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Villa Romana de Rio Maior – uma pérola com 2000 anos no coração do Ribatejo

João Aníbal Henriques, 20.08.21
 

por João Aníbal Henriques

Ainda não se conhecem os meandros da história que está por detrás da Villa Romana de Rio Maior. Mas há dois mil anos atrás, este era certamente um dos mais importantes núcleos da romanidade ibérica. Os vestígios encontrados até agora, e o excepcional projecto de musealização desenvolvido pela Câmara Municipal de Rio Maior, trazem essa importância para o quotidiano actual, porque este sítio arqueológico, ainda só parcialmente escavado e estudado é já de si uma âncora extraordinária para o turismo nacional e merece uma visita demorada para o usufruto pleno de toda a riqueza do lugar.

 
 

 

Quando Francisco Pereira de Sousa, ainda no Século XIX, anunciou a descoberta de um conjunto singelo de vestígios romanos na então vila de Rio Maior, estava muito longe de imaginar a importância e o impacto que aquele sítio arqueológico haveria de desvendar ao longo dos séculos seguintes.

De facto, e apesar de somente na década de 80 do século passado a Câmara Municipal ter dado início ao processo de escavação arqueológica e de estudo mais aprofundado do espaço, possivelmente motivada pela proximidade ao cemitério e aos vestígios que nesse espaço estavam a ser profusamente encontrados, o certo é que a Villa Romana de Rio Maior rapidamente desvendou a sua importância enquanto repositório maior de informação sobre a vida no actual Ribatejo durante o período da romanização.

 


 

Com uma datação provável (embora ainda provisória) dos primeiros séculos do primeiro milénio d.C., a Villa Romana de Rio Maior faria parte de uma estrutura agrícola de grandes dimensões que abarcaria um perímetro que ultrapassa largamente a parte agora musealizada.

Os vestígios aqui encontrados, dos quais os mais marcantes é a conhecida e emblemática Ninfa, apontam para a existência de um espaço cerimonial e simbolicamente relacionado com os cultos aquíferos e, por extensão, para a ritualística maior da fertilidade. Para aí apontam os muitos vestígios de mosaicos magníficos que atapetavam todo o espaço senhorial, e que estão bem visíveis através da estrutura de visitação agora inaugurada, e sobretudo a extensão cumulativa de significados que estende a simbólica deste espaço até à cristianização do lugar.

A já mencionada proximidade do cemitério municipal é, aliás, tradutora maior desta realidade, uma vez que mantém incólume o carácter sagrado do espaço através dos milénios que decorreram desde a sua construção.

 

 

Aspecto essencial na abordagem ao espaço é a presença já dentro dos muros do cemitério dos restos da torre que terá pertencido à primitiva Igreja Matriz de Rio Maior. Com dedicação a Nossa Senhora da Conceição, a divindade de cariz feminino que dá continuidade aos cultos à fertilidade no seio do panteão romano, este templo seria provavelmente o centro do espaço sagrado da antiga exploração agrícola do Baixo-Império dado não ter sido encontrado até agora o espaço consagrado que certamente teria servido os moradores do local. Destruída pelo terramoto de 1755, a antiga igreja Paleocristã seria datada do Século XII, dado existirem referências documentais a ela no inventário dos bens da Colegiada de Santa Maria da Alcáçova de Santarém.

A continuidade crono-espacial desta ritualística, em linha com o carácter fecundo das crenças tradicionais e dos cultos desenvolvidos nesta região, denota assim a ligação perene das gentes que ali habitaram à terra em que viveram. Interdependentes, até porque a fertilidade do espaço terá sido a razão maior que explica a prosperidade e a riqueza do local, a produção agrícola que envolveria o palácio senhorial agora musealizado seria de tal forma marcante que se estenderia em termos de impacto às principais cidades romanas existentes na periferia.

 

 

Com a sua localização estratégica num espaço central que é quase equidistante a Leiria, Santarém e Lisboa, Rio Maior seria fulcro abastecedor de todas estas cidades, concentrando ali as estruturas que permitiam o movimento e a prosperidade comercial de toda a região.

A qualidade dos materiais arqueológicos encontrados, todos eles denotando e comprovando este pressuposto, reforça a convicção de que ao longo dos últimos dois mil anos, Rio Maior foi sempre pólo aglutinador de vontade e, por isso, centro nevrálgico de desenvolvimento em Portugal.

Com a recente intervenção no local, e com a criação do edifício que permite uma visitação e o usufruto de todo o espólio ali encontrado, a Câmara Municipal de Rio Maior literalmente devolve à população uma das maiores riquezas da cidade, ajudando cada munícipe a conhecer e compreender melhor as suas origens e a identidade da sua terra.

 

 

 Classificada como Sítio de Interesse Público através da Portaria nº 22 de 2014 (publicada no Diário da República nº 7 de 10 de Janeiro desse mesmo ano) esta Villa Romana é, em termos turísticos, um novo museu que transforma também Rio Maior num espaço de visita obrigatória para quem viaja pela região, oferecendo com a pujança e a riqueza deste seu novo espaço motivos acrescidos de interesse para quem quiser vir conhecer outros monumentos e pontos de interesse da cidade e do território municipal.

Tradicional e conservador, o povo de Rio Maior foi sempre capaz de crescer e de se adaptar às mudanças impostas pela evolução e pelo progresso mantendo bem firmes as pontes com o passado que determina as suas origens e os alicerces da sua identidade. Com a redescoberta deste Villa Romana, fica definitivamente comprovada a existência de uma linha muito consistente que em termos culturais estabelece uma relação de significância profunda entre o presente e o passo.

 

 

Até porque só assim, com os pés bem assentes na terra e com a consciência plena das nossas origens, podemos aspirar a um futuro próspero e empreendedor, inabalável pelas vicissitudes que o destino nos imporá.

Está de parabéns a Câmara Municipal de Rio Maior e todas as suas gentes. 

