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As Primeiras Festas do Mar em Cascais

João Aníbal Henriques, 13.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A primeira edição das Festas do Mar de Cascais aconteceu em Julho de 1936. Com um enquadramento e objectivos substancialmente diferentes daqueles que actualmente caracterizam os festejos, foram sempre, mesmo assim, a expressão maior da ligação ancestral que Cascais tem com a sua baía e com o mar.

Na versão de 1936, pensada e organizada por José Florindo de Oliveira, então Presidente da Comissão de Propaganda de Cascais, as Festas do Mar surgem enquadradas pelos desafios que afectavam a Europa e o Mundo naqueles anos. Em clima de pré-guerra, com a consolidação do socialismo e do comunismo em vários países, pressentia-se já a necessidade de Portugal recuperar o registo de prestígio que o havia caracterizado muitos anos antes. E a pressão sobre as colónias, nessa altura já assumidamente ameaçadora por parte das grande potenciais mundiais, obrigava a um exercício de recuperação dos símbolos e dos valores ligados ao mar.

No ofício enviado em 1936 ao Ministro do Mar, no qual a direcção da Propaganda de Cascais pede autorização para arrancar com a edição inaugural dos festejos, estão expressos os objetivos que presidem à iniciativa. Diz nesta carta o cascalense Florindo d’Oliveira: “Com os nossos respeitosos cumprimentos e com um pedido de desculpa por esta maçada e abuso, pedimos licença a V.Exª. para vos expormos um assunto, que para nós se nos afigura d’um elevado fim Nacional, e que, dentro do seu objectivo se nos afigura uma boa lição aos homens da doutrina do internacionalismo, aos da foice e do martelo e ainda aos cegos que por aí andam divulgando destruidoras doutrinas. Ao internacionalismo há pois que opor uma grande barreira de Nacionalismo”.

 

 

No pedido enviado ao Ministro Manuel Ortins Torres de Bettencourt, Florindo d’Oliveira explica que a Baía de Cascais foi o berço do grande navegador Afonso Sanches e que, na senda do papel muito relevante que ele teve na Epopeia Marítima Nacional, desejava que as festas de Cascais fossem lançadas simbolicamente associadas à Cruz de Cristo, que durante essa época gloriosa era a marca que identificava as naus e as caravelas portuguesas que davam novos mundos ao Mundo: “Que nas velas de todas as embarcações inscritas na Capitania do Porto desta vila,  quer de recreio, quer de pesca ou outras, seja pregada a Cruz de Cristo, para que ela faça ofuscar ou desaparecer para sempre da nossa terra o símbolo do comunismo”.

E assim, com o apoio directo e empenhado do então Ministro da Marinha e também do Presidente da República, o Marechal Óscar Fragoso Carmona, que nessa altura residia precisamente no Palácio Real da Cidadela de Cascais, a primeira edição das Festas do Mar aconteceu em Cascais em Julho de 1936.

De entre as muitas iniciativas que fizeram parte do programa destas festas, onde não podiam faltar os concursos de natação e as regatas de barcos à vela e remos, organizadas pelo Grupos Dramático e Sportivo de Cascais e pelo Clube Naval de Cascais, salienta-se um grande cortejo com as embarcações militares da Armada Portuguesa que, transportando a bordo todas as entidades oficiais, navegaram pelas águas da baía acompanhando a frota de pesca costeira, todos hasteando bandeiras com a tradicional Cruz de Cristo e homenageando assim os navegadores que corporizaram os descobrimentos portugueses.

 

 

Ao longe, balouçando suavemente ao sabor da brisa estival e do marulhar das ondas da baía, um dos barcos de guerra transportava a Banda de Música da Armada, que ia encantando os milhares de festeiros que assistiram à iniciativa a partir da esplanada que existia junto ao Passeio Dona Maria Pia de Sabóia. E o ponto alto dessa tarde, que muito entusiasmou os cascalenses ali presentes, foi o sinal dado pelos Bombeiros de Cascais de “navio em perigo” lá para os lados da Boca do Inferno. De imediato, num exercício em que participaram todas as entidades presentes, saiu para o mar uma enorme comitiva que tinha como objectivo prestar auxílio ao navio pretensamente em dificuldade, num exercício que entusiasmou de sobremaneira os que assistiam à iniciativa a partir de terra.

