Dom Fuas Roupinho e o Castelo de Torres Vedras
João Aníbal Henriques, 28.09.16
por João Aníbal Henriques
Situado em plenas Linhas de Torres, conjunto de fortificações montado para proteger Lisboa durante a denominada Guerra Peninsular, o Castelo de Torres Vedras é uma das mais interessantes peças patrimoniais de Portugal.
Com origem marcada pela chegada dos Romanos, há mais de 2000 anos, a ocupação da colina onde a fortificação se situa representa um passo significativo na definição do fluxo territorial daquela zona. Aproveitando a topografia natural do local, altaneira relativamente ao espaço onde se viria a espraiar a cidade, o castelo define-se na paisagem, apresentando características que lhe advêm de uma história longa e pouco linear.
Do tempo dos romanos, quando um certo clima de paz imperava nesta região, são certamente as duas cisternas existentes dentro do espaço fortificado, não se sabendo ainda se existiriam panos de muralhas a envolver estes equipamentos. Sabe-se, no entanto, que durante a ocupação árabe terá sido construído o conjunto de muralhas que lhe concedeu a forma actual, muralhas essas que foram sucessivamente destruídas e reconstruídas devido a ataques, cataclismos naturais e necessidades práticas de adaptação da vida das comunidades que por ali habitaram.
De facto, a cidade de Torres Vedras foi conquistada por D. Afonso Henriques, em 1148, logo após a conquista de Santarém. O primeiro Rei de Portugal tê-la-á entregue a D. Fernão Gonçalves Churrichão, que ficou conhecido na História como Dom Fuas Roupinho, que reorganizou o espaço e reconstruiu as antigas muralhas.
O lendário nobre Português, de quem se conhece muito pouco a biografia, seria certamente um dos mais próximos companheiros do Rei conquistador e terá estado com ele nos primeiros passos da formação da Nacionalidade. Pensa-se ainda, pela forma como organizou a sua vida pública, que seria Cavaleiro Templário e que terá sido nessa condição que colaborou com o exército lusitano no processo de reconquista Cristã da Península Ibérica.
Dom Fuas Roupinho terá sido também o protagonista do chamado “Milagre da Nazaré”. Quando andava a caçar montado no seu cavalo ao longo da costa Oeste de Portugal, o fidalgo ter-se-á entusiasmado com um veado e perdeu completamente a noção do perigo que está associado àquele espaço de falésias. Num laivo de desespero, ao sentir-se condenado a cair pela arriba abaixo, terá apelado a Nossa Senhora em oração e em resposta Ela terá travado o cavalo já mesmo no limite da escarpa, salvando o nobre português de uma morte certa. Agradecido pela graça que lhe foi concedida, Dom Fuas Roupinho mandou erguer no local a Capela da Memória e, quando se preparava para iniciar as obras de construção do altar, os operários ter-se-ão deparado com uma antiga arca contendo as relíquias de São Brás e de São Bartolomeu e uma imagem de Nossa Senhora sentada num banco a amamentar o seu filho Jesus.
O impacto desta descoberta, principalmente devido ao facto de a imagem ter sido identificada como uma das mais antigas imagens da Virgem Maria, transportada até ao actual território Português algures no início do Século V, terá sido de tal forma grande que diversos monarcas Portugueses terão peregrinado até à Nazaré, mandando melhorar sucessivamente as edificação originais de Dom Fuas Roupinho e contribuído para o rápido alastramento da devoção ao Sítio da Nazaré.
Em Torres Vedras, depois de sofrer vários ataques por parte das forças muçulmanas, o castelo, depois das campanhas de consolidação levadas a cabo pelo senhor, terá conseguido sempre repelir o inimigo, sublinhando assim a sua importância no contexto da formação da própria Nacionalidade. Dom Dinis e posteriormente Dom Fernando, em linha com o que fizeram noutras cidades com importância para a defesa de Portugal, terão mandado efectuar obras de alargamento das muralhas de Torres Vedras, configurando o castelo com as mais modernas tecnologias de guerra que existiam na sua época.