 

Mouros e Romanos em Assentiz – Rio Maior

João Aníbal Henriques, 19.04.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sendo certo que as memórias mais antigas do actual Concelho de Rio Maior se perdem nas brumas do tempo, existindo vestígios antiquíssimo de actividade humana que remontam ao primórdio da instalação dos primeiros homens sobre a Terra, é mais certo ainda que tal ancestralidade promove uma história que mistura factos com lendas, recriando uma espécie de cenário maravilhoso que enriquece a Identidade local.
 
Em cada canto e recanto destas terras, provavelmente em estreita ligação com a fertilidade do solo e com a sua extraordinária capacidade produtiva, existem tesouros escondidos e memórias ocultas de princesas mouriscas que de tempos a tempos insistem em nos maravilhar.
 
É o que acontece em Assentiz, a mais recente freguesia do município de Rio Maior. Situada em zona próxima da Vila da Marmeleira, e beneficiando da mesma ligação férrea à força telúrica da terra, Assentiz desenvolve-se sobretudo a partir do Século XVIII, acompanhando o desenvolvimento da casa senhorial que mais tarde dará lugar ao Morgado de Assentiz. É, pois, esta ligação profunda à terra e aos ciclos da natureza que vem determinar os fluxos de desenvolvimento do local, muito embora os vestígios que subsistem, bem como a documentação que se preservou, permitam supor que a génese de tudo surge em momento bastante anterior.
 
 
 
 
A presença romana em terras de Rio Maior, bem atestada pelos vestígios arqueológicos existentes, desenvolve-se a partir da antiga estrada que ligava Lisboa, Santarém e Coimbra, determinando assim que o atravessamento daquelas que são agora as fronteiras desta concelho levassem ao reconhecimento da sua riqueza e fertilidade.
 
De facto, junto à actual localidade de Assentiz, podemos encontrar os restos do que popularmente se designa como a “Ponte Romana”, ligando as margens do ribeiro que por ali passa. A Ponte Romana de Assentiz, originalmente com dois arcos que um cataclisma acontecido no Século XVIII terá reduzido a um só, será assim um dos vestígios centrais da presença dos invasores itálicos nesta parte do território rio maiorense. Mas, tal como acontece amiúde com este laivo de deslumbramento lendário que envolve as terras de Portugal, parece que a dita estrada não passava exactamente neste lugar e, nesse caso, a ponte em questão terá uma origem diferente daquela que a sabedoria popular lhe atribui.
 
Qualquer que seja o caso, é importante ressalvar que a memória associada a este monumento é indestrutível, tal como o são os inúmeros vestígios da presença dos Romanos em território de Rio Maior. E a ponte, tenha sido construída durante a ocupação Romana ou, como alguns investigadores advogam, somente durante o reinado da Rainha Dona Maria I, já em pleno Século XIX, contribui de forma decisiva para o reforço da Identidade local, promovendo a ligação intrínseca entre o povo que ali habita e as memórias ancestrais que deram lugar à construção da monumentalidade actual.
 
 
 
 
No caso da Fonte Mourisca, local de rara beleza que mistura a sua lendária origem com um enquadramento cenográfico sem par, a situação é tendencialmente idêntica. Reza a tradição popular que a fonte será de origem moura e terá sido construída alguns anos antes da reconquista cristã do território de Portugal. Mas, se na sua formulação simbólica a dita fonte carrega consigo o peso das inúmeras lendas que povoam a imaginação de quem visita o local, a sua estrutura, associada a um tanque cuja origem terá estado no processo de desenvolvimento agrícola que o senhorio de Assentiz terá trazido para a povoação, parece apontar para uma origem mais recente, na qual surge incauta uma ligação ela sim antiga aos ritos da água na sobrevivência rural do seu povo.
 
Qualquer que seja a realidade associada ao monumento, certo é que as lendas sobrevivem ao real e, no caso da Fonte Mourisca de Assentiz, povoam o imaginário popular de histórias que se misturam com factos numa amálgama de deslumbramento que não deixa ninguém indiferente.
 
 
 
 
Diz a lenda que no local onde actualmente se situa a fonte, terá existido um antiquíssimo assentamento mouro que teia como função defender aquelas terras da investida dos Cristãos. E que, no fulgor da batalha empreendida pelo primeiro Rei de Portugal, terão os mouros fugido deste local, deixando atrás de si uma imensidão e tesouros que, apesar de nunca terem sido vistos, são desde logo pilares estruturais do imaginário popular. De acordo com esta história, existiria por ali, provavelmente aproveitando a nascente que alimenta a estrutura actual, uma gruta profunda que era utilizada como espaço para guardar material. E os mouros, perseguidos de forma indefectível pelo cavaleiros cristãos, optaram por utilizá-la para ali esconder as riquezas imensas que haviam conseguido alcançar durante a sua estada em terras de Portugal.
 
Ora, como é fácil de perceber, até porque a presença sarracena nestas terras se prolongou ao longo de muitos séculos, não se trata propriamente de uma utilização temporária de um espaço no qual as pilhagens serviam de instrumento único para a obtenção de riquezas sem igual. Pelo contrário. Os muitos séculos da presença islâmica indicam precisamente um assentamento longo e definitivo, com ciclos de vários gerações a explorar a terra e o espaço e a considera-lo como coisa sua definitivamente e em carácter de permanência final. Assim sendo, qualquer tesouro extraordinário que os Árabes tenham deixado em Assentiz derivaria da força do seu trabalho, da sua dedicação à terra e dos ciclos de riqueza que geracionalmente haveriam de resultar da pacatez da sua vida rural. Isso explica a herança ao nível das técnicas agrícolas, dos pressupostos linguísticos, dos usos e costumes, etc.
 
 
 
 
Por isso, e contrariando a voz popular, a haver tesouro, nunca ele poderia ser o manancial extraordinário de riquezas que a lenda faz por descrever…
 
O conjunto formado pela fonte com as suas três bicas, os tanques de lavagem de roupa e a mãe-de-água que os abastece foi totalmente recuperado nos últimos anos e apresenta-se hoje como um bom exemplo do que com o património se pode fazer. Ponto central da vida comunitária de Assentiz, uma vez que durante muitas décadas era ali que a população ia buscar a sua água e era também ali que se lavava a roupa de toda a gente, a fonte é hoje um ponto incontornável nas memórias da terra.
 
