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A Anta da Pedra da Orca em Gouveia

João Aníbal Henriques, 22.05.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A Anta da Pedra da Orca, também conhecida na região como Dolmen do Rio Torto, é um dos mais importantes monumentos do Concelho de Gouveia. A definição estrutural da história da comunidade, marcada de forma evidente pela presença deste monumento megalítico, é bem visível na forma como o designativo do local se impõe como topónimo espacial, até porque, sendo sinónimos as palavras anta e orca, derivam ambos da referência expressa ao megalítico que dá corpo a este espaço, e que desde há muito foi marca perene no devir quotidiano da localidade.
 
Analisada pela primeira vez ainda em pleno Século XIX pelo ilustre investigador minhoto Martins Sarmento, que por ali deambulou em busca das origens primevas da portugalidade, a Anta da Pedra da Orca foi alvo de posteriores investigações sob a tutela de Maximiliano Apolinário, que ali encontrou vários vestígios arqueológicos de grande importância e que actualmente se podem ver no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa.
 
 
 
 
Composto basicamente por pontas de seta, fragmentos cerâmicos e restos de ossadas humanas, o espólio encontrado nesta anta reforça a sua datação como originária do final do período Neolítico, com cerca de 8000 anos, enquadrando-se tipologicamente nas estruturas comuns desse período existentes por toda a Península Ibérica. A sua estrutura pétrea, da qual subsistem alguns dos esteios que suportavam a grande pedra de fecho, estaria originalmente tapada por uma grande quantidade de terra e pequenas pedras que, configurando uma espécie de monte artificial, teria como principal função a de dissimular o monumento na paisagem, evitando assim a sua identificação e o eventual saque que dela resultasse.
 
A câmara, ou seja, o espaço central da anta, teria uma funcionalidade eminentemente funerária, servindo para a deposição dos restos mortais dos membros da comunidade local, num contexto simbólico que denota já uma alargada capacidade simbólica e que exigia necessariamente uma estruturação social complexa e bem organizada. O corredor de acesso, numa alusão simplificada ao canal vaginal feminino, supõe uma ligação perene entre à ritualidade ligada aos cultos da fertilidade, presumivelmente em linha com os cultos da Deusa-Mãe e da mitologia associada ao eterno feminino cujos vestígios surgem amiúde em outras antas espalhadas por todo o território nacional.
 
Nesta perspectiva, em que os cultos matriarcais prevalecem, assume especial importância a sua localização numa das encostas Nascentes da Serra da Estrela, simbolicamente conotada com essa vertente feminina e que determinou de forma evidente toda a simbólica religiosa que virá a caracterizar as comunidades humanas que ali se instalam em períodos subsequentes. É esta Deusa-Mãe, cujo útero úbere se enche de vida num processo mágico que o Homem de então desconhece, quem define a ligação simbólica mas pragmática que os povos desta região desenvolveram com a mitologia de origem feminina e que, depois da queda do Império Romana e da Cristianização do território peninsular, se vai paulatinamente adaptando aos novos uso e costumes, adoptando a essência mais profunda de uma associação que a aproxima da figura primeva da Mãe de Jesus, ou seja, de Nossa Senhora…
 
 
 
 
E, se a Rainha e Padroeira de Portugal é Nossa Senhora desde 1640, é certo também que a devoção mariana conflui no Portugal que hoje temos precisamente para o designativo de Nossa Senhora da Conceição ou seja, numa calara alusão ao carácter fértil da Mãe de Deus, recriando assim uma ponte simbólica entre aquela que se assume como a principal das linhas de pensamento religioso actual e estas primitivas expressões do sagrado nas comunidades. Em suma, é a mesma devoção sagrada, numa expressão de mistério que impõe a ultrapassagem das barreiras do tempo para, no âmbito de um contexto comum, juntar comunidade cujas vidas estão separadas por espaços de vários milhares de anos, mas que convergem na sua capacidade de identificar a divindade nos mesmos pressupostos e de para eles encaminhar a expressão mais profunda da sua Fé.
 
O regresso às origens, ao útero materno e ao mundo interno configurado pelo ninho escuro do ventre materno, transforma-se assim num processo de recondicionamento da própria vida. Quem nasce, necessariamente cresce, vive e morre, regressando então às suas origens num périplo de retrocesso à primitiva pureza original. A anta, de uma forma geral, e esta de Gouveia em particular, é assim o primeiro pilar estrutural de uma forma de pensamento que dará corpo àquilo que são hoje os alicerces da própria humanidade, ajudando a compreender a complexificação das relações entre os homens a partir da forma como eles expressam o seu entendimento pelos mistérios maiores da vida (ou das vidas) que vão vivendo.
 
No caso específico da Anta da Pedra da Orca, a ligação ancestral à estrela ainda aprofunda mais esse pressuposto. A estrela, simbolicamente expressando a forma da luz primordial e inacessível, ou seja, a candeia que acompanha o homem no se percurso final em direcção ao céu, é fundamentalmente um apelo à condição primordial da dependência da vida relativamente à mulher. Não há vida, nem trabalho, nem prosperidade sem a mágica sublime da concepção e do nascimento. E, da mesma maneira, nada disso existente sem a condicionante final da morte, expressão sublime da existência humana, exigindo assim sistemas complexificados de pensamento que ajudem a explicar e a perceber um fenómeno que, sendo transversal a todos os seres humanos, é por eles entendido de forma incipiente.
 
As ossadas humanas encontradas no espólio da Anta da Pedra da Orca são, por isso, os vestígios que restam das comunidades que certamente durante várias gerações utilizaram este monumento como espaço funerário, sendo que os restantes objectos votivos, principalmente as pontas de seta e os recipientes cerâmicos que ali foram descobertos, teriam uma funcionalidade efectiva na vida subsequente daqueles que ali eram depositados, num regresso ao colo materno, quando a morte de aproximava e a vida chegava ao seu fim definitivo e terreno. Os construtores neolíticos, ainda tão primitivos tecnicamente quando comparados com aqueles que lhes sucederam, tinham já nessa época a convicção profunda da dualidade espírito-corpo que actualmente define as religiões modernas, consignando a morte como um mero momento num percurso ou caminho mais longo e amplo em direcção à eternidade espiritual dos que morreram.
 
 
 
 
Por tudo isto, mais do o impacto maravilhoso que este monumento impõe sobre quem o visita, a Anta da Pedra da Orca, em Gouveia, representa de forma subtil a operação maior pela qual o homem passou em direcção à humanização que hoje temos. E, definindo de forma rigorosa a via que a isso levou, num percurso necessariamente longo e complexo, mostra-nos com exactidão o papel que nesse desiderato desempenhou a comunidade que habitava naquela região do actual território português.
 

 

É que, não sendo ainda o Portugal que hoje temos, é já o embrião totalmente perfeito dos Portugueses que hoje temos a capacidade de ser.