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A Sé Catedral de São Salvador em Angra do Heroísmo (Ilha Terceira / Açores)

João Aníbal Henriques, 08.03.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A representação simbólica de Cristo, numa linha de recriação da sacralidade que perpetua no tempo os laivos da própria eternidade, surge apoteoticamente associada ao acto da salvação. Jesus, simultaneamente Deus e Homem, Cristifica-se para salvar a humanidade, entregando-se totalmente nas mãos do Pai e abandonando a Sua vontade para que se garanta o espaço suficiente para que se expresse a vontade do Criador.
 
O Salvador do Mundo é, assim, a pedra angular na sobrevivência daqueles que sofrem e simultaneamente eixo central na Fé daqueles que paradoxalmente o buscam para nele encontrarem a plenitude de uma existência a que aspiram chegar. Para Ele convergem os olhares desesperados dos que anseiam por um Mundo melhor e é também nele que assentam a Fé os que o tomam por exemplo, procurando na replicação da sua imagem o cadinho de santidade que lhes assegura a eternidade.
 
Na Cidade de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, o fulcro da vivência religiosa é precisamente consagrado a São Salvador. A Sé Catedral, com dedicação ao Rei do Mundo, espelha de sobremaneira este intrincado processo de Fé, conjugando a serenidade da contemplação passiva como repositório de graças com o despojamento total e absoluto daqueles que nele procuram as condicionantes que lhes permitem compreender e perceber os desafios impostos pelo devir quotidiano.
 
 
 
 
Construída provavelmente após a colonização da Ilha Terceira no Século XV, a igreja primitiva é hoje quase completamente desconhecida dos historiadores. Logo em 1496, após a nomeação do seu primeiro vigário, a comunidade Cristã de Angra do Heroísmo percebeu que as dimensões do templo eram sobejamente inferiores às suas necessidades e que a prosperidade da ilha, associada a uma paisagem extraordinária, depressa faria crescer o número de fiéis, exigindo a construção de uma catedral de maiores dimensões.
 
Depois de várias iniciativas que tinham como objectivo o de sensibilizar a Coroa para esta necessidade essencial do povo Açoriano, foi o Cardeal Dom Henrique, já em 1568, quem mandou construir a nova igreja. E, assumindo para si a responsabilidade pela evangelização dos povos que ali habitavam, decide pagar ele, através de um imposto que a Coroa geralmente cobrava sobre os pastéis produzidos na ilha, os cerca de três mil Cruzados anuais que as obras custavam.
 
 
 
 
O primitivo Altar dedicado ao Salvador do Mundo foi assim substituído pela actual catedral, cuja construção se iniciou em 1570, quando se realizou a cerimónia solene de colocação da primeira pedra. As suas linhas maneiristas, que muitos advogam ser uma mera adaptação regional da arquitectura chã que existia na maioria dos pequenos lugares dos domínios continentais, são da autoria do arquitecto Luís Gonçalves, embora sucessivas adaptações, resultantes de intervenções variadas que o novo edifício conheceu, tenham alterado bastante o projecto original.
 
A sua surpreendente disposição no espaço, contrariando as regras normais neste tipo de construções e subvertendo o princípio de orientar para Nascente o seu Altar principal, fica a dever-se às imposições do doador do espaço que pretendeu reservar para si e para os seus o direito de ocupar o principal espaço em frente à catedral.
 
 
 
 
De dimensões imensas para a escala da Ilha Terceira, a Catedral de Angra é certamente o maior espaço de culto do Arquipélago dos Açores, para ele convergindo as dinâmicas apostólicas que determinam a sua importância na própria História de Portugal. De facto, em vários momentos da história, foi em Angra do Heroísmo que se definiram os critérios políticos que haviam de resultar em novas formas de governação de Portugal.
 