 
 
 
Os romanos e mais tarde os mouros, que certamente deambularam noutros tempos por estes espaços extraordinários do município de Rio, decerto teria dificuldade em reconhecer o Assentiz que hoje temos.
 
Mas, mais importante do que os factos que contrariam as lendas, é que neste dois monumentos ímpares de Rio Maior, estão concentrados os arquétipos ancestrais da Identidade deste concelho bem como os sonhos, as memórias e o ensejo das suas gentes.
 
E é isso o mais importante em qualquer terra! 

Nossa Senhora da Encarnação em Arrouquelas – Rio Maior

João Aníbal Henriques, 06.04.17

 

 
por João Aníbal Henriques
 
Reza a lenda que, há muitos anos, nos tempos em que mouros e Cristãos se digladiavam pela posse das úberes terras ribatejanas, Nossa Senhora terá aparecido nos campos de Arrouquelas a um grupo de pobres criancinhas.
 
A história, cujos contornos mais efectivos se perderam já nos escolhos brumosos do tempo, surge em linha com muitos outros relatos de aparições e de milagres acontecidos nos recantos encantados destas terras tão especiais, com especial relevo, neste ano de centenário, para as aparições marianas de Fátima em 1917.
 
 
 
 
E, tal como na Cova da Iria e, anos mais tarde, na Asseiceira, as aparições de Nossa Senhora em contexto rural dão sequência a outras histórias e lendas que cruzam o romantismo bucólico das mouras encantadas, à simbologia profunda e sentida do apego e da Fé na Mãe de Jesus. Aqui, em Arrouquelas, diz-se que algures nas imediações da actual igreja de Nossa Senhora da Encarnação está enterrado um pote de ouro com um tesouro mouro… E, sendo assim que o fumo da tradição popular nos aproxima da verdade histórica, será também certa a possibilidade de a actual igreja ser o reaproveitamento natural de uma antiga mesquita árabe que, colocada no centro de um território úbere do qual dependiam as populações, centralizaria o culto a Alá a partir das práticas maometanas que tão importantes foram na definição dos arquétipos ancestrais da Portugalidade.
 
A própria Encarnação de Nossa Senhora, processo profundamente alquímico de transformar em carne o espírito de Deus, traduz na essência a condição privilegiada em que este tipo de recantos desenvolve uma espiritualidade arreigada e sã, deixando transparecer nos actos de culto grande parte daquilo que é a pedra basilar da sua existência vivida.
 
 
 
 
Mas, em termos de factos históricos, pouco se sabe sobre as origens da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação.
 
Uma inscrição colocada na fachada posterior da igreja, e que terá sido reencontrada durante uma das campanhas de obras que recentemente ali se fizeram, indica a data de 1718. Mas os factos apontam para que a igreja seja bastante anterior…
 
De facto, quando em 1739 as autoridades de Rio Maior solicitam ao Rei a autorização para criarem uma feira na localidade, que viria basicamente a substituir a antiga feira de Arrouquelas, já há muito tempo existia neste espaço uma comunidade assente no aproveitamento das potencialidades agrícolas do solo e, por isso, uma actividade comercial sustentada e sustentável que congregaria à sua volta um manancial de riqueza que não seria certamente desprezível.
 
 

 

 
 
E alguns anos antes, quando em 1634 a Irmandade de Nossa Senhora de Arrouquelas solicita ao Estado o alvará de que necessitava para regularizar a sua feira anual, já avança com a necessidade de avançar com obras de renovação e embelezamento na sua igreja. Ora, como facilmente se entende, o estado avançado da organização presente no espaço não se compadece com a inexistência de um templo e, por isso, será natural que a tradição popular que anuncia a igreja como o corolário de um processo paulatino de adaptação de um qualquer templo anterior, seja verdadeira, explicando o processo que culmina no surgimento do edifício que hoje conhecemos.
 
Qualquer que seja a verdade relativamente às suas origens ancestrais, que só poderão vir a ser desvendadas de forma definitiva com uma intervenção arqueológica consistente, o certo é que a igreja actual apresenta uma definição espacial desconcertante e diferente. De forma inesperada, a sua colocação num barranco de características amplas parece contrariar a orientação no espaço. O adro, espaço sagrado de excelência, define-se a partir da extrema do terreno, a ponto de ter de ser sustentado por um talude de alguns metros de altura que, embora abrindo a paisagem para o espaço envolvente, restringe de sobremaneira o seu crescimento, contrariando assim a natural apetência para que se tivesse procedido a uma implantação espacial completamente diferente.
 
O relógio de Sol que recentemente foi reimplantado no terreno, marcado com a data de 1869, é outro dos elementos sui generis desta igreja extraordinária. O contexto artístico em que foi definida a sua orientação, rodeado por uma rosa dos ventos de forma circular que o rodeia envolvendo o espaço num enquadramento cenográfico próprio das velhas tradições megalíticas de cunho alentejano, transporta todo o espaço para uma dinâmica de Fé transcendente, ajudando a consolidar as histórias e as lendas e contornando de forma assaz curiosa o conjunto de factos arreigados que caracterizam o povoado e as suas gentes.
 
 
 
Com data de 1918, marcando também ela um período pungente da História de Portugal, existe ainda um painel de azulejos oferecido pelo Arrouquelense Abílio Reis, em paga pela intervenção de Nossa Senhora da Encarnação em defesa dos jovens locais que engrossaram as tropas Portuguesas durante a primeira Grande Guerra.  O carácter polícromo deste painel, no qual a expressão da Encarnação de Nossa Senhora  se define de forma atípica e profundamente deslocada no tempo, reforça anda mais a indefinição em torno das características deste espaço, bem como a sua importância na definição daquilo que foram, são e serão os sentimentos identitários na comunidade vivida de Arrouquelas.
 
Seja qual for a sua História verdadeira, e os factos concretos que transformaram a Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Arrouquelas num dos mais importantes e significativos monumentos do Concelho de Rio Maior, o certo é que todo o espaço em que o edifício se insere está carregado de simbolismo. Ele traduz, até pelas características que apontámos na sua versão cruzada com as histórias e lendas que o acompanham, um quadro de ligação perene aos ritmos da natureza, em linha com aquilo que sempre foi o sustento principal das comunidades que ali viveram.
 
