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cascalenses

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As Casas da Câmara de Grândola

João Aníbal Henriques, 15.09.22

 

por João Aníbal Henriques

No Século XVI a região de Grândola conheceu um período de crescimento sem par. Os bons anos agrícolas, transfigurados em colheitas de grande potencial, significaram fartura nos índices de produção locais. E o excesso, suprindo de forma cabal as necessidades alimentícias da população, foram escoadas para o mercado, rentabilizando assim a energia despendida no trabalho e reforçando o valor estratégico de toda a região.

Em 1544, a povoação recebeu a sua Carta de Foral, criando assim as bases da sua autonomia administrativa e, por consequência, todas as obrigações e responsabilidades que normalmente correspondiam aos municípios.

 

 

Este esforço, necessário para enfrentar os vários desafios políticos e económicos que acompanharam o crescimento e consolidação da estrutura municipal, exigiam infraestruturas de que a terra não estava dotada. E, para fazer face a essas necessidades, recebeu o município as devidas autorizações para iniciar a construção de raiz de um complexo que fosse capaz de albergar as instalações da Câmara Municipal, as dependências do tribunal e, no seu piso térreo, prisões masculinas e femininas, acompanhadas por habitação para albergar o carcereiro.

Assim, depois de muitos esforços para conseguir recolher os valores necessários para esse avultado investimento, iniciaram-se em 1725 as obras de construção das novas Casas da Câmara que, sem a monumentalidade de outros edifícios congéneres situados noutros concelhos, são bem demonstrativos da periclitante situação em que sempre viveu este município alentejano. A pouca qualidade dos materiais utilizados, e o carácter precário da obra de construção, obrigou à realização de várias obras de manutenção e requalificação ao longo do tempo.

 

 

E em 1755, quando o Grande Terramoto abalou de sobremaneira a estrutura construída da localidade, o edifício ficou profundamente danificado, gerando nova necessidade de recolha de dinheiro para fazer face às imensas despesas de recuperação. É nessa altura que a Coroa assume uma quota-parte das mesmas e, para viabilizar a intervenção urgente que era necessário fazer na construção, oferece ao município a quantia de 664.397 Réis, quantia com a qual se realizou a intervenção e que recuperou o edifício.

Depois de a câmara ter crescido e consolidado a sua importância no contexto municipal alentejano, já em pleno Século XX, o município arrendou outro espaço para instalar os serviços municipais. E as velhas Casas da Câmara, mercê do restauro da Comarca de Grândola, em 1919, foram cedidas para a instalação do tão almejado tribunal.

Pelas suas características urbanas e pelo desenho extraordinário das suas ruas, a Vila de Grândola é hoje um ex-libris da História do Alentejo. E se o final do Século XX lhe consolidou as memórias, sobretudo acentuadas pela ligação perene do município às alterações impostas pela revolução, trouxe também a Grândola um cunho de serenidade que se impôs na paisagem envolvente, transformando-a numa das mais atractivas de Portugal.

A Ermida de São Miguel em Évora

João Aníbal Henriques, 19.10.21

 

 

por João Aníbal Henriques

São Miguel é o forte e sempre leal defensor dos oprimidos. É ele quem determina o desfecho das grandes lutas interiores, derrotando o mal e promovendo a ascenção dos pecadores em direcção ao céu. Guardião primordial do Trono Celeste, São Miguel é aquele que mais se aproxima do esplendor do Pai, mantendo a liderança dos anjos fiéis e garantido a vitória final contra o mal.

 

 



 

Em Évora, junto ao denominado Páteo de São Miguel, existe uma singela capela que esconde um preciso e ímpar segredo. A Ermida de São Miguel, fundada originalmente no Século XII logo depois da tomada da cidade aos Mouros, apresenta actualmente um traço arquitectonicamente pouco interessante, mercê de várias adaptações e transformações sofridas ao longo dos Séculos, mas guarda consigo a História extraordinária da mítica devoção do primeiro Rei Português ao mais forte de todos os Arcanjos.

