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Cascais e o Terramoto de 1755

João Aníbal Henriques, 01.02.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
O cataclismo que se abateu sobre Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 deixou um rasto de destruição na Vila e no Concelho de Cascais. O terramoto e o posterior maremoto, foram acompanhados de incêndios e muitos dos principais edifícios que existiam foram completamente destruídos.
 
A face urbana da Vila de Cascais, com a monumentalidade própria de uma pequena vilória piscatória, sofreu enormes alterações e, mercê dos muitos interesses instalados nesta terra, terá sido porventura o terramoto o embrião da primeira operação de especulação que Cascais conheceu…
 
De facto, as Memórias Paroquiais, bem como as respostas dos reitores das igrejas às questões levantadas pelas autoridades depois do terramoto, apresentam-nos informações muito úteis para conhecer e compreender o que então aconteceu em Cascais. A menção à antiga torre-relógio, que desapareceu nessa manhã fatídica, e a organização espacial dentro das muralhas do velho castelo, estão bem expressas nas palavras do pároco de então: “Está esta vila sem relógio porque este, e sua grande torre feita pelos mouros, que sefes em cinzas. O palácio dos marqueses de Cascaes uq era de hua excelente perspectiva, e de exquisitas pinturas, com hua bella ermida, desconhecesse tudo pelo que foi, e já não hé (…). Nesta freguesia há hu castelo, cujo hoje está todo cheio de moradores e para nada serve mais, porem ahinda selhe conservão alguas amejas, cujo fica para abanda da ribeira, pegado com os palacios dos marqueses de Cascaes”.

 
Também Frei António do Espírito-Santo, um dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora da Piedade (actual Centro Cultural de Cascais), dá-nos conta do estado do castelo após o terramoto de 1755: “cahio a torre com o seu mais especioso relógio nas sonoras vozes do seu sino, que fica olhando para norte, e matando 22 pessoas”.
 
Esta torre, bem identificada em muita da cartografia antiga que se conhece, corresponderia à torre que se situava na parte Nascente do Castelo, com frente para a área do antigo Rossio. Teria planta redonda, em linha com a tradição arquitectónica deste tipo de edifícios, facto ainda visível nas fotografias tiradas no início do Século XX por João da Cruz Viegas, D. António de Castelo-Branco e pelo Visconde de Coruche. De salientar que alguns dos torreões do antigo castelo, marcando os eixos que deram forma ao núcleo urbano inicial da Vila de Cascais, subsistiram até aos anos 60 do século passado, quando foram demolidas no âmbito do surto de construção que assolou Cascais nessa época.
Em termos religiosos, eram vários os edifícios que existiam em Cascais neste final do Século XVIII. Mas a maior parte, mercê das agruras do cataclisma, acabou por ficar muito danificado ou mesmo completamente destruído.

 
De acordo com o testemunho do Reitor da Igreja Matriz de Cascais, Padre Manoel Marçal da Silvejra, ao responder em 1758 aos inquéritos paroquiais, nada sobrou do terramoto e o que se manteve de pé estava em tais condições que a ele lhe parecia que mais valia destruir para construir novas edificações de raiz do que proceder ao seu restauro: “(…) a villa ficou toda arruinada até ao chão. Não há caza, wur ou não cahisse em terra, ou não ficase abalada, ameaçando ruína. Os templos, a ponte, a cidadela, e os eus quartéis, tudo está demolido, e feito em pó. A major parte da villa haita ahinda em barracas fora, e dentro do destricto, a ponte está com hu só arco em pee, e senaõ passa po rella, sem que se reparasse ahinda nada, somente alguas czas setem levantado, poucas, ao mesmo tempo, que outras, com as tempestades e ventos, se tem acabado de postrar”.
 
Do reitor da Freguesia da Ressureição, a segunda freguesia de Cascais e situada no espaço extra-muros, recebemos a informação de que foi esta uma das mais afectadas freguesias do país com a catástrofe do terramoto de 1755: “De todas as terras foi esta aq. Experimentou mayor ruina (conforme dizem todos) por causado ditto terramoto, pois todos os edifícios serruinarão, e quazi todos cahiram, e algum q. nan cahio de todo ficou inahabitavel, mas ao prezente is se acham muntos deles reedificados”.
 
Mas, se é certo que a destruição provocada pelo terramoto foi enorme, certa é também a dose de exagero patente em todos estes documentos, explicável possivelmente com a necessidade de chocar quem os lê-se para sensibilizar o poder nacional para a necessidade de recursos que Cascais sentia para proceder à sua recuperação urbana. De facto, tendo ruído a Igreja da Ressurreição, que se situava sensivelmente onde actualmente se encontra a estação de comboios, muitos outros monumentos civis, militares e religiosos se mantiveram de pé o foram reconvertidos e/ou recuperados e ainda hoje podem ser apreciados na Vila de Cascais.


 
 
A Igreja de Nossa Senhora da Assunção, por exemplo, uma construção de meados do Século XVII que resistiu à força do terramoto, foi bastante alterada no seu exterior tendo sofrido várias alterações que lhe conferem a imagem que hoje apresenta. Na sacristia e no arco que suporte o coro, ainda são visíveis as sequelas do cataclisma, ao lado com uma pequena inscrição que informa que o templo havia sofrido obras de restauro em 1720 à custa dos irmãos pescadores.
 
Mais à frente, e para além dos muros antigos do castelo, a Cidadela de Cascais e a Fortaleza de Nossa da Luz resistiram ao terramoto, tendo acontecido o mesmo com o Convento de Nossa Senhora da Piedade que, já no Século XIX, foi comprado em hasta pública pelo Visconde do Gandarinha que o adaptou a residência de veraneio. Quando essas obras foram efectuadas, estavam ainda em estado razoável de conservação a antiga sala do capítulo, a capela, o claustro, a cisterna e mesmo o friso de janelas viradas a Sul que ainda hoje se mantém.


 
 
Da mesma maneira, e para além das pequenas capelas de Nossa Senhora de Porto Seguro e de Nossa Senhora da Conceição, sobreviveram ainda as capelas de Nossa Senhora da Vitória, a Igreja da Misericórdia e a Igreja e Nossa Senhora dos Navegantes que foram reconstruídas depois da catástrofe.


 
 
Tendo exagerado de forma linear a verdade do que aconteceu, a documentação coeva dá-nos uma primeira imagem do que era Cascais naquela época. E, sabendo nós que o ímpeto de construção que se lhe segue fica a dever-se à generalizada informação de ruína eminente em que pretensamente Cascais se encontrava, fácil se torna perceber que naquela altura, como ainda hoje, foi sobre inverdades e premissas adaptadas às necessidades do momento, que se deu uma nova cara ao Cascais de sempre.