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cascalenses

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Mouros e Romanos em Assentiz – Rio Maior

João Aníbal Henriques, 19.04.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sendo certo que as memórias mais antigas do actual Concelho de Rio Maior se perdem nas brumas do tempo, existindo vestígios antiquíssimo de actividade humana que remontam ao primórdio da instalação dos primeiros homens sobre a Terra, é mais certo ainda que tal ancestralidade promove uma história que mistura factos com lendas, recriando uma espécie de cenário maravilhoso que enriquece a Identidade local.
 
Em cada canto e recanto destas terras, provavelmente em estreita ligação com a fertilidade do solo e com a sua extraordinária capacidade produtiva, existem tesouros escondidos e memórias ocultas de princesas mouriscas que de tempos a tempos insistem em nos maravilhar.
 
É o que acontece em Assentiz, a mais recente freguesia do município de Rio Maior. Situada em zona próxima da Vila da Marmeleira, e beneficiando da mesma ligação férrea à força telúrica da terra, Assentiz desenvolve-se sobretudo a partir do Século XVIII, acompanhando o desenvolvimento da casa senhorial que mais tarde dará lugar ao Morgado de Assentiz. É, pois, esta ligação profunda à terra e aos ciclos da natureza que vem determinar os fluxos de desenvolvimento do local, muito embora os vestígios que subsistem, bem como a documentação que se preservou, permitam supor que a génese de tudo surge em momento bastante anterior.
 
 
 
 
A presença romana em terras de Rio Maior, bem atestada pelos vestígios arqueológicos existentes, desenvolve-se a partir da antiga estrada que ligava Lisboa, Santarém e Coimbra, determinando assim que o atravessamento daquelas que são agora as fronteiras desta concelho levassem ao reconhecimento da sua riqueza e fertilidade.
 
De facto, junto à actual localidade de Assentiz, podemos encontrar os restos do que popularmente se designa como a “Ponte Romana”, ligando as margens do ribeiro que por ali passa. A Ponte Romana de Assentiz, originalmente com dois arcos que um cataclisma acontecido no Século XVIII terá reduzido a um só, será assim um dos vestígios centrais da presença dos invasores itálicos nesta parte do território rio maiorense. Mas, tal como acontece amiúde com este laivo de deslumbramento lendário que envolve as terras de Portugal, parece que a dita estrada não passava exactamente neste lugar e, nesse caso, a ponte em questão terá uma origem diferente daquela que a sabedoria popular lhe atribui.
 
Qualquer que seja o caso, é importante ressalvar que a memória associada a este monumento é indestrutível, tal como o são os inúmeros vestígios da presença dos Romanos em território de Rio Maior. E a ponte, tenha sido construída durante a ocupação Romana ou, como alguns investigadores advogam, somente durante o reinado da Rainha Dona Maria I, já em pleno Século XIX, contribui de forma decisiva para o reforço da Identidade local, promovendo a ligação intrínseca entre o povo que ali habita e as memórias ancestrais que deram lugar à construção da monumentalidade actual.
 
 
 
 
No caso da Fonte Mourisca, local de rara beleza que mistura a sua lendária origem com um enquadramento cenográfico sem par, a situação é tendencialmente idêntica. Reza a tradição popular que a fonte será de origem moura e terá sido construída alguns anos antes da reconquista cristã do território de Portugal. Mas, se na sua formulação simbólica a dita fonte carrega consigo o peso das inúmeras lendas que povoam a imaginação de quem visita o local, a sua estrutura, associada a um tanque cuja origem terá estado no processo de desenvolvimento agrícola que o senhorio de Assentiz terá trazido para a povoação, parece apontar para uma origem mais recente, na qual surge incauta uma ligação ela sim antiga aos ritos da água na sobrevivência rural do seu povo.
 
Qualquer que seja a realidade associada ao monumento, certo é que as lendas sobrevivem ao real e, no caso da Fonte Mourisca de Assentiz, povoam o imaginário popular de histórias que se misturam com factos numa amálgama de deslumbramento que não deixa ninguém indiferente.
 
 
 
 
Diz a lenda que no local onde actualmente se situa a fonte, terá existido um antiquíssimo assentamento mouro que teia como função defender aquelas terras da investida dos Cristãos. E que, no fulgor da batalha empreendida pelo primeiro Rei de Portugal, terão os mouros fugido deste local, deixando atrás de si uma imensidão e tesouros que, apesar de nunca terem sido vistos, são desde logo pilares estruturais do imaginário popular. De acordo com esta história, existiria por ali, provavelmente aproveitando a nascente que alimenta a estrutura actual, uma gruta profunda que era utilizada como espaço para guardar material. E os mouros, perseguidos de forma indefectível pelo cavaleiros cristãos, optaram por utilizá-la para ali esconder as riquezas imensas que haviam conseguido alcançar durante a sua estada em terras de Portugal.
 
