, torna-se o símbolo funcional de um Cascais assente na visão progressista e moderna que há-de marcar o cunho do município durante mais de quarenta anos.

 

 

Depois deste edifício, quase todas as obras públicas concretizadas em Cascais seguiram este exemplo de maturação desta linha arquitectónica despojada de revivalismos, reformatando a imagem da vila e dotando-a de renovadas condições para assumir o carácter cosmopolita muito marcante que tornou possível uma onda de progresso ímpar afectando de forma positiva e linear quase todas as áreas do território municipal.

Os homens de Cascais que governaram a terra nesta época eram gente empreendedora, com uma capacidade de visão estratégica extraordinária e uma abertura de espírito sagaz que lhes permitiu alcançar um grau de sucesso nunca antes visto no concelho. E o Edifício dos SMAS, respondendo arquitectonicamente a esse desafio, serviu como comprovativo dessa situação perante a sociedade e a generalidade dos portugueses.

A Igreja dos Navegantes em Cascais

João Aníbal Henriques, 02.02.22
 

por João Aníbal Henriques

Marcante na paisagem cénica de Cascais, com os seus altivos torreões a imporem-se na paisagem sobre o caso antigo da vila, a Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes (também designada como de São Pedro Gonçalves Telmo ou de Nossa Senhora dos Prazeres) é um dos mais enigmáticos segredos de Cascais.

Nada se sabendo de certo sobre a sua origem, presume-se que a Igreja dos Navegantes tenha sido construída algures no Século XVI por iniciativa dos homens do mar de Cascais. Isto mesmo é alegado por eles quando, nessa mesma altura, através dos seus representantes legais, apelam directamente a Roma e ao Papa queixando-se dos abusos que sofriam por parte da Igreja local.

 

 

Diziam eles que as multas de que eram alvo, e que derivavam das faltas às presenças obrigatórias nas Missas e ao trabalho que faziam ao Domingo, se deviam à necessidade efectiva de angariarem o seu sustento. E que, em contrapartida, haviam construído a suas custas dois conventos, um no Estoril e outro em Cascais, um hospício e duas igrejas (a de Nossa Senhora dos Prazeres e a da Ressurreição de Cristo que caiu com o Terramoto de 1755).

Terá sido este contacto, aliás, o que motivou o Papa Paulo V a conceder a autorização para se pescar aos Domingos e nos dias santos, na perspectiva de que os lucros auferidos nessas ocasiões se destinavam exclusivamente à construção das igrejas e a consolidar o processo de canonização de Frei Pedro Gonçalves Telmo, futuro padroeiro dos pescadores de Cascais.

A única certeza que existe é que a igreja sofreu uma intervenção que visou a sua reconstrução em 1729, conforme o atesta a data dos seus painéis de azulejos, estando ainda in completa em 1755 quando o terramoto novamente lhe abalou os alicerces.

 

 

Em termos estéticos, a Igreja dos Navegantes  que agora temos,  que resultou do segundo processo reconstrutivo iniciado em finais do Século XVIII, e que só foi concluído em 1942 quando foram colocados os dois torreões, situa-se na transição entre o período maneirista e proto-barroco, apresentando como ponto de sublinhado interesse a sua rara planta oitravada que Raquel Henriques da Silva, a grande especialista nesta matéria, considera que “exemplifica o gosto de inovação formal característico daquele período”.

O facto de ter ficado inacabada, sem os detalhes decorativos e estéticos característicos do barroco cascalense, sublinham o seu interesse que, de acordo com a historiadora já referida, depende muito mais do jogo de luz que a sua formulação arquitectónica propicia, do que propriamente do formalismo regular que caracteriza outros monumentos idênticos desta mesma época.

 

 

O seu carácter diferenciador, provavelmente resultante da influência dos frades de Nossa Senhora da Piedade, que orientaram os homens do mar no seu projecto de erguer a igreja, transforma a Igreja dos navegantes num dos mais preciosos monumentos do Património religioso Cascalense.