Diz a lenda que quando Dom Afonso Henriques se preparava para resgatar a cidade de Santarém à mourama, apareceu no céu aos soldados lusos o braço armado de São Miguel e uma asa. Em virtude desse sinal, o monarca teria decidido ali mesmo criar uma Ordem Militar de Cavalaria que honrasse esse testemunho e que motivasse o exército Português a erguer a sua força através da Fé.

A Ordem Militar de São Miguel da ALA (ou da ASA), cresce assim na sombra da formação mítica da nacionalidade, emprestando-lhe uma aura de misticismo e de intervenção celeste que explica muito do fervor que os pequenos grupos de soldados lusitanos detinham quando empreendiam (e quase sempre venciam) as muitas pelejas que foram necessárias para criar o Estado Independente de Portugal.

Depois da Conquista de Évora, em 1165, Dom Afonso Henriques entrega o velho castelo (provavelmente não mais do que uma pequena fortificação precária situada numa das zonas mais altas da cidade) à Ordem Militar de São Bento de Calatrava, conferindo-lhe igualmente o dever de zelar pela reformulação da estrutura defensiva de Évora e, concomitantemente, pela construção de um templo dedicado ao Arcanjo São Miguel.

A construção, originalmente marcada pela singeleza que sempre surge associada a momentos de grande crise e alvoroço político, manteve o estilo chão tradicional daquela zona do Alentejo e foi-se reformatando aos gostos das várias épocas que se sucederam.

A abside manuelina, que a reconstrução seiscentista deixou intacta, é um dos poucos motivos de interesse formal do edifício, que se estende à escultura Joanina do arcanjo padroeiro.

Classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1939, a Ermida de São Miguel passa actualmente despercebida ao visitante mais distraído. Não só pela simplicidade com que se impõe no seio da monumentalidade extraordinária da cidade, como também pela sua integração no espaço de animação ali concretizado pela Fundação Eugénio de Almeida.

O segredo que guarda, e que poucos eborenses conhecem é, no entanto, muito maior do que a própria cidade, a região ou mesmo Portugal… porque encerra em si próprio o ensejo maior de um alicerce espiritual que deu forma à devoção e que permitiu consagrar o novo País numa Europa convulsa e avessa a esses feitos.

São Miguel Arcanjo, expoente máximo da devoção, encerra a força e a determinação necessárias para que se cumpra Portugal.É nele que reside a esperança e a Fé que Agostinho e outros congéneres colocaram na recupação do esplendor Nacional.

São Martinho de Palma (Alcácer do Sal) e o Apelo à Pureza Original

João Aníbal Henriques, 14.02.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Ali mesmo, onde começa a paisagem enorme do Alentejo, encontra-se a velhíssima Aldeia de Palma com a sua vetusta igreja paroquial e um inusitado apelo a uma visita sã e demorada em linha com o apelo visual imposto pela magnitude do edifício e pelo contraste ineludível relativamente à singeleza da povoação envolvente.
 
E apesar de se saber pouco acerca das origens mais remotas desta localidade, que já foi sede de freguesia e outrora ficou conhecida como o maior dos latifúndios Portugueses, sabe-se desde logo que a grandeza e opulência da sua igreja contrasta em definitivo com a humildade quase pagã das muitas casas que a envolvem.
 
 
 
 
Acontece assim, numa dicotomia que se repete vezes sem conta por Portugal fora, basicamente porque a grandiosidade do templo espelha a riqueza imensa da terra onde o mesmo foi construído, hoje pejado de sobro e de arroz, mas outrora conhecido pela sua fertilidade pródiga que deu corpo a lendas e histórias que fazem parte da própria história de Palma.
 
É o caso das meloas, que já no Século XIX foram cantadas como as mais doces de Portugal, como já outrora outros produtos haviam trazido fama grande a este local.
 
 
 
 
Ligada de forma absoluta ao nome do empresário José Maria dos Santos, que em meados do Século XIX adquiriu a propriedade original ao Conde do Sabugal por setenta e cinco contos mercê de um processo de litígio judicial que literalmente depauperou o proprietário original, Palma cresceu desmesuradamente durante esse período. O novo proprietário, detentor de conhecimentos tecnicamente avançados e de uma capacidade empreendedora pouco usual no Portugal de então, não só se entusiasmou com a tarefa de acrescentar mais terras à terra que já tinha, como ainda introduziu técnicas modernas nas práticas agrícolas que ali concretizou. Os novos adubos, duplicando a capacidade de produção, permitiram potenciar o valor da terra e a antiga herdade, habituada a viver ao ritmo lento e sentido do Alentejo de outros tempos, depressa se transformou num negócio próspero e pujante, afirmando-se como exemplo para outros empreendedores nacionais.
 