A corporação de Bombeiros de Cascais, com o Comandante Joaquim Theotónio Segurado à cabeça, participou no exercício com carros porta-cabos, foguetes e demais apetrechos de salvamento, transformando a iniciativa num exercício sensacional e raro que a todos impressionou.

Simultaneamente, ao longo de toda a tarde e prolongando-se noite afora, a esplanada do Clube Naval encheu-se de animação, com serviço de chá e pastelaria, bufete e arraial popular animado pela banda da Sociedade Musical de Cascais que deu o mote para o baile que entrou directamente nas memórias identitárias da vila de Cascais.

 

 

As receitas destas primeira edição das Festas do Mar foram prontamente distribuídas com o acordo unânime de todos os organizadores: 70 % reverteu directamente para o apoio aos pescadores que haviam sido afectados pelos grande temporais que tinham devastado o mar de Cascais durante a última Primavera;  20% foi entregue ao Instituto de Socorros a Náufragos que, criada por iniciativa do Rei Dom Carlos, era desde então uma das principais instituições da sociedade civil de Cascais; e os restantes 10% seguiram para os cofres da Comissão de Propaganda de Cascais, entidade que carregava consigo a responsabilidade de zelar pela animação e pelo espaço público na vila e, dessa maneira, pela angariação dos meios que se afiguravam necessários para manter Cascais como a mais charmosa e cosmopolita de todas as terras portuguesas.

 

 

Em 1936, quando o Mundo vivia aterrorizado com as convulsões políticas que haverão de culminar na eclosão da II Guerra Mundial (1939-1945), Cascais preocupava-se com a união da sua sociedade civil, salvaguardando que todos contribuíam directamente para a criação das condições necessárias ao cumprimento do seu comum desiderato. Na organização desta primeira edição das Festas do Mar participaram directamente o Presidente da República, o Ministro da Marinha, o Delegado Marítimo de Cascais, o Administrador do Concelho, o Presidente da Câmara Municipal, o Presidente do Clube Naval, o Presidente da Associação Comercial de Cascais, os directores da Sociedade Propaganda da Costa do Sol, o Proprietários das armações de Cascais (Alberto Graça), Guilherme Salgado, que era na altura o representante junto da câmara Corporativa, os elementos da Comissão de Propaganda, os pescadores e proprietários de barcos, nomeadamente José Crespo, Filipe Figueiredo e D. José d’Avillez e o demais povo de Cascais. As festas contaram ainda com o apoio directo do Diário de Notícias que, através de parangonas de propaganda da iniciativa, juntaram em Cascais a imensidão de público que transformou este certame num inquestionável sucesso.

Interrompidas durante a guerra e reatadas periodicamente durante muitos verões de Cascais, as Festas do Mar são hoje o ponto mais alto da época estival cascalense. Evoluindo ao longo dos anos de acordo com o gosto e o enquadramento das várias épocas, as Festas do Mar foram sempre e continuam a ser o mais vibrante e marcante de todos os eventos organizados em torno do magnífico cenário da nossa baía!

Fotografias de João Cabral da Silva, António Passaporte e Arquivo Histórico Municipal de Cascais

A Igreja de Santa Maria da Graça em Setúbal

João Aníbal Henriques, 24.02.22
 

por João Aníbal Henriques

A cidade de Setúbal, com a sua origem provavelmente pré-histórica, tem uma relação directa e permanente com o Rio Sado. O alimento das suas gentes, bem como a prodigalidade dos seus engenhos, ofereciam condições extraordinárias de vida aos primeiros assentamentos humanos que escolheram este local para viver. Por esse motivo, e também porque o bem-estar geral providenciado pela abundância de recursos não trazia grandes exigências a quem ali morava, o burgo foi crescendo ao sabor das necessidades quotidianas, sem grande ensejo de uma pujança que de nada servia nem acrescentava absolutamente nada ao esforço permanente de angariação de sustento que determinava as leis da vida.

