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O Hipódromo Municipal Manuel Possolo em Cascais

João Aníbal Henriques, 25.06.25

 

por João Aníbal Henriques

Sendo peça essencial na determinação da memória identitária de Cascais, o Hipódromo Manuel Possolo representa o culminar de uma história muito longa de ligação de Cascais aos cavalos e ao hipismo que porventura remonta há mais de 2000 anos.

De facto, datado dos primeiros anos da Era Cristã, foi encontrada na Villa Romana de Freiria uma pedra de um vetusto anel representando uma biga, ou seja, um pequeno veículo puxado por dois cavalos destinado a grandes velocidades e a competições hípicas. E esta história, perdida nos anais da história cascalense, terá sido o arranque de um processo longo que culminou, em 1936, com a concretização do velho sonho de Manuel Possolo de criação de um equipamento moderno que pudesse albergar com dignidade os muitos concursos hípicos que nessa altura e por sua direcção aconteciam na vila.

 

 

Não existindo muita documentação que nos ateste os passos que levaram à construção do hipódromo, diz-nos o ilustre historiador cascalense José d’Encarnação que o primeiro passo foi dado por iniciativa do Visconde dos Olivais. A pedido de José Florindo d’Oliveira e de Manuel Possolo, que tinham fundado a Sociedade Propaganda de Cascais alguns anos antes, o ilustre benemérito ofereceu à nova instituição uma parte dos seus terrenos situados na zona do Parque do Gandarinha para ali se realizarem as provas hípicas que aquela instituição realizava precariamente no fosso da Cidadela.

Pouco tempo depois, mercê da necessidade de aumentar o espaço e começar a construção das bancadas situadas sobre o braço da Ribeira dos Mochos que atravessa a propriedade da Família Avillez, recebeu a Sociedade Propaganda mais um pedaço de terreno para anexar ao novo hipódromo que foi oferecido à Câmara Municipal de Cascais como contrapartida pelo extraordinário projecto de urbanização que a Família Espírito-Santo pretendia fazer entre as Casas do Gandarinha e o cruzeiro que lhes pertencia nos terrenos existentes a Oeste da Boca do Inferno.

 

 

O terceiro pedaço de terreno anexado ao novo equipamento foi, de acordo com o apontamento da autoria do já mencionado José d’Encarnação, adquirido pela câmara à Firma “Fomento Urbano”, pelo valor de 536.800$00 e com uma área total de 3984 metros quadrados. Nesse espaço, situado a Poente do relvado, construiu-se o picadeiro e ali se instalavam as boxes que guardavam os cavalos trazidos das mais variadas partes do País e do Mundo quando aqui se realizavam os grandes concursos hípicos que animaram Cascais durante muito tempo.

Por fim, sem que se perceba muito bem como é que o processo administrativo se deu, a Câmara Municipal anexou ao equipamento um terreno de semeadura que acompanhava as margens da ribeira e que é hoje o relvado principal do hipódromo. Estávamos em 1960 quando a edilidade procedeu ao registo dessa parcela, atribuindo-lhe um valor matricial de 940.000$00. Aqui, durante muitos anos e por iniciativa da Sociedade Propaganda, realizavam-se vários eventos hípicos e taurinos, utilizando-se para tal uma estrutura amovível de madeira que era montada e desmontada para cada um dos eventos.

O terreno situado em frente ao Clube da Parada, onde actualmente se encontra o parque de estacionamento, era desde sempre propriedade da Câmara Municipal, tendo servido durante muitos anos para a construção de uma das mais famosas praças de touros de Cascais, pela qual passaram os grandes nomes da tauromaquia nacional e, nas bancadas, as mais ilustres personalidades do reino, a começar pela Família Real, sempre que estava a gozar o seu período de veraneio estival na nossa terra. Como refere Manuel Eugénio Fernandes da Silva, no seu livro sobre as touradas em Cascais, esta praça de touros foi construída em alvenaria, tendo sido posteriormente demolida para a construção da Monumental de Cascais, situada no Bairro do Rosário, e criando o espaço necessário para a construção do mítico Pavilhão do Dramático.

