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cascalenses

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A Capela de Santo António e de Nossa Senhora das Mercês na Aldeia do Penedo (Sintra)

João Aníbal Henriques, 19.05.19



 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sítios especiais rimam geralmente com memórias únicas e inolvidáveis. É o que acontece na Aldeia do Penedo, junto a Colares, no Concelho de Sintra. Ali, no cimo de uma penedia vincada pelo guinchar permanente do vento, cruza-se a versão pagã original dos cultos anímicos ancestrais com a mística sagrada do Cristianismo mais recente… e se o touro morre às mãos do povo, é a sua carne que alimenta o corpo e a Alma do Imperador, Senhor do Espírito Santo. Vale a pena conhecer este recanto mágico de Portugal.
 
 
 
 
 
Perderam-se no tempos as informações fidedignas sobre a origem da Aldeia do Penedo, em Colares. A documentação histórica, marcada pelos tempos em que o registo já era prática comum, leva-nos directamente para o Século XVI, quando no primeiro numeramento oficial realizado em Portugal, se registava um total de 34 vizinhos a residir no Penedo.
 
Mas este número de habitantes, indicador potencial de uma aldeia já com certo peso histórico, contradiz de sobremaneira os sinais existentes no terreno, que denotam uma origem remota e muito longínqua para a generalidade das mais antigas construções que ali encontramos.
 
No ciclo das construções e das reconstruções, temos então uma Aldeia do Penedo cuja principal marca surge associada à documentação mas, não só pelas evidências arqueológicas como até pela etnografia do local, tudo aponta para uma origem muito mais antiga deste local.
 
A Capela do Penedo, com um duplo orago dedicado a Santo António e a Nossa Senhora das Mercês, foi instituída em 1547 por Francisco Nunes Dias e sua mulher Maria dos Anjos Gonçalves. Através desta instituição, procuraram apaziguar a ira dos deuses, através de um acto de entrega simbólica de uma parte substancial dos seus haveres aos irmãozinhos mais desafortunados pela vida que habitavam naquele lugar.
 
Com decoração opressivamente marcada pela azulejaria polícroma representando hagiograficamente o santo lisboeta, todo o interior do templo transparece da ligeireza formal dos templos de origem chã da região saloia. O Altar Mor, com as imagens de Santo António e de Nossa Senhora das Mercês, cumpre o duplo efeito de recuperar as principais memórias religiosas do povo que frequente o templo e, em épocas festivas, de servir de cenário para a coroação imperial votiva do Império do Espírito Santo.
 
Anualmente, num ritual também ele perdido nas brumas do tempo, uma criança impúbere do sexo masculino era escolhida e coroada como Imperador do Penedo, recebendo as honrarias próprias de quem comanda a terra dos seus. E, sendo notoriamente um papel que todas as famílias desejavam ocupar, era simultaneamente uma honra e uma responsabilidade que se cruzavam no ritual de alimentar os pobres da região…
 
 
 
 
As raízes provavelmente proto-históricas deste ritual, assente na lide à corda de um touro no espaço público, recuperam valores que desde sempre caracterizaram a população do local. Simbolizando a força e a determinação, obviamente imprescindíveis para quem quisesse sobreviver no topo fustigado pelas intempéries de uma Serra sempre especial, o touro é o animal que contrapõe a balança da singeleza imposta pela pureza original da criança coroada imperador. Se um é forte e possante, sendo lidado por todos para que a comunidade imponha a sua vontade aos deuses, quem manda verdadeiramente, ou seja, o próprio imperador, é escolhido e coroado sempre por ser o mais jovem, o mais puro e o mais desprotegido de todos os jovens da região, simbolizando a grandeza de quem é pequeno e a enormidade dos valores e princípios que mais tarde o Cristianismo plasmará no Sermão da Montanha de Jesus Cristo.
 
Antes de ser morto sem se saber exactamente por quem, encoberto por um véu de mistério que só a história permite desvendar, o touro é transportado à volta da capela três vezes. Uma primeira em honra do Pai, seguindo do Filho e, por fim, em honra do Espírito-Santo. E é depois desta terceira volta, quando é benzido pelo Prior local num holocausto místico em que todos participam também, que o animal é morto e esquartejado, sendo o seu corpo cozinhado em pleno largo da capela e a refeição servida aos pobres da zona como bodo cerimonial. 
 