 
 
 
Pelo que não  nos dizem os documentos e pelo que todo o edifício deixa perceber, valeria a pena aprofundar em termos científicos o conhecimento em torno deste monumento, até porque a sua significação profunda, misto de laivo de Fé e de capacidade de empreendimento, determinam de forma cabal a nossa percepção em relação àquilo que é efectivamente o concelho e as suas gentes.
 
Vale a pena, por tudo isto, fazer o desvio que nos leva a Arrouquelas para conhecer, explorar e adivinhar este recanto magnífico e tão diferente!
 

A Vila da Marmeleira em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 30.03.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A inscrição patente na Igreja de São Francisco de Assis, na Vila da Marmeleira, Concelho de Rio Maior, marca a data terrível de 1755. Mas, contrariamente ao que se possa apensar, nada tem a ver com o grande terramoto que afectou Lisboa e arredores nesse mesmo ano. Pelo contrário, o ano de 1755 marca para a Vila da Marmeleira o apogeu de um processo de crescimento que culmina na sua emancipação em relação a Assentiz e a sua afirmação enquanto comunidade de grande importância no devir histórico e administrativo do concelho.
 
De facto, com raízes históricas que se perdem no tempo, Marmeleira deve o seu nome a uma árvore com o mesmo nome que terá sido lendariamente trazida da Índia por António Faria no Século XVI. Mas já existira certamente muito antes disso, uma aglomerado habitacional neste espaço, tal como o atestam os achados arqueológicos no monte de São Gens e, sobretudo, as provas de ocupação do período muçulmano que abundam nas redondezas.
 
 
 
 
A Igreja da Marmeleira, dedica a São Francisco de Assis, terá sido construída originalmente no Século XVII pelo Abade de Alcobaça como resposta aos muitos problemas que as cheias periódicas que afectavam o Concelho de Rio Maior traziam aos seus habitantes. De facto, o riacho que vem de São João da Ribeira e que atravessa a actual freguesia em direcção ao Rio Maior, transbordava várias vezes ao ano, impedindo os moradores da Marmeleira de chegarem à igreja para assistirem à Missa. Por isso, o novo templo, em forma de pequena ermida rural, terá sido edificado nessa altura, atestando a importância da localidade e dos seus moradores .
 
A referida data de 1755, que ainda hoje se mantém na fachada da igreja, refere-se assim a campanhas de obras efectuadas nessa data, sendo que as mesmas terão sido refeitas, já no Século XX, dotando a igreja da sua actual configuração. Do templo original, singelo na sua formulação chã e em linha com aquilo que terá sido, desde sempre, a principal estrutura económica do local, sobra somente um pequeno altar, agora dedicado a Nossa Senhora da Conceição, que se mantém incólume no interior da igreja.
 
 
 
 
São Francisco de Assis, a quem o templo foi dedicado, é agora a figura-mãe da devoção religiosa do povo da Marmeleira. As suas festas anuais, que misturam a ligação ancestral à Rainha e Padroeira de Portugal com a apologia da pobreza preconizada por São Francisco, são tradutoras privilegiadas do linear percurso histórico desta recanto de Portugal, denotando a ligação eminente e profunda à natureza e aos seus ciclos agrícolas, bem como ao despojamento efectivo perante a grandiosidade e a pujança de Deus. Os Marmelenses, vocacionados para uma vida devotada à terra e aos seus frutos, constituem assim a referência primeira de uma localidade que se concretizou a partir das exigências e as vicissitudes impostas pela água e pelas agruras do tempo, mas que delas depende para o esforço quotidiano da sobrevivência e da existência humana.
 
 
Isto é bem visível na própria localização da povoação, colocada de forma segura a uma altitude de cerca de 100 metros para evitar possíveis influências nocivas da subida dos níveis das águas, bem como na sua relação com a paisagem envolvente.
 
Dos equipamentos que hoje compõem o património da Vila da Marmeleira, para além da Igreja de São Francisco de Assis, fazem parte o miradouro, o tanque de lavagens comunitárias e a fonte de chafurdo. Todos eles, atestando a antiguidade da ocupação humana do território e a sua vinculação agrícola, se situam em planos de inferioridade relativamente ao centro da povoação, mostrando que o seu crescimento de faz a partir desse esforço de sobrevivência e explicando o apelo à singeleza que todo o conjunto urbano nos oferece.
 
 
 
 
Digno de nota especial, pela importância iconográfica que possui, é o painel de azulejos neo-clássicos que decora o espaço da Fonte dos Namorados. Este manancial de água, provavelmente nascente natural que terá sido aproveitada pelo menos desde a época romana, é de crucial importância na definição dos principais eixos de crescimento da Vila da Marmeleira. O veio principal, oriundo do pequeno morro onde se ergue a igreja, será provavelmente o que resta da antiga fonte de chafurdo que terá abastecido a região.
 
Na iconografia que ilustra este espaço, que até pelo seu nome indica a importância que enquanto espaço central de sociabilização, é possível ver as juntas de bois, os lavradores e as lavadeiras que noutros tempos deram corpo à sociedade Marmelense. Apesar de simbólica, esta recuperação daqueles que terão sido os estereótipos principais n localidade permite-nos compreender a forma como é dessa componente rural, miscenizada provavelmente com a componente militar que resulta da posição de grande importância estratégica que toda esta região teve noutros períodos da História, que depende o devir quotidiano das comunidades, num acto de entrega aos redutos primevos da natureza que se espraia na forma como se definem os arruamentos, se constroem as casas e se criam os espaços de uso colectivo.
 
 
 
 
Nos lavadouros públicos, situados a poucos metros da Fonte dos Namorados e aproveitando o manancial de água que ali é captado, encontram-se presentes os mesmos motivos iconográficos, sendo que o painel azulejar, de fábrica mais recente e marcado com a data de 1934, nos aponta precisamente a simpatia como o principal epíteto da Vila a Marmeleira.
 