 

 

O espaço sobejante, ou seja, o pedaço de terreno que existia nas traseiras do ringue de hóquei do Dramático de Cascais, e que confrontava com o equipamento hípico, foi nessa altura alugado pela câmara à Sociedade Propaganda de Cascais por 500$00 mensais, de forma a poder ser utilizado como campo de aquecimento para os cavalos que disputavam os concursos hípicos realizados no hipódromo.

Esta amálgama de histórias e de variados espaços que confluem para a criação do Hipódromo de Cascais, resultam em primeira instância do trabalho realizado por Manuel Possolo que, sem descanso, nunca desistiu de empreender todos os contactos, pressões e explicações para que o poder político vigente apoiasse as pretensões de Cascais a ter um hipódromo ao nível do melhor que existia no mundo hípico de então. Mas, sem grandes fundamentos documentais, foram necessários os esforços de todos para que fosse possível levar a bom porto o cumprimento deste comum desiderato.

 

 

Em 1993, perante as mudanças que se avizinhavam nos equilíbrios políticos municipais, a edilidade resolve, sob proposta do Vereador João Reixa, regularizar toda a situação assinando um protocolo global com a Sociedade Propaganda de Cascais que, com a duração de 50 anos a contar dessa data, garantisse que o equipamento continuaria incólume e a desenvolver as suas funções hípicas. O preço simbólico de renda de 1.000$00 por ano, pretendia, de acordo com os pressupostos da proposta que foi aprovada em reunião de câmara, reconhecer o trabalho que a Sociedade Propaganda de Cascais vinha fazendo há muitas décadas na área do desporto hípico municipal. E assim, esta insigne instituição assume o encargo de zelar e manter o hipódromo e de o rentabilizar desportivamente até 2043, estando previsto igualmente a renovação automática consecutiva por períodos de 10 anos depois dessa data.

Profundamente marcado pelas memórias de muitas dezenas de concursos hípicos que ali se realizaram durante muitas décadas, o Hipódromo de Cascais carrega consigo a responsabilidade de manter viva a recordação de Manuel Possolo. O ilustre cascalense que criou o equipamento e que tanto contribuiu para levar bem longe o nome e a fama de Cascais, faleceu na sua casa, situada na Rua Carvalho Araújo, envolvido pela auréola mítica que nasceu com a sua prolífera actividade no universo municipal.

 

Fotografias @ Arquivo Histórico Municipal de Cascais

 

 

Joaquim da Galera Homenageado na Toponímia de Cascais

João Aníbal Henriques, 23.06.25

 

por João Aníbal Henriques

 

Numa iniciativa conjunta da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril e do Vice-Presidente da Câmara municipal de Cascais, Nuno Piteira Lopes, Cascais homenageou Joaquim da Piedade Aguiar, atribuindo o seu nome à rotunda situada junto ao lugar onde nasceu.  Ao fazê-lo, num preito de homenagem e gratidão, reconhecendo a entrega, a coragem, a determinação e o amor a Cascais que Joaquim da Piedade Aguiar, o mítico Joaquim da Galera bem conhecido por todos os cascalenses, devotou a esta nossa terra ao longo de toda a sua vida.

 

São infelizmente raros aqueles que com o dom da sua vida conseguiram dedicá-la, assim a 100%, à terra onde nasceram e onde sempre viveram, deixando atrás de si um rasto extraordinário que teve, tem e terá repercussões directas na Identidade Municipal e na qualidade de vida de milhares de cascalenses. E o Joaquim da Galera fê-lo!

 

 

 

 

 

Joaquim da Piedade Aguiar é uma das mais incontornáveis personagens do Cascais em que hoje vivemos. Nascido ali mesmo, na Rua Freitas Reis, no dia 24 de Fevereiro de 1938, cresceu sob a chancela de um grande dinamismo que atravessava longitudinalmente todo aquele extraordinário recanto de Cascais.

 

Empregado de comércio conhecido por todos os cascalenses, com aquele seu jeito inato que tornava especiais todos os clientes que pelas suas mãos passavam, depressa se impôs no panorama comercial de Cascais. No início da sua vida profissional esteve ligado à mítica Casa Tomaz e, desde cedo, marcou definitivamente a forma de bem receber e de servir quem procurava encontrar roupa e demais acessórios de vestuário.

