Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

cascalenses

cascalenses

O Caminho do Silêncio na Ermida de São Saturnino da Peninha

João Aníbal Henriques, 22.05.23
 
por João Aníbal Henriques
 
Na busca incessante dos trilhos mais significantes de Alcabideche, urge desvendar aquela que é uma das mais impactantes lendas da freguesia. Saída directamente da encruzilhada que junto à Biscaia liga o Caminho das Almas à encosta de São Saturnino, a Poente da Ermida de Nossa Senhora da Peninha, a lenda que corporiza este espaço traduz na sua essência a amplitude milenar das convicções e das crenças de sempre dos Cascalenses. 
 
A subida desta encosta, atravessando o caminho de pé posto que começa nas Almoínhas Velhas e se estende até ao que resta do velho palacete ali construído por António Carvalho Monteiro, o conhecido “Monteiro dos Milhões” que viveu na Quinta da Regaleira e que, do alto da sua iniciação, traduzia na matéria os valores espirituais mais relevantes da Portugalidade, faz-se por entre o exotismo de uma flora artificialmente disposta como se de um cenário se tratasse, propiciadora, por seu turno, de uma fauna pujante que não deixa indiferente quem tem a sorte de por ali poder passear. 
 
 

 

 
Reza a lenda que, algures durante o reinado de Dom João III, uma pastorinha muda e esfomeada nascida na localidade das Almoínhas Velhas (Malveira-da-Serra, Cascais), terá subido à Serra de Sintra com o seu rebanho onde encontrou Nossa Senhora. A figura com a qual falou, respondendo ao seu anseio de alimentos para si e para a sua família, disse-lhe para regressar a casa e abrir uma determinada arca onde encontraria o pão de que necessitava. Correndo de regresso para casa, a pastorinha recuperou a voz e indicou à sua mãe onde encontrar o tão almejado alimento. A velha imagem tosca de Nossa Senhora da Penha, colocada na arca, terá sido então exposta para veneração na velha Capela de São Saturnino, situada a poucos metros do local da aparição. Mas, teimosa, saia subrepticiamente do altar onde a colocavam e reaparecia no cimo dos rochedos situados atrás do templo. Tantas vezes se repetiu a travessura que se construiu em sua honra a capela actual no topo do monte da peninha. 
 
Não se sabendo exactamente quando tudo isto aconteceu, e havendo várias notícias da existência de edifícios que precederam aquele que actualmente ali se encontra, sabe-se, no entanto, que a Capela de Nossa Senhora da Peninha terá sido construída por um tal Pedro da Conceição, que tinha na altura somente 28 anos, e que se encontra sepultado junto ao monumento. Nas inscrições lapidares de Sintra, vem descrita a indicação que se encontra na sepultura do fundador, dizendo que ali jaz o Ermitão Pedro da Conceição, falecido em 18 de Setembro de 1726, e que pede a todos os que por ali passem um Padre Nosso e uma Avé Maria pela Alma dos seus benfeitores. Numa das paredes do templo, existe uma segunda lápide confirmando a identidade do construtor original e afirmando que a obra foi efectuada em 1690. Sendo muitos e rocambolescos os episódios pelos quais passou o singelo templo Sintriano, o certo é que foi alvo de muitas obras de construção e reconstrução que lhe conferiram o aspecto que hoje conhecemos. Sabe-se ainda que no final do Século XIX, em 1892, a Peninha é comprada pelo Conde da Almedina que em 1918 a revende a António Augusto Carvalho Monteiro. 
 
 

 

 
O empreendedor e filósofo espiritualista, como ficou conhecido o construtor da Quinta da Regaleira, situada junto à Vila de Sintra, era na altura um dos mais conhecidos e ricos empresários lisboetas, com investimentos variados na banca de então que, do alto da sua prosperidade, adquire uma visão ecléctica do Mundo e das suas gentes. Profundamente místico e grande conhecedor de tudo aquilo que dizia respeito ao destino de Portugal, Carvalho Monteiro pauta a sua vida por um conjunto de valores e de princípios que, apesar da distância que o separa do antigo Ermitão Pedro da Conceição, lhe são muito próximos e semelhantes. Adossado às penhas que sustentam a capela, o proprietário prepara a construção de um palácio onde pretendia passar temporadas em meditação e em recolhimento. 
 