Toda essa nova dinâmica teve repercussões na própria igreja local e é ainda hoje visível para quem a visita. O painel azulejar dedicado a São João Baptista, está datado de finais do Século XIX e acompanha a alteração do orago original do templo.
 
Originariamente dedicada a São Martinho, com notícias documentais que comprovam a sua existência pelo menos desde 1544, quando o ermitão João Rodrigues aqui viveu, a velha ermida foi crescendo ao sabor do crescimento da própria propriedade e adquire a sua volumetria inusitada actual pela mão de João Maria do Santos, que lhe dedicou uma parte da riqueza que Palma lhe conferiu.
 
 
 
 
Destruída quase por completo com o terramoto de 1 de Novembro de 1755, a velha ermida perdeu totalmente as suas características originais com o processo da reconstrução, sendo actualmente virtualmente impossível provar factualmente a sua lendária origem do Século XIII.
 
Mas não deixa de ser irónico que o dedicatória original a São Martinho, o Santo-Menino que, encaminhado para a vida de soldado, oferece metade da sua capa de Inverno para proteger um menino pobre com quem se cruzou durante uma intempérie primaveril, tenha evoluído para a maior propriedade de Portugal, numa trajectória onde o apelo à pureza original se verga de forma inclemente à necessidade de afirmação terrena e material.
 
 
 
 
Palma, outrora na rota de todos aqueles que anualmente rumavam de Lisboa para o Algarve, fica ali a meio caminho entre Águas de Moura e Alcácer-do-Sal, na Estrada Nacional que sucumbiu perante a imponência da nova auto-estrada que atravessa Portugal. Mas merece o desvio, a visita e o deslumbramento de um lugar pequenino e singelo mas detentor de uma História sem igual.

 

A Igreja de Safara e a Assunção de Nossa Senhora

João Aníbal Henriques, 08.02.17

 

 

por João Aníbal Henriques
 
Em 1950, depois de muitos séculos de polémicas discutidas de forma aguerrida no seio da Igreja, o Papa Pio XII decreta oficialmente o dogma da Assunção de Nossa Senhora aos Céus. Pondo fim à problemática Dormição da Virgem, cujo entendimento mais antigo inferia que Nossa Senhora havia morrido naturalmente sendo posteriormente elevada para os céus, o Papa contraria a ortodoxia vigente e assume mais um dos ancestrais mistérios da Cristandade.
 
Nossa Senhora, denominada Teotóco na tradição primeva dos primeiros anos do cristianismo, numa ambígua significação que identifica simultaneamente a mulher Maria e a “portadora de Deus”, é figura maior na definição arquétipa do pensamento Português, dela emanando grande parte do “sopro divino” que orienta a Fé e a identidade do povo de Portugal. De facto, da cultualidade antiga que desemboca nos cultos marianos Cristãos, derivam grande parte das práticas rituais da Igreja Lusitana, representando tantas vezes (quase sempre em momentos cruciais da vivência religiosa Cristã) posicionamentos profundamente heréticos face àquelas que são as directrizes principais da Igreja Romana.
 
Muitos anos antes do decreto papal que determina a Assunção de Nossa Senhora, comemorada de forma simbólica no dia 15 de Agosto de cada ano, já em Portugal existia uma Fé profunda neste mistério ancestral, concretizada em obras, práticas e intenções que, mais do que fruto das desventuras do quotidiano, representavam um sólido alicerce para o corpo divino de sabedoria que sempre acompanhou a existência do País. Proliferando em todo o território nacional, em capelas, ermidas e igrejas que condicionam de forma eficaz as dinâmicas de Fé de Portugal, são muitos os vestígios arcaizantes da presença deste culto, representando a manutenção adaptada de ancestrais cultos relacionados com a fertilidade.
 