Ao longo da sua história, muitos foram os episódios extraordinários que por ali se passaram. Mas dos mais importantes terá sido certamente o facto de ter tomado partido pela forças de Dona Beatriz, durante a crise de 1383-85, facto que levou o exército de Dom João I a atacar a cidade de forma a garantir a sua posse para a Coroa Portuguesa. Depois dessa vitória, o monarca terá escolhido precisamente o castelo como seu local de residência temporária, tendo sido dali que emitiu grande parte das ordens que tornaram possível o nascimento do Portugal moderno. Na “Crónica de Dom João I”, da autoria de Fernão Lopes, o cronista descreve o Castelo de Torres Vedras como sendo uma perfeita fortificação natural, dado que aproveita a topografia e o declive natural do terreno, complementados com as muralhas construídas, tornando-se um espaço quase totalmente inexpugnável: "Este lugar de Torres Vedras é uma fortaleza assentada em cima duma formação mota, a qual a natureza criou em tão ordenada igualdade como se a não fosse feita, artificialmente; a vila com a sua cerca a redor do monte, e na maior alteza dele está o castelo".
Do período Manuelino, quando Torres Vedras recebeu o seu segundo Foral, serão datadas as obras de modernização dos panos defensivos, bem como a porta de entrada no castelo, em forma ogival muito marcante e adornada com a esfera armilar, as armas de Portugal e a cruz da Ordem de Cristo.
Digno de uma nota especial, não só pelo facto de ser ilustrativa da importância estratégica da Cidade de Torres Vedras no contexto Nacional, como também por consolidar a sua relação próxima com os principais mentores do chamado espírito messiânico de Portugal, é também a sua conquista, em 1589, em pleno período filipino, pelas forças apoiantes de El-Rei D. António, conhecido por Prior do Crato. O Rei Português, com o apoio de forças Britânicas, terá desembarcado em Peniche com o intuito de reconquistar Lisboa para a Causa Nacional. Chegado a Torres Vedras já de noite, o monarca ter-se-á instalado no castelo, ordenando aos seus soldados que não se fizessem quaisquer saques junto da população. Estas, no entanto, dado o visível abandono da cidade, que se encontrava praticamente deserta, acabaram por beber bastante vinho, facto que, segundos as crónicas de então, terão provocado várias doenças e mesma a morte a alguns dos soldados sitiantes. O exército Português terá sido derrotado no dia seguinte, mercê do péssimo estado de saúde dos seus homens, quando o Senhor Dom António se dirigia à cidade de Lisboa. A Cidade de Torres Vedras foi então reconquistada sem esforço pelas forças fiéis aos Espanhóis.
Depois da destruição massiva provocada pelo grande terramoto de 1755, que fez ruir grande parte dos principais troços de muralha, o castelo de Torres Vedras só volta a ver o seu esplendor recuperado precisamente durante a já mencionada Guerra Peninsular, quando foi integrado nas chamadas Linhas de Torres e representou importante papel na defesa da capital contra os ataques dos exércitos franceses.
Durante os Séculos XIX e XX o castelo entrou na posse da autarquia e foi sofrendo várias obras de conservação. Hoje, mantendo o seu carácter altaneiro sobre a paisagem formada pelo casario torreense, faz jus à sua fama de inexpugnável, ostentando as características ameias ali colocadas pela Direcção Geral do Património nos idos dos anos 40.
Torres Vedras, ou sejam, as torres velhas do antiquíssimo castelo romano que dão corpo ao seu topónimo, é uma cidade que vale a pena visitar. Porque para além do seu castelo e demais peças extraordinárias de património, mantém bem viva a sua ligação umbilical à (sempre difícil) demanda de Fé que a Ordem de Cristo foi capaz de consubstanciar.