Projectado por Júlio da Fonseca em 1920, o palácio fica por acabar mercê da morte de Carvalho Monteiro, tendo posteriormente sido adquirido pelo advogado José Rangel de Sampaio que concluiu as obras e legou o palácio em testamento à Universidade de Coimbra Em 1991, pela importância de 90.000 contos, o imóvel é adquirido pelo Estado Português, através dos Serviços de Parques e Conservação da Natureza, que efectuou algumas obras de restauro e conservação. 
 
A Poente da Capela de Nossa Senhora da Peninha, subsiste em forma de ruína avançada, o que resta da velhinha Ermida de São Saturnino, originária do Século XII, e cuja importância em termos patrimoniais contrasta de forma evidente com a incúria em que tem sido deixada. O conjunto patrimonial da Peninha, composto pela Capela, pelo palácio de Carvalho Monteiro e pela velha Ermida de São Saturnino, está inserido numa das mais impactantes paisagens da Região de Lisboa, abraçando em termos visuais desde a Ponte Sobre o Tejo, em Lisboa, até ao Cabo da Roca. A singeleza da lenda, apelando aos sentidos de pureza primordial e fazendo a apologia da pobreza extrema e abnegada, enquadra-se no conjunto ritualístico próprio da Serra de Sintra, numa lógica cruzada de paganismo cristianizado e de apelo constante ao Quinto Império Português. 
 
 
 
 
A devoção pela Senhora que concebe, a Senhora da Conceição que tão linearmente devolve à pastorinha das Almoínhas Velhas (ou Almas velhas), a sua voz e lhe mata a fome, é concretizada pelo Ermitão, ou seja, pelo que assume a pobreza como fio condutor da sua vida, Pedro da Conceição, em ligação permanente ao culto ritual antigo. Na Ermida Medieval, onde o culto é de São Saturnino, a linha orientadora é a mesma, apelando ao eterno retorno e ao culto obscurecido dos Mundos Internos, numa lógica que corre em linha com o útero materno, a Deusa-Mãe primordial, por aqui venerada desde tempos imemoriais. Enfim… Nossa Senhora da Conceição. Os trilhos da Conceição, muito comuns através de todo o território municipal de Cascais, ganham uma importância acrescida e redobrada na área actualmente incluída na Freguesia de Alcabideche. 
 
Os mananciais de água que descem da serra em direcção ao mar, franqueando de forma livre as vastas charnecas que envolvem aquele lugar, deixam atrás de si um rasto de fertilidade que promove a vida, a saúde e o bem-estar daqueles que deles usufruem. A dependência directa destes mananciais, aqui como em qualquer outra parte do Mundo, ajuda a definir a estreita ligação que consistentemente se estabelece entre o quotidiano de cada comunidade e o seu profundo saber. A sabedoria popular, tão importante para a generalidade das tarefas do dia-a-dia, assume-se em Alcabideche como sustentáculo essencial para a formação da identidade local. E espraia-se, desde sempre, através de campos diversos que influem directamente nas escolhas que todos os dias, nos seus momentos de trabalho e de lazer, que os habitantes vão fazendo na sua vida. 
 

O Forte das Velas na Praia do Abano em Cascais

João Aníbal Henriques, 17.12.18

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Só existe um adjectivo com a abrangência suficiente para descrever de forma capaz o popularmente designado Forte do Abano, situado a Norte da Praia do Guincho, em pleno Parque Natural Sintra-Cascais: incrível!
 
Sendo um momento singelo de raiz militar, semelhante tipologicamente a tantos outros existentes ao longo da nossa linha de costa e construído especificamente para garantir a segurança do território Nacional perante eventuais investidas marítimas dos nossos muitos inimigos, é único na sua relação com o espaço e com o enquadramento cénico que lhe dá forma.
 