 
 
Num dos mais profundos recantos do Alentejo, ali onde a brancura do casario se assume como única arma na luta incansável contra o calor do Estio, ergue-se de forma sublime e inesperada um das mais impactantes igrejas dedicas à Senhora da Assunção. Na localidade de Safara, a poucos quilómetros de distância de Moura e de Barrancos, a pequenez cálida da pequena povoação contrasta de forma evidente com a imensidão monumental da sua igreja Matriz, num plaino de abandono da lógica que não permite perceber de imediato a razão de ser da existência de tão estranho monumento.
 
Construída de raiz algures entre 1500 e 1604, aprofundando o conceito de igreja-salão, a Igreja Matriz de Safara tem inovação de Nossa Senhora da Assunção e utiliza na sua decoração a substância primordial do Manuelino tardio Português. Austera no assumir dos valores patentes na tratadística Serliana, na qual o espaço para a humildade se compõe a partir dos valores tradicionais da arquitectura envolvente, a igreja assume o contraste entre a sua eminente monumentalidade e a pequenez antiga da povoação onde se insere.
 
Com três naves com cinco tramos que estendem o espaço de oração reservado aos fiéis, conjuga a simplicidade da sua planta com a qualidade extrema da decoração. De facto, associada à azulejaria, as paredes laterais cobrem-se de frescos polícromos pintados directamente na argamassa, em composições estranhas que lembram aos fiéis as chamas eternas do inferno final…
 
 
 
 
Submissa aos cânones de Roma, facto evidente na formulação canónica do seu espaço principal, a Igreja de Safara desenvolve abordagem de cunho onírico em várias das suas componentes. Na fachada principal, por exemplo, cruzam-se as notícias do pecado original, associado à presença da cobra que enche o imaginário colectivo da região, com o carácter arredio da simbólica da cruz quase taoista que dá forma ao corpo principal. Tendo sido constituída como Priorado da Ordem de Avis, logo no início da segunda metade do Século XII, mais se estranha esta imagética que delega no povo a responsabilidade ancestral pelo pecado e pelo apelo à sua expiação.
 
Será provavelmente essa a explicação para a incomensurável amálgama de contradições que o templo ostenta, relevando para um segundo plano a temporalidade associada a cada concretização. Tendo sido edificada sobre uma provável ermida antiquíssima que por ali já havia existido, é natural que o edifício incorpore valores estéticos e decorativos que resumem essa sobreposição, relevando assim os traços associados a uma continuidade vivencial da Fé, ao invés da sempre desagradável crispação que resulta da quebra na estrutura local de crenças e costumes. E será também essa a razão, porque a presença árabe na zona de Safara é muito evidente, que explicará alguns traços de uma anterior mesquita que terá partilhado o cunho sagrado deste importante lugar.
 
Certo é, pela observação directa daquilo que hoje vemos em Safara, que a Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora da Assunção parece não caber naquela localidade. Não só pela dimensão excessiva do seu corpo principal, cuja notoriedade se espraia por todo este trecho do Alentejo Interior, como pela formulação da sua composição decorativa. Assumindo a teatralidade da sua fachada recuada, como se se tratasse de um novo começo (ou de um recomeço) ao nível da nossa capacidade de interpretar a realidade que ali somente transparece, é Nossa Senhora da Assunção que, da dormição sagrada que lhe aconchegou os sentidos depois dos anos difíceis da sua travessia terrestre, se prepara para se elevar aos céus…
 
 
 
 
Da mesma forma que a morte se apresenta como o castigo latente para o pecado de todos os dias, a concepção imaculada de Nossa Senhora livram-na do flagelo da morte física, num plano de transmutação da matéria que se afigura profundamente alquímico. A Mãe de Jesus, venerada no actual território Português desde muitos milénios antes do seu próprio nascimento (?) concebeu de forma miraculosa, transformando espírito em carne e permitindo (e aceitando) que essa mesma carne se transmutasse também ela em espírito. Por isso, nada mais natural do que a elevada concepção da subida aos céus em corpo e Alma, num exercício de fruição da sacralidade extrema associada à própria existência de Nossa Senhora.
 
