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A Igreja de Safara e a Assunção de Nossa Senhora

João Aníbal Henriques, 08.02.17

 

 

por João Aníbal Henriques
 
Em 1950, depois de muitos séculos de polémicas discutidas de forma aguerrida no seio da Igreja, o Papa Pio XII decreta oficialmente o dogma da Assunção de Nossa Senhora aos Céus. Pondo fim à problemática Dormição da Virgem, cujo entendimento mais antigo inferia que Nossa Senhora havia morrido naturalmente sendo posteriormente elevada para os céus, o Papa contraria a ortodoxia vigente e assume mais um dos ancestrais mistérios da Cristandade.
 
Nossa Senhora, denominada Teotóco na tradição primeva dos primeiros anos do cristianismo, numa ambígua significação que identifica simultaneamente a mulher Maria e a “portadora de Deus”, é figura maior na definição arquétipa do pensamento Português, dela emanando grande parte do “sopro divino” que orienta a Fé e a identidade do povo de Portugal. De facto, da cultualidade antiga que desemboca nos cultos marianos Cristãos, derivam grande parte das práticas rituais da Igreja Lusitana, representando tantas vezes (quase sempre em momentos cruciais da vivência religiosa Cristã) posicionamentos profundamente heréticos face àquelas que são as directrizes principais da Igreja Romana.
 
Muitos anos antes do decreto papal que determina a Assunção de Nossa Senhora, comemorada de forma simbólica no dia 15 de Agosto de cada ano, já em Portugal existia uma Fé profunda neste mistério ancestral, concretizada em obras, práticas e intenções que, mais do que fruto das desventuras do quotidiano, representavam um sólido alicerce para o corpo divino de sabedoria que sempre acompanhou a existência do País. Proliferando em todo o território nacional, em capelas, ermidas e igrejas que condicionam de forma eficaz as dinâmicas de Fé de Portugal, são muitos os vestígios arcaizantes da presença deste culto, representando a manutenção adaptada de ancestrais cultos relacionados com a fertilidade.
 
 
 
Num dos mais profundos recantos do Alentejo, ali onde a brancura do casario se assume como única arma na luta incansável contra o calor do Estio, ergue-se de forma sublime e inesperada um das mais impactantes igrejas dedicas à Senhora da Assunção. Na localidade de Safara, a poucos quilómetros de distância de Moura e de Barrancos, a pequenez cálida da pequena povoação contrasta de forma evidente com a imensidão monumental da sua igreja Matriz, num plaino de abandono da lógica que não permite perceber de imediato a razão de ser da existência de tão estranho monumento.
 
Construída de raiz algures entre 1500 e 1604, aprofundando o conceito de igreja-salão, a Igreja Matriz de Safara tem inovação de Nossa Senhora da Assunção e utiliza na sua decoração a substância primordial do Manuelino tardio Português. Austera no assumir dos valores patentes na tratadística Serliana, na qual o espaço para a humildade se compõe a partir dos valores tradicionais da arquitectura envolvente, a igreja assume o contraste entre a sua eminente monumentalidade e a pequenez antiga da povoação onde se insere.
 
Com três naves com cinco tramos que estendem o espaço de oração reservado aos fiéis, conjuga a simplicidade da sua planta com a qualidade extrema da decoração. De facto, associada à azulejaria, as paredes laterais cobrem-se de frescos polícromos pintados directamente na argamassa, em composições estranhas que lembram aos fiéis as chamas eternas do inferno final…
 
 
 
 
Submissa aos cânones de Roma, facto evidente na formulação canónica do seu espaço principal, a Igreja de Safara desenvolve abordagem de cunho onírico em várias das suas componentes. Na fachada principal, por exemplo, cruzam-se as notícias do pecado original, associado à presença da cobra que enche o imaginário colectivo da região, com o carácter arredio da simbólica da cruz quase taoista que dá forma ao corpo principal. Tendo sido constituída como Priorado da Ordem de Avis, logo no início da segunda metade do Século XII, mais se estranha esta imagética que delega no povo a responsabilidade ancestral pelo pecado e pelo apelo à sua expiação.
 
Será provavelmente essa a explicação para a incomensurável amálgama de contradições que o templo ostenta, relevando para um segundo plano a temporalidade associada a cada concretização. Tendo sido edificada sobre uma provável ermida antiquíssima que por ali já havia existido, é natural que o edifício incorpore valores estéticos e decorativos que resumem essa sobreposição, relevando assim os traços associados a uma continuidade vivencial da Fé, ao invés da sempre desagradável crispação que resulta da quebra na estrutura local de crenças e costumes. E será também essa a razão, porque a presença árabe na zona de Safara é muito evidente, que explicará alguns traços de uma anterior mesquita que terá partilhado o cunho sagrado deste importante lugar.
 
Certo é, pela observação directa daquilo que hoje vemos em Safara, que a Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora da Assunção parece não caber naquela localidade. Não só pela dimensão excessiva do seu corpo principal, cuja notoriedade se espraia por todo este trecho do Alentejo Interior, como pela formulação da sua composição decorativa. Assumindo a teatralidade da sua fachada recuada, como se se tratasse de um novo começo (ou de um recomeço) ao nível da nossa capacidade de interpretar a realidade que ali somente transparece, é Nossa Senhora da Assunção que, da dormição sagrada que lhe aconchegou os sentidos depois dos anos difíceis da sua travessia terrestre, se prepara para se elevar aos céus…
 
 
 
 
Da mesma forma que a morte se apresenta como o castigo latente para o pecado de todos os dias, a concepção imaculada de Nossa Senhora livram-na do flagelo da morte física, num plano de transmutação da matéria que se afigura profundamente alquímico. A Mãe de Jesus, venerada no actual território Português desde muitos milénios antes do seu próprio nascimento (?) concebeu de forma miraculosa, transformando espírito em carne e permitindo (e aceitando) que essa mesma carne se transmutasse também ela em espírito. Por isso, nada mais natural do que a elevada concepção da subida aos céus em corpo e Alma, num exercício de fruição da sacralidade extrema associada à própria existência de Nossa Senhora.
 
A Senhora da Conceição, padroeira e Rainha de Portugal, que foi concebida e concebeu sem a mácula do pecado original, contorna as leis da física e da vida para assumir a sua divindade através da capacidade de controlar de forma consciente o acto da criação com o qual a humanidade cresceu. Mas, ao contrário do que é mote na devoção popular, nunca Nossa Senhora se multiplicou nas devoções imensas que o seu povo lhe ofereceu. Pelo contrário. A evolução natural do seu estado superior, numa entrega que alcança a sublimidade maior por ser ela própria maior do que a vida e do que o próprio universo no seio do qual foi erigida, concretização pela transmutação dos seus estados de consciência, num exercício no qual Ela é sujeito passivo e totalmente entregue nas mãos e à vontade de Deus.
 
Nossa Senhora da Assunção de Safara é assim enorme. Basicamente porque só assim se pode entender a dimensão incomensurável do milagre sagrado da sua Assunção dos céus, numa prática ancestral que ficou como herética até praticamente à segunda metade do Século XX... 
 
É este o mistério maior de Portugal. E em Safara, no coração do Alentejo, ele vê-se, vive-se e sente-se.