 

Em 1974, com as oportunidades que se multiplicavam como resultado do caos revolucionário, Joaquim Aguiar identificou uma loja situada junto à Estação de Comboios com o potencial para se estabelecer por conta própria e para se afirmar no comércio de Cascais. Inicialmente numa parceria com Armindo Mestrinho, seu antigo colega na Casa Tomaz e, depois, associado à sua mulher, abriu ao público a Galera Modas que durante muitos anos foi referência incontornável da moda em Cascais e em Portugal. Juntando mais tarde a Boutique Glória ao seu já vasto negócio, depressa Joaquim Aguiar se transformou num motor da sociedade civil de Cascais, tendo participado e apoiado em quase todas as iniciativas e projectos que foram desenvolvidos no concelho até à actualidade.

 

O segredo de Joaquim da Piedade Aguiar, para além da sua natural apetência para o negócio e da imensa experiência acumulado durante os vinte e dois anos em que trabalhou na Casa Tomaz estava na sua inata habilidade estética e numa extraordinária força de vontade.

 

Nas suas lojas, sempre um passo à frente do seu tempo, toda a mercadoria exposta era apresentada de forma irrepreensível. O carácter inovador das suas montras, sempre motivo de especial atenção por parte dos seus conterrâneos que corriam a vê-las quando as inaugurava, tornavam a disposição dos seus artigos em autênticas exposições de arte. E isso, aliado ao facto de permanentemente correr o Mundo em busca das melhores colecções, dos criativos mais vanguardistas e dos materiais e marcas mais exclusivos, depressa tornaram a Galera no espaço onde chegavam clientes de todo o lado, cientes de que a maior parte do que de excelente ali se vendia não seria vendido em nenhum outro lado. João Aguiar, seu filho, transcreve no livro comemorativo do cinquentenário da Galera, um interessantíssimo apontamento publicado pelo Jornal da Costa do Sol logo em Outubro de 1974, poucos meses depois da abertura oficial da loja que tanto interesse havia despertado: “A princípio hesita-se em entrar. Todo o Mundo para diante da montra panorâmica, espreitando gulosamente o bem-apresentado recheio, onde de tudo se encontra: a última novidade em modas para todas as idades, das mais conceituadas marcas de pronto-a-vestir. Hesita-se porque – pela aparência – se suspeita de loja para bolsas recheadas! Loja onde se pague o luxo que, em verdade, não existe ali pois aquilo não é luxo, é tão-somente bom gosto, o savoir-faire. E de quem há muitos anos trabalha no ramo. As pessoas param, admiram, admiram-se e entram!”.

 

Joaquim da Galera, cujo nome se confunde com o pulsar constante da Vila de Cascais, rapidamente transformou o êxito que alcançou enquanto empresário numa verdadeira mola propulsora da vida da sua terra. Focado sempre no bem-comum, com a capacidade de identificar com rigor o mérito e as virtudes dos seus conterrâneos, ele multiplica a sua presença nas colectividades e associações de cascalenses, sempre com o seu carisma de organizador em grande destaque e a capacidade de liderar e garantir que todos dão igualmente o seu melhor para que Cascais preserve aquele seu charme que faz chegar longe a sua fama. Mas não se pense que Joaquim da Galera é o líder que assiste impávido ao trabalho dos outros, ordenando do alto do seu altar as directrizes que garantem o cumprimento dos seus projectos. Muito pelo contrário! Onde há projectos trabalhosos, que exigem entrega física e esforço, eis que é ele o primeiro a conduzir as suas carrinhas de carga, a carregar vasos de flores e a ajudar a organizar as mesas onde mais tarde também ele se vai sentar.