 
 
 
Um culto ancestral, provavelmente muito mais antigo do que a própria capela que agora ali temos e que, num registo anímico de entrega à espiritualidade, recupera de um só ensejo a marca perene do paganismo pré-histórico em linha com os valores espirituais da cristianização galopante. A caridade que dali deriva, porque os mais desprovidos da materialidade ali obtêm as proteínas da carne de que tanto necessitam para viver, encobre-se ritualisticamente para não ser “caridadezinha”, partilhando de forma relevante ensinamentos essenciais para que verdadeiramente ali se cumpra o destino maior de Portugal.
 
Quadro maravilhoso que sobressai do cenário idílico da Serra de Sintra, a Aldeia do Penedo e a Capela de Santo António são visita obrigatória para quem deambula pela Alma de Portugal. Ali se encontram, num cruzamento sentido, as marcas maiores que fizeram coisa enorme deste país tão pequeno.
 
Porque quem sabe entende.
 
 

 

A Capela do Espírito-Santo de Teira e o Castro de São Martinho em Alcobertas

João Aníbal Henriques, 06.09.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Existem espaços e monumentos de tal maneira simples na sua formulação estética, que dificilmente deixam antever a complexidade que traduzem e a importância que têm no registo histórico ao qual pertencem.
 
A sua singeleza, normalmente associada à pureza extraordinária das comunidades que os construíram, traduz assim um apelo quase inaudível aos sentidos, obrigando o visitante a um exercício quase onírico para os perceber…
 
É o que acontece na Freguesia das Alcobertas, no Concelho de Rio Maior, com a singelíssima Capela do Espírito-Santo e, um pouco mais adiante, com o que resta do maltratado Castro chamado de São Martinho.
 
 
 
 
A capela, simples na sua forma chã e pragmaticamente inserida na tipologia própria da arquitectura de índole religiosa das zonas rurais Portuguesas, integra-se num largo de bonitas proporções no qual assumem especial importância um grande crucifixo construído em 2001, e o painel de azulejos onde consta uma perspectiva do antigo Castro de São Martinho, profundamente marcante na definição sagrada do templo Alcobertense.
 
Datada do Século XX, a capela vem substituir uma antiga ermida dedicada a São Martinho que existia no topo do monte onde outrora se ergueria o antigo castro neolítico. Tendo lendariamente sido destruída por um raio, a imagem do santo foi transportada monte abaixo até à nova capela construída no centro da povoação de Teiras. Diz ainda a lenda que a dita imagem, durante muito tempo e por vontade própria, se escapulia durante a noite para o local onde outrora se erguia a sua capela, teimando em não ficar na nova capela do Espírito-Santo onde reiteradamente a colocariam.
 
Com fachadas brancas a condizer com o apelo à simplicidade que o culto do Espírito-Santo obriga, a capela apresenta uma só nave, também ela de aspecto singelo, e um único óculo colocado sobre a porta principal, deixando uma nota de luz no seu interior. O sino, colocado num suporte simples de pedra calcária, completa o conjunto, dando um carácter airoso ao enquadramento simbólico deste espaço sagrado.
 

São Martinho e o Espírito Santo

 
 
Na memória colectiva associada a este espaço, numa linha de continuidade que assenta numa profunda sabedoria popular, possivelmente de tradição oral e que se perpectua ao longo de várias gerações, existe uma forte ligação aos cultos ancestrais que outrora foram desenvolvidos no velho castro.
 
 
 
Se a devoção actual ao Espírito-Santo, numa lógica de Quinto Império Sebastianista, apela ao desapego material, reiterando a máxima de que a Portugalidade exige despojamento das vestes sujas pelas agruras da vida para que seja possível vestir os trajes iluminados de uma existência situada em planos etéreos muito superiores, por outro lado, a devoção ancestral a São Martinho, o tal santo cujo mal-estar por estar colocado na nova capela é por demais  evidente, aponta também ela para uma ritualística de pobreza que, dadas as condições naturais do local onde estes monumentos se encontram, parece ter sido a pedra angular as muitas vidas que por aqui se sucederam ao longo de muitos séculos.
 
Diz a lenda de São Martinho que, sendo ele soldado romano em trânsito por uma estrada gelada numa das imensas serranias do império, terá sido interpelado por um paupérrimo pedinte que, transido de frio, lhe pediu ajuda para sobreviver ao Inverno. O Santo, sem pensar duas vezes, despiu as suas vestes e colocou-as sobre o corpo do desgraçado, ficando ele próprio sujeitos às inclemências do tempo. Mas Deus, reconhecendo o gesto nobre daquele soldado, terá mudado a estação e recriado uns dias de calor estival, dando assim condições a São Martinho para poder regressar são e salvo à sua terra.
 
É esta a origem do denominado “Verão de São Martinho”, bem como do quadro geral de despojamento que caracteriza o culto do Espírito Santo na capela de Teira.