As Guerras Liberais, por exemplo, tiveram largo impacto na praxis social da Ilha Terceira e ajudaram a definir de forma sistemática aquilo que viria a ser a concretização dos novos poderes em Portugal. Nesse período, do qual o Obelisco da Memória traduz o essencial, travaram-se na catedral várias questiúnculas que depauperaram o seu tesouro e que ajudam a perceber o impacto que a guerra teve no próprio desenvolvimento de Portugal.
 
Tendo sido bastante afectada pelo grande terramoto que atingiu os Açores em 1980, e também pelo incêndio que a afectou em 1984, a Catedral de São Salvador viu quase completamente destruídos os seus elementos decorativos mais importantes. O processo e reconstrução, no entanto, acabou por redefinir de forma consolidada a sua colocação no âmbito do novo urbanismo terceirense, recriando um processo que teve como principal consequência uma enorme vinculação do povo local à Fé no seu santo padroeiro.
 
 
 
 
Sem a decoração barroca que noutros tempos levou muito longe a fama da catedral, São Salvador de Angra do Heroísmo mantêm ainda intocadas várias das muitas características que a tornam num local especial. O seu baptistério, por exemplo, ostenta ainda as pinturas maneiristas da “Circuncisão de Cristo” e da “Adoração dos Magos” que abrem a cartela que marca aquele importante espaço terceirense. Foi ali que a maior parte dos paroquianos de Angra do Heroísmo foram baptizados e, com eles, dois vultos muito grandes da nossa História. O primeiro foi o Beato João Baptista achado, mártir açoriano que pereceu no Japão num esforço hercúleo de evangelização; e o segundo a figura quase mítica de Gongunhana, o líder africano capturado por Mouzinho de Albuquerque e que, já no Século XIX, aqui recebeu a água que o iniciou na vida Católica.
 
Cognominado como o “Leão de Gaza”, Gongunhana foi o último imperador do Império de Gaza, situado no actual território de Moçambique. Depois da sua captura pelo Estado Português, foi deportado para o Açores onde chegou em 1896. A sua chegada ao porto da cidade, perante o espanto e a curiosidade imensa da população local, foi um dos mais significantes episódios da história recente de Angra do Heroísmo. Cabisbaixo e humilhado, o prisioneiro e os seus companheiros foram levados para o Monte Brasil onde ficariam instalados durante o período do exílio. Ao contrário do que muitos esperavam, a sua integração na comunidade local e na vida social da ilha decorreu de forma muito linear e simples. A humildade da sua postura e a forma como se interessou pelos usos e costumes Portugueses, acabaram por fazer com que o sentimento inicial de repúdio sentido pelos locais, se transformasse num misto quase carinhoso de adopção dos novos visitantes. Poucos anos depois da sua chegada, Gongunhana aprende a ler e a escrever e, em 1899, baptizou-se precisamente no baptistério da Catedral de São Salvador. Foi ali que acabou por falecer, já no ano de 1906, tendo sido sepultado no cemitério local.
 
 
 
 
Para ele, como também para todos aqueles que procuraram na Ilha Terceira caminhos para novas formas de vida, São Salvador representou sempre um papel essencial. No seu significado de profundo despojamento da materialidade, essencial na definição dos novos rumos que todos haviam de trilhar em direcção ao Céu, São Salvador estabelece a ponte com os cultos ao Espírito-Santo que corporizam ainda hoje a face mais visível da Fé local, desenvolvendo laços de enorme impacto no dia-a-dia das populações. O Senhor que salva a todos e que a todos acolhe nos seus braços é, afinal, exactamente o mesmo que com o Espírito-Santo coroa a criança e lhe oferece, porque ela não a entende, toda a dignificação da vida social desprovida de interesse e/ou de importância quando o destino final é o paraíso e a presença perante Deus.
 

 

A Sé Catedral de São Salvador de Angra do Heroísmo, classificada como Monumento Regional desde 11 de Junho de 1980, é hoje possivelmente o mais significativo monumento da Ilha Terceira. Pelas suas características arquitectónicas, pela história que patenteia e, sobretudo, pelo significado profundo da sua presença na definição da Identidade Açoriana, é peça de visita essencial para todos os Portugueses que tenham a sorte de visitar esta ilha tão especial. 