 

Da Sociedade Propaganda de Cascais, onde os concursos hípicos lhe exigem uma entrega sem par, até às comemorações oficiais do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, até à Associação Comercial de Cascais, o dia de Joaquim Aguiar parece ter a capacidade de multiplicar as suas horas, porque para onde quer que olhemos, se o mote é Cascais e se o ambiente é de alegria e festa, lá está ele a trabalhar. Igualmente nas associações de moradores da baixa de Cascais, na Sociedade Musical de Cascais, na Associação de Bombeiros e no magnífico Teatro Gil Vicente, é Joaquim da Galera que tem as ideias, quem as materializa e quem tem a arte de acicatar os ânimos e pôr toda a comunidade a trabalhar empenhadamente nestes eventos que dão forma à própria vida de Cascais.

 

Ao longo da sua longa vida, Joaquim da Piedade Aguiar foi presença constante em quase tudo o que se passava em Cascais. No Natal, quando os comerciantes rebuscavam ideias para materializar campanhas que motivassem as vendas e as visitas de forasteiros que por aqui deambulavam em busca dos produtos que só se encontravam em Cascais, era ele quem estava por detrás dos concursos de montras, do embelezamento dos canteiros públicos e sistematicamente era ele quem organizava as iluminações que enchiam as ruas da vila de animação e música, multiplicando os ecos juntos dos principais órgãos de comunicação social e, criando tracção, reforçavam a mística de Cascais. E no Carnaval, quem não se recorda dos magníficos e muito animados corsos que ligavam Cascais ao Estoril e que exigiam meses e mais meses de preparação e trabalho? Está visto que, neste grande evento que juntava milhares de visitantes ao longo de todo o percurso, era quase sempre o carro alegórico da Galera Modas aquele que mais curiosidade despertava, não só pelo cuidado na sua preparação, como pela animação que o Joaquim da Galera nele colocava! À noite, quando o cansaço tomava conta dos foliões, não era raro ouvir-se ao longe a música e as gargalhadas de grupos que percorriam a vila reforçando a animação. E quase sempre, como o sabem todos os cascalenses, era o Joaquim da Galera quem lá estava mascarado e sempre disposto a pregar partidas que se tornaram míticas e que geraram histórias e memórias que passaram a fazer parte das Histórias de Cascais!

 

Dos muitos projectos e organizações de que fez parte, houve um que transcendeu todos os demais pelas repercussões que teve na vida de Cascais. Em 1993, em conjunto com as mais importantes personalidades que lideravam a designada Sociedade Civil de Cascais, esteve o Joaquim da Galera à frente da secção de comércio e animação cultural da recém-criada Fundação Cascais. Foi um trabalho duro aquele que foi feito naquela instituição, lutando permanentemente pela sua independências perante interesses políticos e partidários, e tendo como mote unicamente o bem comum dos cascalenses. Dizia-se que era uma utopia inalcançável a Fundação Cascais. Mas em conjunto com Isabel Olavo, António Aguiar, Luís Athayde, Pedro Canelas, Pedro Luís Cardoso, Carlos Olavo, João de Castro, Vieira da Fonseca, João Coelho Pinto, Jorge Marques, Pedro Garcia e tantos outros, lá esteve Joaquim Aguiar como fundador e administrador da Fundação Cascais garantindo que a instituição tinha as condições necessárias para cumprir os seus muitos desideratos.

 

 

 

 

 

A sede da instituição, instalada numa sala dentro da sede da Sociedade Propaganda, que ele próprio preparou para ali instalar a fundação, transformou-se num cadinho de movimento e animação, com discussões acaloradas sobre o futuro comum da terra magnífica que era o Cascais de então. E logo naquele primeiro ano, durante a campanha para as eleições autárquicas, pela sede da Fundação Cascais passaram todos os candidatos de todos os partidos que, num registo de respeito comum pelas opiniões alheias, vieram dizer aos Cascalenses ao que vinham e o que traziam para oferecer à nossa terra.