A invocação a Nossa Senhora das Graças, provavelmente de origem muito mais recente, é ela própria tradutora desta ligação milenar que determina a intercessão da Virgem Maria no dia-a-dia dos habitantes. Na sua faceta de defensora dos seus filhos humanos, a Senhora das Graças é a personificação adaptada da Imaculada Conceição de Maria, a Nossa Senhora da Conceição que é simultaneamente Protectora e Rainha de Portugal. Concebida sem pecado, a futura Mãe de Deus – e por extensão mãe divina de todos os homens – faz parte da matriz identitária da grande maioria das cidades portuguesas, carregando consigo um laivo de Fé que é transversal e que, até em última instância, justifica a independência política e o sucesso tantas vezes alcançado por Portugal.

 

 

No caso de Setúbal, em particular, a actual Igreja de Santa Maria da Graça é o resultado da reconstrução concretizada no Século XVI com traço do Arquitecto António Rodrigues. A magnanimidade do projecto, assente na força telúrica emprestada à sua fachada maneirista pelas duas enormes torres sineiras, é demonstrativa da pujança que tinha a sociedade sadina durante esse período áureo dos descobrimentos portugueses, nos quais o porto de Setúbal, bem como a linha de navegabilidade que o Sado definia e que era essencial para a ligação aos mananciais agrícolas daquela zona do Alentejo (veja-se p.e. a História da Herdade da Palma em Alcácer do Sal), acabavam por ser determinantes na capacidade de produzir e de comercializar que eram essenciais para suportar estruturalmente a estrutura dinâmica das próprias descobertas.

Digna de uma nota especial, não só pelo impacto que tem neste projecto, mas também porque simbolicamente ajuda a perceber essa situação verdadeiramente extraordinária no contexto do que foi Setúbal durante esse período virtuoso da História de Portugal, é a intervenção de Mestre José Rodrigues Ramalho na criação da Capela-Mor da igreja, em talha dourada, que em 1697 foi acrescentada ao templo original.

 

 

Nas suas origens documentalmente mais antigas, até porque provavelmente existirão pré-existências neste espaço que permitirão estender a sacralidade do lugar a mais alguns séculos, a igreja original que antecedeu estruturalmente a actual terá sido sagrada no dia de Nossa Senhora da Assunção no ano de 1245.

Em plena Idade Média, terá sido a Igreja de Santa Maria da Graça a definir o perímetro urbanístico da cidade, dela dependendo o surgimento dos primeiros bairros que estenderão a ocupação urbana até ao local onde actualmente se encontra a Praça Bocage, a Poente deste núcleo inicial.

Magnífica no seu enquadramento simbólico, e eminentemente tradutora da significação mais profunda da Cidade de Setúbal no contexto nacional, a Igreja de Santa Maria da Graça é hoje um testemunho muito importante que nos permite compreender melhor a interacção existente entre os recursos disponíveis para uma determinada comunidade humana e a consolidação da sua estruturação identitária a partir de uma concepção do sagrado que lhe define os contornos mais profundos.

As sombras impostas à sua volta pela altura determinada pelas suas torres, ainda hoje significa para os setubalenses a cobertura provida pelo manto de Nossa Senhora enquanto padroeira maior da cidade e de Portugal.  

 

O Paço de Monte Real e a Intervenção Alquímica dos Reis de Portugal

João Aníbal Henriques, 14.12.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A união matrimonial entre o Rei Dom Dinis de Portugal e a Rainha Santa Isabel de Aragão, configura um dos mais emblemáticos e enigmáticos momentos da História de Portugal. Os cônjuges, ambos predestinados para os desafios do espírito e para o cumprimento na Terra da vontade do Altíssimo, concretizam a sua vida cada um à sua maneira mas, por intervenção do próprio destino, complementando-se numa amálgama de sucesso que haveria de mudar a vida de Portugal.
 