O Obelisco da Memória em Angra do Heroísmo e a Guerra Civil Portuguesa

João Aníbal Henriques, 24.10.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Um dos piores flagelos que afectou Portugal ao longo da sua História, foi a guerra civil, decorrida entre 1828 e 1834, que opôs os reis e irmãos D. Miguel e D. Pedro IV numa luta fratricida que quase destruiu o País.
 
D. Pedro de Alcântara de Bragança, filho primogénito do Rei Português D. João VI, recebeu em 1820 a incumbência do seu pai de ficar no Brasil em seu nome, com a função de príncipe regente. Devia, durante a ausência do pai na metrópole para tratar dos assuntos relacionados com a Revolução Liberal, representar a Coroa de Portugal nas terras de além-mar. Mas, pressionado pelos liberais Portugueses a regressar à metrópole e a fazer regredir o estatuto autonómico do Reino do Brasil, o príncipe cede aos interesses da antiga colónia e, num acto de traição da Portugal, é aclamado Imperador do Brasil, no dia 12 de Outubro de 1822, depois de ter proclamado a independência do novo reino num episódio que passou a designar-se como o “Grito do Ipiranga”.
 
 
 
 
A solução de governabilidade e sucessão encontrada depois da morte de Dom João VI, passava pela colocação no trono Português da sua neta D. Maria da Glória, filha primogénita do seu filho brasileiro, que deveria desposar, para garantir o sustento jurídico do seu vínculo Real, o seu tio Dom Miguel de Bragança. Dado que a legislação em vigor não permitia que um só monarca acumulasse dois tronos e a praxis jurídica Portuguesa determinava o ‘Grito do Ipiranga’ como um acto de traição à Pátria fazendo cessar quaisquer direitos sucessórios que o seu promotor pudesse ter, este acordo adaptava-se às circunstância e selava-se assim um pacto que garantia a soberania de Portugal e do Brasil, ao mesmo tempo que se acautelavam os interesses das duas Nações no xadrez político que estava a definir novas fronteiras no Mundo de então.
 
Mas, como nem sempre a linearidade dos acontecimentos se compadece com as necessidades do dia-a-dia, os interesses específicos do Brasil, de França e da Inglaterra, misturados ainda com o clima de tensão que nunca se diluiu relativamente à presença Holandesa em terras de Vera Cruz, acabaram por determinar uma alteração substancial nos compromissos políticos assumidos. O Imperador do Brasil, com o apoio dos liberais ingleses, cujos interesses eram muitos e muito variados em Portugal, recebeu a incumbência de recuperar a Coroa Nacional, alegando que o seu irmão, entretanto aclamado Rei pelo povo português, havia quebrado o pacto e o juramento feito à Carta Liberal.
 
 
 
 
Dom Miguel, de espírito vivo e de coração profundamente vincado pelos interesses da Nação Portuguesa, não acatou as ordens do irmão brasileiro e recusou responder de forma cabal aos interesses ingleses. E o resultado, de todos bem conhecido, foi uma guerra civil terrível que dividiu o País em dois e que teve como principal consequência um estado de permanente dependência relativamente a Inglaterra.
 
Quando as Cortes de 1828 aclamaram Dom Miguel como Rei de Portugal, num acto de autonomia relativamente àquilo que haviam sido os principais laivos da determinante movimentação liberal que afectou o País nesta época, passaram a estar em causa um conjunto de leis que haviam sido definidas por países estrangeiros com interesses diferentes daqueles que eram os dos Portugueses de então. Dom Miguel, expressão completa daquilo que sempre havia sido a pedra angular da Portugalidade, representava assim um renovado sopro de independência do País relativamente a interesses terceiros, possivelmente deixando antever ainda alguns resquícios da essência nacionalista que resultou da Revolução de 1640.
 