O trabalho preparatório, feito com a ajuda de imensos cooperantes que voluntariamente se reuniam aquele conjunto de homens-bons do concelho, foi feito com levantamentos sistemáticos de informação em cada uma das áreas prioritárias de intervenção, que eram posteriormente trabalhadas em conjunto em reuniões plenárias e das quais resultaram projectos de intervenção que no campo alteraram radicalmente o futuro de Cascais. Sempre com presença activa de Joaquim Aguiar, vale a pena lembrar os concursos de arte, os concursos de montras, os torneios de futebol juvenil, o levantamento exaustivo do património histórico de todo o concelho de Cascais, os estudos sobre alcoolismo juvenil, a associação de apoio e desafio à SIDA, as peças de teatro com fins beneméritos, o apoio ao trabalho feito pela Irmã Elvira no Bairro do Fim-do-Mundo, o seminário sobre turismo e políticas de promoção internacional de Cascais que deram forma a novas estratégias de captação de visitantes que vieram consolidar a vocação turística municipal. E nas edições, o livro sobre a História da Paróquia do Estoril, a publicação do levantamento do património, o livro sobre o Plano Director Municipal, as revistas sectoriais sobre a realidade de Cascais, o livro sobre Urbanismo & Comércio e tantas outras publicações que ainda hoje continuam a ser referência inultrapassável para quem pretende estudar a realidade municipal de Cascais. E, porventura o mais importante de todos os trabalhos desenvolvidos pela Fundação Cascais e no qual Joaquim da Piedade Aguiar foi peça-angular na sua concretização: o grande estudo sobre saúde que culminou com uma mega-reunião no Teatro Gil Vicente onde estiveram em aberta discussão os profissionais de saúde, os autarcas de Cascais, os representantes da sociedade civil e do turismo e ainda o então Ministro da Saúde. Desse trabalho, imenso e aparentemente inconcretizável, resultou a publicação do livro “Tratar da Saúde de Cascais”, com um conjunto de propostas que tornou possível a construção do novo hospital de Cascais e a recuperação da totalidade das estruturas de saúde primárias em todas as freguesias do concelho.

Foi também obra em que ele se empenhou e que teve repercussões drásticas na vida de Cascais e dos Cascalenses com um rasto que se prolonga ao longo dos anos e que se repercute ao longo de muitas gerações de Cascalenses.

No boletim que publicou durante vários anos para promover a sua Galera Modas, e que surge transcrito na obra atrás mencionada, diz-se no primeiro número datado de 1975 que o lema de Joaquim da Piedade Aguiar assentava em três palavras fundamentais: Vontade, Trabalho e Ousadia. E serão porventura estas as palavras que melhor descrevem quem é Joaquim da Galera, e que explicam o impacto que ele tem junto dos seus conterrâneos.

A excelência do Joaquim da Galera e a entrega de vida a Cascais só vale a pena se for reconhecida por todos. Até porque Cascais seria uma terra diferente, para pior, se não fosse a vida dele!

 

Fotografias @ Junta de Freguesia de Cascais e Estoril – Susana Meireles

 

A Capela de Nossa Senhora de Porto Salvo em Oeiras

João Aníbal Henriques, 20.06.25

 

por João Aníbal Henriques

Quem entra por mar na Barra do Tejo, provavelmente procurando chegar à sempre mítica Cidade de Lisboa, orienta a navegação através da interpretação dos sinais que vai vendo ao longo das margens. O primeiro e mais importante, definindo a rota que permite discernir a entrada na Grande Barra, é o Alto de Caspolima, onde hoje se ergue a Vila de Porto Salvo.

O próprio topónimo desta importante freguesia do Concelho de Oeiras é, aliás, a tradução linear dessa relação que aquele espaço tem com o mar e com o acesso a Lisboa através da Barra do Rio Tejo. Porque, diz uma das correntes que procura explicar a origem da localidade, os marinheiros entendiam o avistamento daquele morro como sinal da chegada em segurança ao Porto de Lisboa. E, dessa maneira, assumiram então que a inovação de Nossa Senhora de Porto Salvo seria aquela que melhor definiria o ensejo de chegar de forma segura ao seu destino.

 

 

 

Na sua versão mais romântica, provavelmente misturando os resquícios de uma lenda antiquíssima com a realidade vivida neste local desde tempos imemoriais, terão sido uns marinheiros da Carreira das Índias que, num dia particularmente difícil de grande temporal vivido angustiosamente no Cabo das Tormentas, terão feito um voto a Nossa Senhora prometendo construir uma pequena ermida no morro de Caspolima caso a sua protecção lhes permitisse regressar em segurança a Lisboa. Dessa maneira, seria essa a origem da construção da airosa capela que ainda hoje marca de forma charmosa a paisagem naquelas terras.