 

 

 
 
A sua localização, num promontório rochoso entre as Praias do Guincho e do Abano, plena e permanentemente fustigado pela fúria das ondas do mar e pelo vento que chega agreste e forte vindo da Serra de Sintra, confere-lhe um impacto sem par na paisagem. À sua volta, no contraste permanente entre o azul do mar, o branco das nuvens e o verde forte das encostas que dali seguem até à Peninha, a vista alonga-se através de um dos mais inesquecíveis cenários do Concelho de Cascais, potenciando a sua presença e reforçando a sua importância estratégica na definição da vocação turística municipal.
 
Incrível também porque, até contextualizando o monumento na sua mera função figurativa enquanto esteio promocional do turismo desta região, o estado deplorável de abandono, vandalismo latente e degradação acentuada, representa um autêntico atentado ao património de Cascais, dos Cascalenses e mesmo de Portugal.
 
 
 
É totalmente inconcebível que num país como Portugal e num Concelho como o de Cascais, nos quais a projecção da importância do sector turístico é tão grande, seja possível deixar que desleixadamente este tipo de equipamentos se vá perdendo por incúria, desleixo e desinteresse das entidades públicas,  perdendo não só todo o valor cultural que a ele está inerente, como também todo o enorme conjunto de potencialidades económicas, empresariais, culturais, patrimoniais, educativas e outras que o mesmo apresenta. É inconcebível e intolerável que o Estado Português, responsável tutelar pela salvaguarda dos valores que os Portugueses lhe deram à guarda, permita que este tipo de peças patrimoniais chegue a este estado de abandono, não efectuando sequer o mínimo esforço para garantir que os mesmos estão fechados e inacessíveis aos vândalos que os vão degradando.
 
 
 
E infelizmente, este não é caso único, nem singular em Cascais e em Portugal! Intolerável e incrível!
O Forte das Velas, sendo peça integrante no esforço efectuado depois da Restauração da Independência Nacional em 1640, faz parte de um complexo de vários fortes que cruzavam fogo sobre as principais enseadas marítimas de Cascais, recriando uma cortina que visava impedir desembarques indesejados nas principais praias do concelho.
 
 

 

 

 
 
Com a volumetria tradicional da sua época, o também designado Forte do Abano foi construído em 1642 por ordem de D. António Luís de Castro, Conde de Cantanhede e Governador da Praça de Cascais, e inicialmente guarnecido por sete peças de artilharia pesada.
 
Classificado como Imóvel de Interesse Público através do Decreto 129/77, de Setembro de 1977, foi alvo de várias obras de requalificação e adaptação ao longo dos anos, que lhe conferiram o aspecto que hoje apresenta.
 
Na componente de alojamento, teria inicialmente três corpos cobertos virados a Este, protegidos da força do mar pelo terraço onde se instalava o grosso da artilharia, e terá sido reformado em meados do Século XIX, quando o desenvolvimento de novas técnicas militares possibilitou a libertação de algum do espaço de aquartelamento, perdendo o corpo central que foi substituído por um pequeno terraço a céu aberto e pela nova cisterna de captação de água corrente.
 
 
 
 
Da estrutura inicial são ainda de salientar as duas chaminés de aquecimento dos corpos de alojamento situados junto à entrada, vandalizadas possivelmente de forma irrecuperável em época recente, bem como a estrutura de transporte e captação das águas para o seu espaço de armazenamento.
 
Com o enquadramento cénico único propiciado pelo espaço onde se encontra, o Forte das Velas é uma das peças patrimoniais que mais interesse desperta junto dos muitos milhares de veraneantes e passeantes que frequentam a Praia do Guincho, que quase sempre sobem o espaço da encosta para o observar mais de perto.
 
 
 
 
Sobre a porta da entrada, praticamente ilegível debaixo do Escudo de Armas Português, a placa comemorativa da sua inauguração desperta o gracejo dos que o visitam. Em acentuada degradação e em estado de ruína eminente, é simultaneamente um tesouro precioso e um perigo imenso, com a acessibilidade privilegiada que tem cruzada com a falta de controle de quem por ali transita.
 