O regresso à política municipalista, recuperando práticas antigas do Portugal de antanho, foi uma das medidas mais populares tomadas pelo novo Rei. Dando um passo atrás e recuperando valores associados ao absolutismo, renegando políticas estrangeiradas que haviam entrado em Portugal através de organizações de índole sobretudo inglesa e francesa e que nada tinham a ver com a tradição local, Dom Miguel alcança o apoio incondicional do povo, da nobreza tradicional e da Igreja. Mas o esforço diplomático internacional levado a cabo pela Coroa, querendo fazer reconhecer o rei, apenas consegue o apoio dos recém-nascidos Estados Unidos da América e do Vaticano, tendo-se debatido com o firme silêncio das restantes nações europeias.
 
 
 
 
O seu irmão, Imperador Dom Pedro I do Brasil, por seu turno, desenvolve contactos no mesmo sentido com os mais importantes movimentos liberais e para-maçónicos da Europa. Tendo conseguido o seu apoio, que tinha como principal objectivo o recuperar desses valores políticos liberais, acaba por abdicar do trono brasileiro, onde deixou o seu filho mais velho que foi aclamado como Imperador Dom Pedro II do Brasil, e regressa a Portugal com o objectivo de usurpar o trono.
 
A guerra civil entre absolutistas e liberais, apoiantes de Dom Miguel e de Dom Pedro, começa assim a dilacerar o País, impondo um clima de terror absoluto que vai mudar durante muitos anos a existência dos Portugueses. Começando por ser favorável aos miguelistas, que contavam com o apoio da maior parte dos Portugueses, o rumo da guerra mudou de forma inexorável quando Dom Pedro recebe o apoio dos ingleses. Depois de desembarcar nos Açores, onde transformou a Ilha Terceira e a Cidade de Angra no seu quartel-general, Dom Pedro lança uma série de ofensivas bem conseguidas contra o exército Português, alcançando vitórias que acabarão por ser vitais para o controle efectivo de Portugal.
 
A dureza das batalhas, bem documentada através da longevidade que a sua memória alcançou, teve o seu apogeu precisamente no Arquipélago dos Açores, que serviu de cenário para alguns dos seus mais ensanguentados episódios.
 
Na capital da Ilha Terceira, a força dos combates foi tão grande que o Rei D. Pedro IV, depois de recuperar o controle do trono, decide alterar o nome da cidade. A velhinha cidade de Angra, ganha então o epíteto ‘do Heroísmo’, que passa a integrar-lhe o nome com o objectivo expresso pelo rei de não deixar esquecer o heroísmo dos soldados liberais que ali apoiaram a sua causa.
 
 
 
 
No Alto da Memória, num flanco sobranceiro à cidade de Angra do Heroísmo, existe ainda hoje um estranho obelisco de forma piramidal, conhecido como o “Obelisco da Memória” que recorda essas batalhas. Erigido em 1856, foi feito com pedras retiradas do antigo Castelo dos Moinhos e integrando uma pedra trazida do porto da cidade, que teria sido lendariamente a primeira pedra pisada pelo Rei Dom Pedro IV quando chegou à Ilha Terceira.
 
A sua estética profundamente maçónica, com a sua estrutura piramidal que não nega a sua origem estrangeira, assenta numa vasta e complexa estrutura simbólica que traduz de forma muito assertiva o conjunto de valores e princípios que determinaram o apoio europeu ao Rei Dom Pedro. É essa influência, aliás, que melhor explica a dicotomia entre um país que genericamente apoiava o seu rei absoluto, Dom Miguel, e que se confrontou com as movimentações liberalizantes que pouco ou nada tinham a ver com as práticas reais em Portugal.
 
 
 
 
Mais do que a evolução das mentalidades que sustentavam a Coroa de Portugal, o obelisco piramidal do Alto da Memória, em Angra do Heroísmo, é a chave que permite interpretar as muitas mudanças que o País conheceu daí em diante e que, na sua generalidade, se prolongam até hoje no devir quotidiano dos Portugueses.
 
Deve ser visitado e conhecido, num esforço de interpretação que deixa antever aquilo que outrora foi Portugal.