O topónimo antigo – Caspolima – terá então caído em desuso, à medida em que crescia a comunidade de devotos seguidores da protecção que Nossa Senhora de Porto Salvo sempre oferece a todos os navegadores que a invocam.

Segundo informação da própria Junta de Freguesia de Porto Salvo, era usual que os navios que procuravam chegar ao Porto de Lisboa disparassem sempre uma salva de 21 tiros quando avistavam a pequena capela, homenageando assim a padroeira da localidade e consagrando-lhe o sucesso das suas viagens. De acordo com aquela Autarquia, esse costume prolongou-se ao longo do Século XIX tendo progressivamente desparecido ao longo da centúria seguinte.

 

 

Vincadamente inserida na tipologia própria das antigas capelas rurais que proliferam nas imediações rurais do termo de Lisboa, a Capela de Porto Salvo apresenta, no entanto, características únicas que a demarcam das suas congéneres. Basicamente porque, com o crescimento desmesurado que conheceram as terras de Oeiras ao longo do Século XVIII, ela tenha sido reconstruída, ganhando detalhes decorativos que se afiguram deveras marcantes. É o caso dos painéis de azulejos que decoram a sua fachada e que retratam os milagres atribuídos a Nossa Senhora de Porto Salvo, de autoria atribuída a Oliveira Bernardes e datados de 1740, bem como a construção do alpendre adossado ao corpo principal que oferece ao lugar um toque de requinte que acompanha ao aumento exponencial do número de devotos que procuravam o espaço para expressar a sua Fé em Nossa Senhora.

Com origem definida para o Século XVI, consagrando assim a versão lendária da sua fundação e a ligação ao mar e ao grande empreendimento dos Descobrimentos Portugueses, a Capela de Porto Salvo foi alvo de dois grandes momentos de ampliação em épocas posteriores que alteraram de forma quase radical a simplicidade original da antiga ermida seiscentista.

 

 

O que não se alterou, senão no multiplicar devocional, foi a orientação primitiva que se associa a este espaço. O cunho mariano, onde Nossa Senhora, Mãe de Jesus, se assume como fulcro de Fé e fonte de protecção, está plasmado de sobremaneira nos várias elementos arquitectónicos que actualmente caracterizam este templo. No interior, ao longo da sua única nave, a capela integra uma interessantíssima descrição em azulejos azuis e brancos da Fuga para o Egipto, numa alusão, provavelmente algo velada, da forma como a intervenção da Mãe-Primordial é ela própria o garante da segurança dos seus filhos. E em todo o espaço sagrado, são as litanias a Nossa Senhora que melhor descrevem essa entrega devocional à Rainha de Portugal, na certeza bem vincada que quem se lhe dedica fica imediatamente protegido de maiores males.

O recinto da capela, envolvido por um murete que acompanha as práticas devocionais durante os períodos de festa em honra da padroeira, permite-nos perceber que a expressão simbólica da religiosidade local desde sempre foi acompanhada de uma movimentação expressivamente pagã, com festas e arraial que prolongava pela localidade a singeleza dos monumentos religiosamente mais relevantes.

 

 

A Capela de Nossa Senhora de Porto Salvo é actualmente marco efectivo da forma como se consolidou a vivência humana no território municipal oeirense. E, nas suas características formais, define com rigor a capacidade que localmente se criou de mesclar o paganismo ancestral às práticas religiosas cristãs e católicas, recriando um percurso de continuidade que afirma de sobremaneira o respeito pela diferença de opiniões e de crenças que permanentemente por aqui grassou.

É de visita obrigatória para quem pretende perceber a importância que o Termo de Lisboa teve no desenvolvimento renascentista de Portugal, e na forma como a devoção religiosa das suas gentes foi fundamental para formatar socialmente a sua estrutura comunitária.