O Rei poeta e artista, fadado para um destino enorme assim que o seu pai começou a sofrer os primeiros padecimentos da doença que o havia de matar, assumia em si próprio a dupla função de governante e de alquimista, contribuindo de forma decisiva para a concretização em Portugal de grande parte das mais influentes correntes de pensamento que existiam no Mundo de então.
 
Os Cavaleiros Templários, Ordem Religiosa mítica que havia sido determinante no processo das Cruzadas e na recuperação do saber primordial Cristão que estava guardado de olhares impuros na Cidade de Jerusalém, foram extintos por ordem papal em 1312. Dom Dinis, do alto da pequenez do seu aparentemente minúsculo País, consegue transmutá-los numa ordem diferente, salvando os seus bens materiais e o tesouro maior que consigo carregavam ao longo dos eras e dos tempos.
 
 
 
 
E foi Dom Dinis, plantador das naus que hão-de levar os Portugueses a dar novos mundos ao Mundo, quem recriou em Portugal a universidade, assumindo a sua costela trovadoresca que transforma emoções de alma em pão e novo sangue.
 
A Rainha Santa Isabel, por seu turno, transforma também ela a matéria. As rosas, símbolo alquímico da cruz viva e em permanente movimento, transformam-se em pão, mantendo na carne o odor radioso de alguém que vive lá em cima…
 
Da união dos dois, em rios que permanentemente transbordam deixando marcas em ambas as margens, nasce então a cabeça do Império Português, misto de fénix e serpente que define os ciclos diferentes e um país tão especial quanto este.
 
 
 
 
Dom Dinis e Santa Isabel, unidos amiúde no caldeirão alquímico das nascentes sagradas que existiam junto a Leiria, ocupam num monte distante o espaço que há-de transformar-se no mais singular dos Paços Reais de Portugal. Ali, na encosta subliminar do Ulmar que permite deslumbrar as vistas com o Vale do Liz, rio e pureza simultaneamente, dão nome a uma nova terra que se manterá incólume na História de Portugal: Monte Real.
 
O Paço de Monte Real, acanhado nas dimensões que sobreviveram mas enorme no espaço que se gerou da união simbólica e concreta entre o Rei Pensador e a Rainha Santa, é hoje uma sombra do que foi, mas assume-se como testemunho inultrapassável daquela que foi a história maior de todas aquelas que ajudaram a construir Portugal.
 
Tenha sido a reconstrução de um castro pré-histórico que já ali estava quando o Rei chegou, como defende João de Almeida, ou um paço singelo construído de raiz para acompanhar a plantação do Pinhal de Leiria e para a Rainha poder usufruir das águas milagrosas que nasciam no local, o certo é que o Paço de Monte Real é a marca perene da capacidade empreendedora de um dos reis maiores da história nacional.
 
 
 
 
Do Paço de Monte Real, terá Dom Dinis antevisto o Portugal que hoje temos. Só assim se explica, como Pessoa bem refere, a intervenção da Coroa na defesa e adaptação dos antigos Templários que no nosso País renascem, como a fénix das cinzas, como a Ordem de Cristo. E qual é o símbolo maior dessa ordem nova que nos espreita do alto da sua vetusta idade? A cruz de Cristo, ou melhor, a Rosa Vermelha que a Rainha Santa Isabel carregava ao peito.
 
Coincidências ou não, certo será que a intervenção deste casal real abriu portas ao Mundo Novo e que tudo isso aconteceu no Paço de Monte Real. É obrigatória uma visita demorada, antevendo nas inexistências toda a importância que teve e tem. É essencial que este espaço assuma o lugar de destaque que deve ter na definição maior da Identidade Nacional.