Elevada à categoria de vila em 1927, pela mão do então Presidente da República Marechal Carmona, a Marmeleira é freguesia desde 1878. O final do Século XIX, com a autêntica revolução que se concretiza na agricultura Portuguesa, é o início do período de maior fulgor da História da Marmeleira, acompanhando o crescimento da antiga freguesia a partir da consolidação das novas práticas agrícolas e dos produtos que se foram afirmando comercialmente na região.
 
 
 
 
Airosa, bonita e simpática, a Vila da Marmeleira é actualmente um dos mais encantados recantos do Ribatejo, preservando o carácter rural do seu nascimento mas incluindo uma série de benefícios urbanos dignos de povoação com maior dimensão e mais fama. O largo do corte, situado nas traseiras da igreja, dá conta de uma vivência comunitária que se mantém activa,  ao mesmo tempo que nos oferece pistas importantes para compreender aquilo que foi a evolução da freguesia desde o início do século passado. De salientar, pela importância que tem na compreensão deste devir, a placa epigrafada colocada junto ao miradouro, que sublinha precisamente o facto de as obras terem sido feitas em 1969 por iniciativa da comissão local de festas com o apoio da Junta de Freguesia e da Associação dos Amigos da Marmeleira.
 
Vale a pena estacionar o carro num dos muitos espaços existentes no centro da localidade e, com máquina fotográfica nas mãos, percorrer a pé os cantos e recantos deste espaço tão especial. Ali se encontrarão, para deleite de quem já pouco sabe sobre as raízes rurais de Portugal, os vestígios ainda bem vivos de uma prática em que homem e natureza convivem em sã harmonia, num pleito de simpatia cuja índole pacífica se perpetua no espaço e no tempo.
 

A Torre Mourisca de São João da Ribeira em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 28.03.17

 

 
por João Aníbal Henriques
 
A Torre Mourisca de São João da Ribeira, no Concelho de Rio Maior, é um dos mais significativos testemunhos da História do Ribatejo. Tem, por um lado, agregado a si a aura lendária da sua relação aos mouros, durante o período de ocupação Árabe da Península Ibérica e, por outro lado, tem também o impacto visual que resulta da sua sobranceria em relação à povoação que a envolve.
 
Não sendo um documento, no sentido tradicional do termo, basicamente por pouco se conhecerem as suas origens, é certamente um marco de memória de um dos períodos mais conturbados e importantes da formação e consolidação da nacionalidade Portuguesa.
 
 
 
 
De acordo com a documentação existente, a Torre Mourisca de São João da Ribeira terá sido edificada no ano de 1111. Misto de vigia e de atalaia, com o seu coruchéu engalanado com as ameias que serviam de protecção, terá servido como posto avançado de controle das investidas cristãs durante as guerras da reconquista cristã que Dom Afonso Henriques levou a afeito. De facto, no período em questão, foi nestes espaços de ninguém, nos quais a incerteza política reinava, que se escreveram as mais heróicas e importantes páginas da historiografia medieval, definindo dinâmicas de aculturação que haveriam de promover a transição entre os dois poderes políticos de então.
 
 
 
 
A cristianização da Península Ibérica, definida no actual território concelhio de Rio Maior a partir de um esforço de integração das antigas estruturas árabes (e possivelmente também da populaça e das elites religiosas locais…) nas ovas estruturas Cristãs, recria realidades de transição que atestam a forma como tudo se passou e a importância que a actuação de conquistados e de conquistadores teve para que a medievalidade se tenha imposto sem custos de maior para as populações.
 
Agregada à Torre Mourisca de São João da Ribeira, é hoje possível visitar a Igreja de São João Baptista que, para além de cristianizar toda a imagética associada à figura ascética do baptista, recupera também de forma simbólica a própria organização espacial do lugar.  A nova igreja cristã, singela como o são todos os espaços de culto que foram edificados durante este período remoto da implantação da nova fé no território nacional, será com toda a certeza o reaproveitamento da antiga mesquita muçulmana, num devir devocional do qual fazem parte as estruturas simbólicas de ambas as religiões.
 
 
 
 
A sacralidade associada à Torre Mourisca, bem visível na sua ligação à igreja e ao cemitério actual, define o eixo orientador do próprio desenvolvimento urbanístico da localidade, estabelecendo uma organização espacial a que não é alheia o próprio carácter subjacente ao terreno onde a mesma se insere. Reza a lenda local que, por exemplo debaixo do grande cruzeiro oitocentista que se encontra colocado junto ao adro da igreja, existem um conjunto de sepulturas antigas do período muçulmano que o dito monumento, marcando de forma perene o espaço em questão, pretende cristianizar e, dessa maneira, sacralizar. Só que, como facilmente se percebe, todo este ensejo de demarcar estruturas de fé, se dissolve na puerilidade de crenças ancestrais. De facto, o carácter simbólico subjacente aos enterramentos originais não se altera, antes se modificando, mas somente num plano de simbologia, a orientação específica que determina a sua natureza. A islamização do actual território rio maiorense, tal como, alguns séculos mais tarde, a sua re-cristianização, define-se a partir desta praxis de aceitação, apesar de os testemunhos materiais que nos restam parecerem apontar para uma cisão que efectivamente nunca existiu.
 

 

Tendo sido recuperada em 2016 pela Câmara Municipal de Rio Maior, a Torre Mourisca de São João da Ribeira é hoje um marco inultrapassável numa visita ao Ribatejo, impondo na paisagem a agrura do seu perfil branco e recuperando as memórias do espaço envolvente.
 
 
 

Os Potes Mouros das Alcobertas em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 09.09.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Os denominados Potes Mouros, situados na Freguesia de Alcobertas, no Concelho de Rio Maior, são um dos mais extraordinários e enigmáticos sítios arqueológicos do Ribatejo. A estranheza que produzem junto de quem os visita pela primeira vez, resulta do seu enquadramento na paisagem, marcada pelo tom avermelhado do grés onde assentam, mas também pela pouca informação existente sobre tão inesperado local.
 
Conhecidos um pouco por todo o território Nacional, e normalmente associados a contextos arqueológicos datados do período muçulmano, os Potes das Alcobertas são diferentes por se enquadrarem num conjunto imenso, do qual hoje se conhecem actualmente apenas 35 mas que se sabe que ainda há pouco tempo eram perto de 100, tendo sido progressivamente destruídos devido à utilização do local como pedreira em meados do Século XX.
 