Ora, como é fácil de perceber, até porque a presença sarracena nestas terras se prolongou ao longo de muitos séculos, não se trata propriamente de uma utilização temporária de um espaço no qual as pilhagens serviam de instrumento único para a obtenção de riquezas sem igual. Pelo contrário. Os muitos séculos da presença islâmica indicam precisamente um assentamento longo e definitivo, com ciclos de vários gerações a explorar a terra e o espaço e a considera-lo como coisa sua definitivamente e em carácter de permanência final. Assim sendo, qualquer tesouro extraordinário que os Árabes tenham deixado em Assentiz derivaria da força do seu trabalho, da sua dedicação à terra e dos ciclos de riqueza que geracionalmente haveriam de resultar da pacatez da sua vida rural. Isso explica a herança ao nível das técnicas agrícolas, dos pressupostos linguísticos, dos usos e costumes, etc.
 
 
 
 
Por isso, e contrariando a voz popular, a haver tesouro, nunca ele poderia ser o manancial extraordinário de riquezas que a lenda faz por descrever…
 
O conjunto formado pela fonte com as suas três bicas, os tanques de lavagem de roupa e a mãe-de-água que os abastece foi totalmente recuperado nos últimos anos e apresenta-se hoje como um bom exemplo do que com o património se pode fazer. Ponto central da vida comunitária de Assentiz, uma vez que durante muitas décadas era ali que a população ia buscar a sua água e era também ali que se lavava a roupa de toda a gente, a fonte é hoje um ponto incontornável nas memórias da terra.
 
 
 
 
Os romanos e mais tarde os mouros, que certamente deambularam noutros tempos por estes espaços extraordinários do município de Rio, decerto teria dificuldade em reconhecer o Assentiz que hoje temos.
 
Mas, mais importante do que os factos que contrariam as lendas, é que neste dois monumentos ímpares de Rio Maior, estão concentrados os arquétipos ancestrais da Identidade deste concelho bem como os sonhos, as memórias e o ensejo das suas gentes.
 
E é isso o mais importante em qualquer terra! 

A Vila da Marmeleira em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 30.03.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A inscrição patente na Igreja de São Francisco de Assis, na Vila da Marmeleira, Concelho de Rio Maior, marca a data terrível de 1755. Mas, contrariamente ao que se possa apensar, nada tem a ver com o grande terramoto que afectou Lisboa e arredores nesse mesmo ano. Pelo contrário, o ano de 1755 marca para a Vila da Marmeleira o apogeu de um processo de crescimento que culmina na sua emancipação em relação a Assentiz e a sua afirmação enquanto comunidade de grande importância no devir histórico e administrativo do concelho.
 
De facto, com raízes históricas que se perdem no tempo, Marmeleira deve o seu nome a uma árvore com o mesmo nome que terá sido lendariamente trazida da Índia por António Faria no Século XVI. Mas já existira certamente muito antes disso, uma aglomerado habitacional neste espaço, tal como o atestam os achados arqueológicos no monte de São Gens e, sobretudo, as provas de ocupação do período muçulmano que abundam nas redondezas.
 
 
 
 
A Igreja da Marmeleira, dedica a São Francisco de Assis, terá sido construída originalmente no Século XVII pelo Abade de Alcobaça como resposta aos muitos problemas que as cheias periódicas que afectavam o Concelho de Rio Maior traziam aos seus habitantes. De facto, o riacho que vem de São João da Ribeira e que atravessa a actual freguesia em direcção ao Rio Maior, transbordava várias vezes ao ano, impedindo os moradores da Marmeleira de chegarem à igreja para assistirem à Missa. Por isso, o novo templo, em forma de pequena ermida rural, terá sido edificado nessa altura, atestando a importância da localidade e dos seus moradores .
 
A referida data de 1755, que ainda hoje se mantém na fachada da igreja, refere-se assim a campanhas de obras efectuadas nessa data, sendo que as mesmas terão sido refeitas, já no Século XX, dotando a igreja da sua actual configuração. Do templo original, singelo na sua formulação chã e em linha com aquilo que terá sido, desde sempre, a principal estrutura económica do local, sobra somente um pequeno altar, agora dedicado a Nossa Senhora da Conceição, que se mantém incólume no interior da igreja.
 