 

 

O Papel Sagrado da Mãe em Santa Eufémia de Sintra

João Aníbal Henriques, 16.06.25

 

por João Aníbal Henriques

O papel de mãe é provavelmente o principal alicerce civilizacional que define o dealbar da nossa humanidade. E, no que a Portugal diz respeito, ele surge plasmado num dos recantos mais extraordinários da Serra de Sintra, carregando consigo os segredos descodificadores da própria portugalidade.

No topo das penhas verdejantes da Serra de Cinthya, numa sempre velada alusão à matriz lunar da nossa existência, a efemeridade temporal da vida transmuta-se na convincente eternidade da essência primordial. E, através de um secreto processo alquímico guardado de forma cuidada ao longo dos milénios, é ali que a poalha despojada dos resquícios do Ego ganha forma e vida, assumindo-se como cadinho de outras vidas sempre condenadas ao regresso ao eterno.

Santa Eufémia de Sintra, onde desde a Pré-História se venera a sacralidade da mãe-primordial, foi sempre pronto fulcral na perpetua demanda do Homem consciente do sentido da sua vida. Até porque, como acreditava o saudoso Rei Dom Fernando II, que na sua ancestral raiz dinástica de Saxe-Coburgo-Gotha, sabia que era ali que o Espírito se fundia com a matéria, reformatando a própria lógica dos padrões criacionais e dando-lhes a possibilidade de cair, experienciando assim as agruras que dão forma à própria vida.

A Mãe, figura basilar num Portugal que desde o seu início se define em torno da consagrada concepção de Maria, surge assim como o garante do resultado ascensional dos seus filhos. Como se de uma escola se tratasse, o calcorrear dos trilhos efémeros deste “vale de lágrimas” organiza-se nos ciclos reiteradamente assentes no binómio da dor e do prazer, sendo essencial que seja a Mãe a levantar os seus filhos quando eles acabam por se magoar, caindo ao longo do percurso que têm obrigatoriamente de completar inteiramente.

 

 

 

Qual Lei dos Contrastes, o bem e o mal debatem-se permanentemente e funcionam como motor que faz progredir o neófito na sua caminhada em direcção ao Pai. Até porque sem cair ninguém aprende a andar. E sem a noção experiencial da dor, do sofrimento e da angústia, não faria sentido algum a plenitude totalizante de um céu despojado das âncoras que sustentam o Ego.

Por isso é sagrado o papel da mãe. Dolorido e pejado de sofrimento, tanto maior quanto mais abarcante for o amplexo da responsabilidade que sempre surge associada ao conhecimento e ao crescimento. É a mãe que dá sentido à existência e, sendo ela própria a fornalha que conjuga as substâncias que permitem a vida, é também através dela que se melhor se expressa o caminho de regresso a casa, nem sempre fácil nem linear, antes marcado pelas vicissitudes necessárias ao crescimento daqueles que delas dependem.

Em Santa Eufémia de Sintra, como refere Vítor Manuel Adrião na sua “Sintra, Serra Sagrada”, as origens do culto a Santa Eufémia perdem-se nas origens do próprio tempo, estando relacionadas de forma directa com os cultos de fertilidade associados com a água, num apelo ancestral à Deusa-Mãe, Eufémia, origem simbólica de toda a ritualística Cristã da Senhora que concebe, ou seja, de Nossa Senhora da Conceição.

Ali, num enquadramento cénico que o romantismo novecentista reformatou, repetem-se as “aparições” marianas, associando-se a luz que delas emana aos milagres que através dela teimam em acontecer. A lenda que se confunde com a História deixa marcas nas pedras, aparentemente eternizando as provas de que é nesta sacralidade pura e primordial que está resguardado esse segredo maior que explica cada uma das nossas existências.

Classificado como Imóvel de Interesse Público desde 2002, o Alto de Santa Eufémia, em Sintra, carrega consigo 6000 anos de vidas que por ali se misturam numa plêiade milagrosa de histórias cujo significado profundo urge desvendar. Porque nesse seu apelo ancestral à importância da Mãe, está a resposta à única dúvida importante que a Humanidade pode formular…