 
 
 
Sem espólio associado, o que permitiria avançar com datações mais exactas, foram encontrados na década de 60 do século passado e imediatamente despertaram o interesse das comunidades envolventes. Na correspondência camarária associada a este achado, os potes são atribuídos ao período romano, embora sem que tal obedecesse a qualquer espécie de estudo científico e/ou a conclusões preliminares que tivessem sido analisadas nessa época. Pouco tempo depois, o arqueólogo Afonso do Paço chama-lhes pela primeira vez 'silos', apercebendo-se da sua função de armazenamento de cereais, apontando a existência de tampas que teriam como função selar cada um dos recipientes, preservando os grãos da humidade ou da entrada de animais.
 
É também Afonso do Paço quem, em estudos posteriormente realizados no local, avança com as primeiras teorias relativas à sua morfologia tipicamente de origem muçulmana, ressalvando o facto de se saber que os ditos silos teriam tido utilizados ininterrupta pelo menos até ao Século XV. Mas aponta também, por ser importante na indefinição relativa à cronologia do local, o facto de não ter sido encontrado qualquer espécie de espólio associado, nem tão pouco restos de quaisquer espécies de cereais.
 
 
 
O carácter único do local, com os seus túneis escavados no grés e com a estranha morfologia do espaço envolvente, transformam aquele recanto numa espécie de magnífico cenário de um filme, no qual a memória do local, cruzada com os laivos de uma história que provavelmente recua mais de 1000 anos no tempo, nos oferecem a possibilidade de efectivamente perceber como era a subsistência ancestral no actual território Português.
 
Os Potes Mouros das Alcobertas, que a Junta de Freguesia local e a Câmara Municipal de Rio Maior recentemente recuperaram, estão hoje transformados num excelente espaço museológico. Os bons acessos e as condições envolventes, são atractivo suficiente para uma visita que vale a pena fazer!

 

 

A Capela do Espírito-Santo de Teira e o Castro de São Martinho em Alcobertas

João Aníbal Henriques, 06.09.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Existem espaços e monumentos de tal maneira simples na sua formulação estética, que dificilmente deixam antever a complexidade que traduzem e a importância que têm no registo histórico ao qual pertencem.
 
A sua singeleza, normalmente associada à pureza extraordinária das comunidades que os construíram, traduz assim um apelo quase inaudível aos sentidos, obrigando o visitante a um exercício quase onírico para os perceber…
 
É o que acontece na Freguesia das Alcobertas, no Concelho de Rio Maior, com a singelíssima Capela do Espírito-Santo e, um pouco mais adiante, com o que resta do maltratado Castro chamado de São Martinho.
 
 
 
 
A capela, simples na sua forma chã e pragmaticamente inserida na tipologia própria da arquitectura de índole religiosa das zonas rurais Portuguesas, integra-se num largo de bonitas proporções no qual assumem especial importância um grande crucifixo construído em 2001, e o painel de azulejos onde consta uma perspectiva do antigo Castro de São Martinho, profundamente marcante na definição sagrada do templo Alcobertense.
 
Datada do Século XX, a capela vem substituir uma antiga ermida dedicada a São Martinho que existia no topo do monte onde outrora se ergueria o antigo castro neolítico. Tendo lendariamente sido destruída por um raio, a imagem do santo foi transportada monte abaixo até à nova capela construída no centro da povoação de Teiras. Diz ainda a lenda que a dita imagem, durante muito tempo e por vontade própria, se escapulia durante a noite para o local onde outrora se erguia a sua capela, teimando em não ficar na nova capela do Espírito-Santo onde reiteradamente a colocariam.
 
Com fachadas brancas a condizer com o apelo à simplicidade que o culto do Espírito-Santo obriga, a capela apresenta uma só nave, também ela de aspecto singelo, e um único óculo colocado sobre a porta principal, deixando uma nota de luz no seu interior. O sino, colocado num suporte simples de pedra calcária, completa o conjunto, dando um carácter airoso ao enquadramento simbólico deste espaço sagrado.
 

São Martinho e o Espírito Santo

 
 
Na memória colectiva associada a este espaço, numa linha de continuidade que assenta numa profunda sabedoria popular, possivelmente de tradição oral e que se perpectua ao longo de várias gerações, existe uma forte ligação aos cultos ancestrais que outrora foram desenvolvidos no velho castro.
 
 
 
Se a devoção actual ao Espírito-Santo, numa lógica de Quinto Império Sebastianista, apela ao desapego material, reiterando a máxima de que a Portugalidade exige despojamento das vestes sujas pelas agruras da vida para que seja possível vestir os trajes iluminados de uma existência situada em planos etéreos muito superiores, por outro lado, a devoção ancestral a São Martinho, o tal santo cujo mal-estar por estar colocado na nova capela é por demais  evidente, aponta também ela para uma ritualística de pobreza que, dadas as condições naturais do local onde estes monumentos se encontram, parece ter sido a pedra angular as muitas vidas que por aqui se sucederam ao longo de muitos séculos.
 
Diz a lenda de São Martinho que, sendo ele soldado romano em trânsito por uma estrada gelada numa das imensas serranias do império, terá sido interpelado por um paupérrimo pedinte que, transido de frio, lhe pediu ajuda para sobreviver ao Inverno. O Santo, sem pensar duas vezes, despiu as suas vestes e colocou-as sobre o corpo do desgraçado, ficando ele próprio sujeitos às inclemências do tempo. Mas Deus, reconhecendo o gesto nobre daquele soldado, terá mudado a estação e recriado uns dias de calor estival, dando assim condições a São Martinho para poder regressar são e salvo à sua terra.
 
É esta a origem do denominado “Verão de São Martinho”, bem como do quadro geral de despojamento que caracteriza o culto do Espírito Santo na capela de Teira.

A Igreja do Espírito-Santo ou da Misericórdia de Rio Maior

João Aníbal Henriques, 08.08.16

 

 
por João Aníbal Henriques
 
Solene e simples, quase perdida no intricado labirinto de ruelas que dão forma ao centro histórico da Cidade de Rio Maior, a Igreja da Misericórdia é um dos mais interessantes monumentos religiosos da região do Ribatejo.
 