 
 
 
São Francisco de Assis, a quem o templo foi dedicado, é agora a figura-mãe da devoção religiosa do povo da Marmeleira. As suas festas anuais, que misturam a ligação ancestral à Rainha e Padroeira de Portugal com a apologia da pobreza preconizada por São Francisco, são tradutoras privilegiadas do linear percurso histórico desta recanto de Portugal, denotando a ligação eminente e profunda à natureza e aos seus ciclos agrícolas, bem como ao despojamento efectivo perante a grandiosidade e a pujança de Deus. Os Marmelenses, vocacionados para uma vida devotada à terra e aos seus frutos, constituem assim a referência primeira de uma localidade que se concretizou a partir das exigências e as vicissitudes impostas pela água e pelas agruras do tempo, mas que delas depende para o esforço quotidiano da sobrevivência e da existência humana.
 
 
Isto é bem visível na própria localização da povoação, colocada de forma segura a uma altitude de cerca de 100 metros para evitar possíveis influências nocivas da subida dos níveis das águas, bem como na sua relação com a paisagem envolvente.
 
Dos equipamentos que hoje compõem o património da Vila da Marmeleira, para além da Igreja de São Francisco de Assis, fazem parte o miradouro, o tanque de lavagens comunitárias e a fonte de chafurdo. Todos eles, atestando a antiguidade da ocupação humana do território e a sua vinculação agrícola, se situam em planos de inferioridade relativamente ao centro da povoação, mostrando que o seu crescimento de faz a partir desse esforço de sobrevivência e explicando o apelo à singeleza que todo o conjunto urbano nos oferece.
 
 
 
 
Digno de nota especial, pela importância iconográfica que possui, é o painel de azulejos neo-clássicos que decora o espaço da Fonte dos Namorados. Este manancial de água, provavelmente nascente natural que terá sido aproveitada pelo menos desde a época romana, é de crucial importância na definição dos principais eixos de crescimento da Vila da Marmeleira. O veio principal, oriundo do pequeno morro onde se ergue a igreja, será provavelmente o que resta da antiga fonte de chafurdo que terá abastecido a região.
 
Na iconografia que ilustra este espaço, que até pelo seu nome indica a importância que enquanto espaço central de sociabilização, é possível ver as juntas de bois, os lavradores e as lavadeiras que noutros tempos deram corpo à sociedade Marmelense. Apesar de simbólica, esta recuperação daqueles que terão sido os estereótipos principais n localidade permite-nos compreender a forma como é dessa componente rural, miscenizada provavelmente com a componente militar que resulta da posição de grande importância estratégica que toda esta região teve noutros períodos da História, que depende o devir quotidiano das comunidades, num acto de entrega aos redutos primevos da natureza que se espraia na forma como se definem os arruamentos, se constroem as casas e se criam os espaços de uso colectivo.
 
 
 
 
Nos lavadouros públicos, situados a poucos metros da Fonte dos Namorados e aproveitando o manancial de água que ali é captado, encontram-se presentes os mesmos motivos iconográficos, sendo que o painel azulejar, de fábrica mais recente e marcado com a data de 1934, nos aponta precisamente a simpatia como o principal epíteto da Vila a Marmeleira.
 
Elevada à categoria de vila em 1927, pela mão do então Presidente da República Marechal Carmona, a Marmeleira é freguesia desde 1878. O final do Século XIX, com a autêntica revolução que se concretiza na agricultura Portuguesa, é o início do período de maior fulgor da História da Marmeleira, acompanhando o crescimento da antiga freguesia a partir da consolidação das novas práticas agrícolas e dos produtos que se foram afirmando comercialmente na região.
 
 
 
 
Airosa, bonita e simpática, a Vila da Marmeleira é actualmente um dos mais encantados recantos do Ribatejo, preservando o carácter rural do seu nascimento mas incluindo uma série de benefícios urbanos dignos de povoação com maior dimensão e mais fama. O largo do corte, situado nas traseiras da igreja, dá conta de uma vivência comunitária que se mantém activa,  ao mesmo tempo que nos oferece pistas importantes para compreender aquilo que foi a evolução da freguesia desde o início do século passado. De salientar, pela importância que tem na compreensão deste devir, a placa epigrafada colocada junto ao miradouro, que sublinha precisamente o facto de as obras terem sido feitas em 1969 por iniciativa da comissão local de festas com o apoio da Junta de Freguesia e da Associação dos Amigos da Marmeleira.
 
Vale a pena estacionar o carro num dos muitos espaços existentes no centro da localidade e, com máquina fotográfica nas mãos, percorrer a pé os cantos e recantos deste espaço tão especial. Ali se encontrarão, para deleite de quem já pouco sabe sobre as raízes rurais de Portugal, os vestígios ainda bem vivos de uma prática em que homem e natureza convivem em sã harmonia, num pleito de simpatia cuja índole pacífica se perpetua no espaço e no tempo.