Resta pouco tempo de vida ao Forte das Velas. Até porque para além do vandalismo a que está sujeito quotidianamente, os próprios elementos se encarregam de o ir destruindo.
 
Com o seu desaparecimento e paulatina degradação perde Cascais, perdem os Cascalenses e todos os Portugueses. Incrível que seja assim!
 
 

O Círio de Nossa Senhora do Cabo na Paróquia de Cascais

João Aníbal Henriques, 02.12.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Depois de um interregno de mais de 50 anos desde a sua última visita a Cascais, a Veneranda Imagem Peregrina de Nossa Senhora do Cabo regressou à Nossa Terra, no ano de 2002-2003 retomando assim o milenar Círio Saloio do Cabo Espichel.
 
A iniciativa do então Prior de Cascais, Padre Raul Cassis Cardoso, foi essencial para a recriação daquela que é uma das mais antigas tradições Cascalenses. Numa parceria com a Sociedade Propaganda de Cascais, que nessa altura assumiu a responsabilidade de recuperar a memória ancestral daquele importante acto devocional, foi possível reconstituir os rituais que a passagem do tempo havia feito esquecer e recriar toda uma existência religiosa que há muito tempo não existia nesta Freguesia.
 
 
 
 
Para o êxito desta iniciativa, que consolidou de forma efectiva a Identidade Cascalense, foi essencial o trabalho conjunto e o apoio da então Câmara Municipal de Cascais, presidida pelo Dr. António Capucho, da Junta de Freguesia de Cascais, Presidida por Pedro Silva, e da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais. Mas, acima de tudo, foi de primordial importância a forma extraordinariamente empenhada e motivada que caracterizou a participação dos cascalenses e das diversas instituições da sociedade civil de então nas muitas cerimónias que fizeram parte deste Círio.
 
 
 
 
O Círio de Nossa Senhora do Cabo Espichel, expressão ancestral de uma devoção profundamente ligada à terra e à sobrevivência das comunidades dela dependentes, recupera a antiga lenda do aparecimento de Nossa Senhora a um saloio de Alcabideche precisamente no ponto de ligação entre Cascais e Sintra. O investigador Vítor Adrião, no seu livro “Sintra Serra Sagrada”, aponta expressamente a sobreposição simbólica do Cabo Espichel, promontório sagrado da Portugalidade, à imagem ideal do Monte Carmelo, eixo de Fé da comunidade religiosa carmelita que em Cascais veio ocupar e dinamizar o antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade e que, dessa forma, congregou as mais sublimes expressões da sabedoria sagrada na comunidade Cascalense. Diz Adrião que “os dogmas teologais terão servido, tão só, de capa protectora, ante o vulgo profano, ao entendimento iluminado da Sabedoria Divina oculta dentro das paredes pias deste Colégio de Filosofia, esta que é, sabe-se, o umbral dialéctico da Teosofia”.
 
O Círio Sagrado de Nossa Senhora do Cabo, profundamente sentido pela comunidade cascalense, insere-se assim numa dinâmica de Fé da qual depende a existência efectiva dos mais ancestrais arquétipos de pensamento de Cascais. É essa ligação, quantas vezes menosprezada ao longo da História mais recente desta terra, que determina e possibilita a criação e desenvolvimento dos laços essenciais de cidadania comunitária na Nossa Terra.
 
 
 
 
A memória colectiva de Cascais, em 2002-2003 como em todas as outras vezes em que a Imagem de Nossa Senhora do Cabo por aqui passou, ficou profundamente marcada por este acontecimento que só se repetirá, no âmbito da concretização da praxis determinada pelo ancestral círio saloio, em 2032. Nessa altura, recuperando as memórias calorosas que marcaram o início do Século XXI e o despontar do novo milénio, Cascais renovará os votos de Fé e devoção que marcaram sempre a sua História, reforçando os vínculos de cidadania que esta última visita de Nossa Senhora do Cabo foi capaz de fazer renascer.
 

A bem de Cascais!

 
Fotografias da autoria de Sara Liberdade