Tendo como orago original a Assunção de Nossa Senhora, que terá adquirido já no Século XIX quando a antiga Igreja Matriz fica em ruínas e a Coroa a entrega à Irmandade da Misericórdia, era anteriormente dedicado ao Espírito-Santo, num repto de singeleza que é bem visível nos pormenores construtivos que lhe dão forma.
 
 
 
 
O culto do Espírito-Santo, expressão sagrada de primeira importância na definição dos mais profundos preceitos da irmandade Cristã, pressupõe práticas de abnegação e de entrega ao próximo que estão em linha com o facto de este templo ter sido inicialmente espaço de culto privativo do antigo hospital da localidade.
 
Por vicissitudes diversas, a maior parte das quais relacionadas com a grande dependência que as populações locais sempre tiveram relativamente à agricultura e aos ciclos da natureza, o carácter ecléctico deste templo foi-se adaptando ao ritmo de vida das comunidades locais, adoptando e perdendo sucessivamente muito do seu espólio decorativo.
 
 
 
 
 Para além de ter recebido, em consequência da ruína e da desafectação ao culto de outras igrejas da região, várias peças que outrora haviam estado nesses locais, como acontece com algumas imagens e alfaias religiosas, a Igreja da Misericórdia foi alvo de acrescentos inesperados que lhe dão um carácter de excepção no contexto local e que reforçam o seu interesse por parte de quem a visita.
 
No altar colateral direito, actualmente dedicado a Nossa Senhora de Fátima, é notória a adaptação que sofreu o nicho envolvente, no qual foi inserido um conjunto decorativo do qual sobressai a dedicatória ‘Avé Maria’, sobre uma moldura na qual assume especial importância o crescente lunar invertido. Normalmente associado a Nossa Senhora da Conceição, numa prática hermética que remete para uma cultualidade ancestral e certamente pré-Cristã desta área do actual território Português, tem por significado simbólico a destruição do mal aos pés da Senhora, sendo ela, na sua versão oriental, a Imperatriz que gere as ligações entre o Mundo onde vivemos e o céu. Neste caso específico, provavelmente desenquadrado em termos rituais, até porque a inovação da Senhora de Fátima é bastante recente, julga-se que a definição mais profunda da inovação da igreja venha a ser resultado do cruzamento entre o culto original ao Espírito-Santo e o milagre alquímico associado à figura da Rainha Santa Isabel que é, como se sabe, a rainha da misericórdia. Foi esta Rainha-Santa quem, aliás, desencadeou o processo de escolha da Nossa Senhora da Conceição como rainha e padroeira de Portugal, num processo que deu corpo à assumpção, bastante mais tarde, do dogma da Imaculada Conceição por parte da Igreja Católica.
 
 
 
 
Depois da construção da nova Igreja Matriz de Rio Maior, já na segunda metade do Século XX, a Igreja da Misericórdia volta a perder a dignidade de igreja primaz do concelho, facto que veio a alterar profundamente a dinâmica devocional da cidade. A nova igreja matriz recebeu como devoção a Senhora da Assunção, que até aí tinha estado neste espaço, e recebeu como orago precisamente a Rainha Santa Isabel.
 
De salientar no corpo da igreja o altar-mor em talha dourada de inspiração barroca, a bonita capela baptismal e a imagem da Rainha Santa, junto ao altar lateral onde está a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia. Ara além da singela nave única, em linha com a planificação espacial típica deste tipo de templos e origem ruralizante, o coro alto, preparado para receber a irmandade, que impõe uma linha geral de sobriedade ao espaço.

A Anta das Alcobertas e Santa Maria Madalena em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 08.08.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sendo sete os esteios que suportam o monumento funerário megalítico que dá fama à localidade das Alcobertas, no Concelho de Rio Maior, são também sete os pecados que Jesus Cristo retira do corpo ultrajado de Maria Madalena, a ainda mal compreendida seguidora do Mestre e principal promotora da religião Cristã depois de ter sido ela a primeira a encontrar o Salvador depois da sua Ressureição…
 
 
 
A Anta-Capela das Alcobertas, situada no coração do Ribatejo e num recanto onde são muitos (e muito interessantes) os vestígios arqueológicos que atestam vivências ancestrais que decorreram no mesmo espaço, é um dos mais emblemáticos e interessantes casos de sobreposição de cultos ao longo de vastíssimos períodos da História. Construída aproveitando a estrutura megalítica anterior, a nova capela, por sua vez integrada na Igreja das Alcobertas, já do Século XVIII, tem dedicatória a Santa Maria Madalena, recuperando o ideário profano e os arquétipos mais ancestrais da religiosidade de Portugal.
 
De acordo com a lenda (da qual existem várias versões que nos chegaram por via da tradição oral das comunidades locais), foi Santa Maria Madalena que fez nascer e crescer os megálitos que dão forma ao monumento mais antigo. Noutras versões, e perante a vontade do povo em destruir uma estrutura que consideravam ser de origens pagãs, foi a dita santa quem zelou pela sua sucessiva reconstrução, num processo que terá servido para torcer a vontade popular que, dessa maneira, com a intercessão Divina, lá terá aceite manter a velha estrutura no seu lugar.
 
 
 
 
Seja qual for a sua efectiva História, o certo é que o carácter sagrado deste espaço está bem vincado ao longo de muitas gerações. O espaço funerário original, datado do período Neolítico, compõe uma ligação simbólica entre os mundos dos vivos e dos mortos que ainda hoje sustenta a religiosidade local. Mais importante do que os credos, as crenças e os cultos, neste espaço o que verdadeiramente importa é a ligação, numa recuperação evidente e simultaneamente sublime, da significação mais profunda da própria palavra ‘Religião’ – Religare – que aqui assume foros de uma perfeita identidade. Ligados ancestralmente à sublimação da vida, relegando para um plano secundário os aspectos mesquinhos relacionados com o dia-a-dia e com a vida mais perene, os crentes que acedem à Capela de Santa Maria Madalena completam uma autêntica viagem no tempo sem que saiam do mesmo espaço. No cerne da antiga anta, naquele que é hoje o altar consagrado à Santa que partilhou com  o Filho de Deus uma vida ascética em torno da vontade do Pai, congregam-se certezas inabaláveis que subsistem na solidez estrutural da pedra que compõe as suas paredes. É esta perenidade, que transmite a quem a visita uma sensação de profundo conforto espiritual, que compõe a ligação quase umbilical que dá corpo à máxima de Jesus e que Maria Madalena carrega como estigma ao longo da sua vida da Terra e que perdura como laivo de memória ao longo dos tempos: a de que somos todos irmãos.
 
