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cascalenses

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A Ponte Velha de Cheleiros (Mafra)

João Aníbal Henriques, 19.10.21

 

 

por João Aníbal Henriques

O profundo vale de Cheleiros, no actual Concelho de Mafra, surge marcado pelo profundo bucolismo e por um apelo à ruralidade ancestral da região. O rio, calcorreando lentamente os antigos quintais, serviu sempre de manancial do qual depende a sobrevivência daquelas gentes. E lá no meio, usufruindo de uma privilegiada posição de cenário numa paisagem que não deixa ninguém indiferente, a singela ponte velha transmite um carácter de vetustez que potencia os ecos antigos dos passos por ali dados pelos nossos avós.

 

 

Ninguém conhece com exactidão as origens da Ponte Velha de Cheleiros. A tradição popular, provavelmente assente nas muitas histórias que proliferam plenas de encanto, apontam para uma origem romana deste monumento.

E provavelmente terão razão. Até porque, no que à envolvente diz respeito, toda a região está repleta de vestígios da presença romana. E, nesse contexto, natural seria que a rede viária fosse essencial para facilitar o trânsito entre as várias comunidades e, dessa maneira, para sustentar o fluxo comercial que era determinante para o sucesso nesses tempos.

 

 

A ligação entre Mafra e Sintra, ambos pólos de reconhecida influência na estrutura económica romana, determinam a necessidade imperiosa de se transpor o Vale de Cheleiros e a ribeira que o divide a meio. A ponte, com a sua estrutura alicerçada em grandes silhares de excelente emparelhamento, aponta para essa origem construtiva, apesar de muito do seu aspecto actual resultar de sucessivas renovações e adaptações que lhe foram impostas ao longo dos séculos.

Assim, o arco de volta perfeita com provável origem romana, terá sido complementado já durante a Idade Média, pela estrutura actual, na qual, porventura devido à evolução técnica no uso da pedra, foi adossado um tabuleiro em cavalete, com dupla rampa ascendente, sinais evidentes de um trabalho marcadamente medieval.

A reforçar esta teoria, que linearmente nos remete para o dealbar da própria nacionalidade, está o facto de Cheleiros ter recebido Carta Foral emitida por Dom Sancho I em 1195. Esse facto, comprovativo da importância ancestral do povoado, foi certamente determinante para o reforço monumental da localidade, facto que fica plasmado na magnífica Igreja Matriz, provavelmente contemporânea destes factos e na existência de sinais relevantes da existência de uma antiga estrutura amuralhada que defendia as comunidades de ataques inimigos que por ali pudessem passar.

 

 

Mais tarde, já no Século XVI, o Rei Dom Manuel confirma o Foral de Cheleiros, reforçando os vínculos criados no Século XII. E já no Século XVIII, quando em Mafra se constrói o magnífico palácio-convento, Cheleiros terá reforçado a sua importância estratégica por ser canal essencial de passagem para essa nova centralidade.

Classificada como imóvel de interesse público desde 1982, altura em que foi novamente intervencionada e recuperada, a Ponte Velha de Cheleiros é hoje um símbolo incontornável da região, assumindo-se como testemunho histórico de primeira importância para percebermos como se processaram as dinâmicas políticas e sociais nesta região durante os inícios da medievalidade.

É uma visita obrigatória para quem quer conhecer Portugal. 

Nossa Senhora da Boa Viagem na Ericeira

João Aníbal Henriques, 04.01.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
O deslumbrante recanto onde se situa a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ericeira, envolvendo com a perspectiva de um olhar a pitoresca Praia dos Pescadores e impondo-se sobranceiramente à singeleza do casario branco pontilhado de riscas azuis, é por si só um dos mais emblemáticos espaços daquela vila piscatória. Dividindo o Norte e o Sul, quase como se do verdadeiro axis mundi se tratasse, servia igualmente de elemento de orientação à navegação, salvaguardando a boa viagem dos pescadores locais.
 
 
 
 
A devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem, comum nas comunidades de homens do mar que se foram instalando em todo o território de Portugal, ganha na Ericeira foros de grande dignidade, facto que se consubstancia na antiguidade da confraria existente no local e no elevado número de devotos que anualmente a procuram para protecção nas suas viagens.
 
Existente de forma comprovada desde o Século XVII, quando ali se realizaram obras de recuperação que ficaram gravadas junto à porta situada na fachada principal, é provável que a capela fosse mais antiga e que tenha ali existido pelo menos desde o Século XV. Ao longo da sua história, foi alvo de diversas obras e intervenções que a dotaram do aspecto actual.
 
Simples na sua configuração interna e utilizando o estilo chão próprio das comunidades piscatórias mais pobres que habitaram a região de Lisboa, a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem possui ainda um segundo orago dedicado a Santo António. A devoção ao santo taumaturgo, centrada numa confraria que lhe era dedicada e na qual tinham lugar todas as raparigas solteiras das redondezas, é responsável pela designação popular que ainda hoje subsiste e que a atribui ao santo lisboeta.
 
 
 
 
Em Outubro de 1910, depois de uma última noite passada no Palácio de Mafra, o Rei Dom Manuel II e a Família Real, embarcaram para o exílio na praia situada junto a esta capela. O último vislumbre que tiveram da Pátria, num acto de entrega ao destino que foi adverso às mais antigas tradições de Portugal, foi precisamente o da Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, numa reviravolta insalubre da sua estratégia de inverter o ciclo negativo que afectava o desígnio Nacional.
 
Nossa Senhora da Boa Viagem, iconicamente ligada à faina do mar, carrega consigo a atitude de dependência profunda perante as forças da natureza que os pescadores da Ericeira sempre mostraram. Nela converge o plaino da Fé dos homens do mar e para ali são dirigidas as preces assustadas das mulheres que ficam a guardar as suas casas.
 
 
 
 

 

Certamente por desígnio do destino, é também nesta capela que se venera Santo António, também ele ligado de forma marcante aos peixes e à força das águas, num discurso em que a posição de fulcro, para onde convergem os opostos e os contrastes, se dissolve numa amálgama sentida dos laivos da vida e da morte que ditam a condição humana. 
 
É, pois, de humanidade que nos fala esta singela capela. No seu espaço de luz, sobranceira à extraordinária vontade de Deus e dos homens, dela emanam as indicações que permitem o regresso a casa. Seja ela a casa de família do devir quotidiano, ou seja ela a casa do Pai.