A Senhora da Conceição, padroeira e Rainha de Portugal, que foi concebida e concebeu sem a mácula do pecado original, contorna as leis da física e da vida para assumir a sua divindade através da capacidade de controlar de forma consciente o acto da criação com o qual a humanidade cresceu. Mas, ao contrário do que é mote na devoção popular, nunca Nossa Senhora se multiplicou nas devoções imensas que o seu povo lhe ofereceu. Pelo contrário. A evolução natural do seu estado superior, numa entrega que alcança a sublimidade maior por ser ela própria maior do que a vida e do que o próprio universo no seio do qual foi erigida, concretização pela transmutação dos seus estados de consciência, num exercício no qual Ela é sujeito passivo e totalmente entregue nas mãos e à vontade de Deus.
 
Nossa Senhora da Assunção de Safara é assim enorme. Basicamente porque só assim se pode entender a dimensão incomensurável do milagre sagrado da sua Assunção dos céus, numa prática ancestral que ficou como herética até praticamente à segunda metade do Século XX... 
 
É este o mistério maior de Portugal. E em Safara, no coração do Alentejo, ele vê-se, vive-se e sente-se. 

A Moura Salúquia do Alentejo

João Aníbal Henriques, 11.11.15

 

 
por João Aníbal Henriques
 
As memórias da Cidade de Moura, no Alentejo, guardam consigo o ensejo antigo da beleza e da formosura da Princesa Salúquia, filha de Abu-Hassan e noiva eterna de Bráfama, alcaide de Aroche.
 
Aos seus pés, perdido algures na brancura singela da planície, sob um manto de restolho inchado pelas águas úberes deste Outono ameno, está o tesouro antigo que os tempos fizeram questão de olvidar.
 
Quando Moura se chamava ainda Al-Manijah, Salúquia estava apaixonada por Bráfama e aguardava nervosamente no cimo da torre de menagem do castelo a chegada do seu noivo. Mas, ao contrário daquilo que deveria ter sido, os exércitos mouros foram derrotados numa breve peleja pelos audazes seguidores de Dom Afonso Henriques. E a princesa, puríssima e com o colo alvíssimo preparado para receber o seu amado, assiste perplexa à entrada encapuçada dos cristãos no recinto amuralhado onde o seu pai a havia deixado à guarda dos seus mais sérios soldados.
 
Consciente do carácter sórdido dos maus-tratos que a esperavam assim que os invasores subissem ao castelo e ciente da morte prematura de Bráfama e do seu pai, Salúquia prescindiu da vida e atirou-se do cimo da torre de menagem para o chão duro do castelo.
 
Morreu. Levando consigo o tesouro de virtude que a acompanhava e a paixão que lhe enchia a alma.
Salúquia está hoje presente no Brasão de Moura, deitada eternamente aos pés da cidade onde nasceu, onde viveu e onde se entregou de corpo e alma ao seu destino. Com ela seguem os sons ocos de uma vida radicalmente diferente daquela que hoje temos e simultaneamente igual ao devir que ainda agora constrange o dia-a-dia de todos os Portugueses.
 
Decidiu morrer ao invés de se entregar nas mãos dos Cristãos recém-chegados, impedindo-os de deleitosamente gozarem os prazeres intocados da sua imaculada existência. Mas fê-lo às mãos daqueles que a tornaram imortal, entregando-lhe muitas centúrias de vidas e sucessivas gerações de Portugueses.
 
Dizem que ainda hoje Salúquia circula por ali. Não já no corpo que entregou por amor, mas com o espírito que continua a guardar o seu segredo.
 
E nas manhãs de nevoeiro, quando toda a paisagem se cobre com a película diáfana do mistério, não são poucos aqueles que a conseguem discernir, com os seus olhos fixos no horizonte, numa espera eterna pelo amor que nunca há-de chegar a ser. Dizem também, sobretudo aqueles que vêem com os olhos da sua própria alma, que Salúquia já não é uma mulher, tendo assumido um corpo de cobra que deambula sinistramente pelo meio daqueles que a pressentem… 
 
A cobra encantada de Moura. No Alentejo.