Apesar as diferenças de perspectiva, de opinião, de vontade e mesmo de Fé, o certo é que as pedras que sustentam a anta-capela são consistentes com a sua vocação de suporte daquilo que é verdadeiramente importante e essencial. Não se conhecendo a época da sua cristianização, nem tão pouco sendo isso importante na definição do seu carácter sagrado, até porque ao longo dos longos milénios que compõem a sua existência, este espaço terá eventualmente sido alvo de muitos outros cultos e/ou crenças que se complementam e que fecham o ciclo da sacralidade da própria localidade das Alcobertas, o certo é que o impacto deste recanto contrasta de forma muito evidente com a singeleza das suas características morfológicas.
 
 
 
 
Reforçando a importância da capela-anta, está o também conturbado processo de construção, reconstrução e recuperação da igreja que a envolve, e da qual a velhinha estrutura é hoje um minúsculo altar-lateral. Com uma estrutura de orientação barroca, o edifício do Século XVIII terá substituído a antiga ermida do Século XV que terá existido no mesmo local. Problemas diversos, a que eventualmente não será alheia a fraca qualidade de construção ao longo da sua história, terão servido de mote a transformações sucessivas no templo que lhe conferiram o aspecto que actualmente conhecemos. Mas, mesmo com a arcaria monumental da entrada, com a altaneira torre do relógio (que conheceu acrescentos em época recente), com a magnífica capela baptismal existente e com a cuidada aparência da sua nave central, o certo é que continua a ser o diminuto espaço da estrutura antiga aquele para onde convergem a curiosidade e a fé ancestral de quem por ali passeia.
 
 
 
 
Os mitos antigos da Portugalidade, com os cultos pré-históricos da mãe ancestral, numa ligação entre a virgindade e a pureza originais e a fertilidade da própria terra (da qual depende a prosperidade das muitas comunidades diferentes que ocuparam este mesmo espaço), estão aqui linearmente dispostos, congregados numa Maria Madalena dividida entre a meretriz arrependida que as Escrituras nos trazem  e a Santa primordial que a História de Jesus Cristo impõe à realidade simbólica que a cerceia.
Misto de mistério profundo e de sonho onírico, a anta-capela das Alcobertas  representa uma descoberta essencial no devir histórico do Portugal de todos os tempos. O de que a realidade é fugaz e que aquilo que é mais perene não depende sequer da passagem do tempo…
 
É este um dos mais significativos monumentos de Portugal.
 

 

 

A Capela de Nossa Senhora da Vitória e o Paço Medieval de Rio Maior

João Aníbal Henriques, 29.07.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Nossa Senhora da Vitória, em pleno centro histórico da Cidade de Rio Maior, é uma capela com características singelas mas que esconde um vastíssimo manancial de segredos históricos.
 
Não se conhecendo com exactidão as suas origens, sabe-se, no entanto, que foi construía sobre ruínas de ocupações anteriores. Escavações arqueológicas efectuadas no seu interior e no espaço envolvente, desde o adro fronteiro até ao antigo edifício dos bombeiros, vieram comprovar que seria ali o antigo Paço Senhorial de Rio Maior, mencionado por Fernão Lopes nas suas “Crónicas d’el-Rei Dom João I de Boa Memória”. Existindo já no Século XIV, terá sido ali que se passou um dos mais rocambolescos episódios da História de Portugal, quando o irmão da Rainha Dona Leonor, mulher do Rei Do Fernando, terá chegado a Rio Maior para matar o Conde Andeiro, cujas ligações amorosas com a sua irmã traziam imenso escândalo à corte de então.
 
 
 
 
O antigo paço, também designado como “Real” em alguma documentação, por ali terem pernoitado vátios monarcas Portugueses ao longo da sua vasta história, seria assim uma forma de aproveitamento da topografia natural do local. Sobrelevado relativamente ao resto do burgo, a colina onde se situa o templo personificaria uma forma natural de defesa relativamente a possíveis perigos que pudessem advir, sendo por isso muito natural que tenha sido utilizada desde tempos muito recuados como ponto central a partir do qual se desenvolveu a actual cidade.
 
 
 
 
No decorrer das várias campanhas arqueológicas ali realizadas, foi possível encontrar pelo menos três níveis diferenciados de ocupação e que, no espaço interior da capela, recuam até ao Século, quando ali foi enterrada uma criança de tenra idade cujas ossadas foram levantadas numa dessas intervenções. Também se encontraram, no entanto, vários materiais anteriores, em níveis não consolidados e impossíveis de datar, mas que, dada a interacção com os documentos coevos, sugerem ter sido este espaço pertença de um mais antigo templo que terá existido dentro do próprio Paço Real.
Sem acesso público nem culto, uma vez que é desde há bastante tempo utilizada como depósito dos materiais arqueológicos recolhidos em Rio Maior, a Capela de Nossa Senhora da Vitória terá sido assim baptizada depois da vitória de Dom João I em Aljubarrota perante o exército castelhano. Antes dessa data, por ter pertencido à Irmandade das Almas, ter-se-á chamado Capela das Almas.
 
O enquadramento cenográfico deste tempo, num espaço simbolicamente associado ao devir histórico da cidade, apresenta um imenso potencial turístico que, se conjugado com as muitas estruturas construtivas de diversas épocas que foram encontradas em seu torno (e que estão preservadas debaixo da calçada que dá forma ao seu adro), poderá um dia sustentar a criação de um pólo de grande interesse para a região de turismo do Ribatejo.