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O Espigão das Ruivas e o Porto de Touro na Sacralidade Devocional de Cascais

João Aníbal Henriques, 27.01.22
 

por João Aníbal Henriques

Existem espaços que, independentemente da sua História e/ou da sua monumentalidade, apresentam uma força extraordinária no imaginário colectivo das comunidades. Normalmente, quando assim acontece, a sua História efectiva, baseada nos factos incontornáveis ditados pela documentação existente ou pelos vestígios que a arqueologia recuperou, mistura-se com os mitos que resultam do impacto que o dito espaço tem nas gerações que se vão multiplicando em seu torno.

A sacralidade destes espaços, constrói-se a partir da interpretação que se faz deles. E as comunidades que os vivem, condicionando-os às suas necessidades e ensejos, traduzem normalmente nessas abordagens os resquícios mais profundos da sua própria existência…

O mítico Espigão das Ruivas, situado no limite Ocidental do território municipal de Cascais, em local próximo do Cabo da Roca e em estricta ligação física ao Rio de Touro, que ali desagua misturando-se com o próprio Oceano, é exemplo paradigmático desta realidade, impondo-se no imaginário das populações e reformatando a sua relação com a Serra de Sintra e o com o Atlântico.

 

 

O seu envolvimento plástico e cénico, com as arribas verdejantes ao fundo e em contraste profundo com o azul do mar, mistura-se amiúde com o vento forte que condiciona o acesso e impõe respeito a quem o quer visitar. Mítico, porque inacessível ao comum dos mortais, apresenta características morfológicas especiais que adensam o mistério e promovem essa perspectiva quase irreal de um sonho inconcretizado.

As principais linhas de interpretação do Espigão das Ruivas passam pelo mais básico alinhamento das reais necessidades da vida das suas gentes com os impressivos resquícios das vivências passadas. Os rituais da fertilidade, ancestrais na sua relação com a própria sobrevivência da espécie humana, conjugam-se aqui de forma telúrica com o cruzamento entre as águas do Rio Touro. Oriundo da Serra de Sintra, mais propriamente do planalto de São Saturnino, a Poente da lendária Peninha, onde António Carvalho Monteiro, conhecido como Monteiro dos Milhões, construiu o seu eremitério sagrado sobre as penhas velhas da Senhora da Conceição, o ribeiro desce a encosta de forma livre até se cruzar neste espaço quase inacessível, com as tradições lunares das Ruivas, espécie de ninfas que aproveitam a solidão daquele espaço para por ali prosperar.

A linha de abordagem positiva, aqui consignada à figura mitológica do touro, sinónimo de força, de pujança viril e de masculinidade, junta-se à linha matriarcal e feminina que a Lua lhe dá. E desta ligação natural, simbolicamente traçando o contraste de forças aparentemente antagónicas mas complementares, resulta o movimento que origina a própria vida.

 

 

Com base neste pressuposto, e não se sabendo com exactidão qual foi a origem efectiva da velha estrutura pétrea existente no topo da rocha e com vista directa para a praia, fácil se torna perceber a interpretação linear que dele faz a comunidade. Se a isto juntarmos a longevidade desta situação, porque os vestígios que foram encontrados junto à dita estrutura datam da Idade do Ferro, natural se torna perceber que a extrapolação dos factos converge para aquilo que define as angústias maiores da sobrevivência daqueles que por ali passam.

Ano após ano: século após século; e milénio após milénio, vai-se aprofundando a convicção de que o Espigão das Ruivas é o espaço onde se encontram as respostas efectivas às nossas principais necessidades. E na perspectiva mais devocional do termo, resulta natural o processo de sacralização de um espaço que se presta a uma vivência onde a simbologia impera e que dá sentido a cada um dos detalhes que compõem a nossa existência sagrada.

No choque de contrastes quase de índole eléctrica que este espaço gera, cria-se uma janela de esperança que ajuda de sobremaneira a definir formas alternativas de existência.

E hoje, seja para um passeio deslumbrante através de uma das paisagens mais marcantes de Cascais, ou como mote para uma introspectiva análise recatadamente elaborada a partir de um qualquer anseio, a descida ao Porto de Touro, conjugado com a subida ao Espigão das Ruivas, oferece a quem a faz uma perspectiva diferente do Cascais onde vivemos.

Qualquer que seja o mote, o ensejo, a crença, a fé ou a determinação de quem o faz, este é um passeio que vale mesmo a pena!

Fertilidade Romana no Espigão das Ruivas

João Aníbal Henriques, 18.06.14
por João Aníbal Henriques

Situado no extremo ocidental do concelho de Cascais, onde desde a Idade do ferro se praticam os desconhecidos para reconhecidos cultos da fertilidade, encontramos o sitio arqueológico do Espigão das Ruivas, num lugar que a tradição designa como Porto de Touro ou Guincho Velho.

A envolvência deste lugar, bastante isolado do resto do território e, por isso, propício ao desenvolvimento de práticas ritualizadas, aliado ao facto de existir nas suas imediações um importante curso de água denominado Rio de Touro, possuía excelentes condições para o desabrochar de relações íntimas com a divindade, facto comprovado pela existência de um templo neste sítio, e que foi repetidamente reutilizado durante várias épocas, desde a pré-história até à actualidade.

De acordo com os dados arqueológicos fornecidos pelas escavações ali efectuadas pela Associação Cultural de Cascais, dirigidas pelo arqueólogo Guilherme Cardoso, o Espigão das Ruivas terá sido um dos principais pontos estratégicos onde se efectuou o culto da fertilidade, ainda hoje bastante vicejante junto das comunidades humanas que habitam ou utilizam as redondezas.

 


 
O afastamento do sítio face aos principais aglomerados humanos, bem como a proximidade patente face ao Rio de Touro, carregado com a simbologia da força e da virilidade, transformou este local de culto num sítio onde as práticas efectuadas não eram muito compatíveis com a mentalidade oficial das diversas épocas, factor condicionante da transformação de uma prática comum a quase todas as civilizações, ou seja, a adoração dos astros com o intuito de incrementara a fertilidade da mulher, uma zona profundamente vincada por um misticismo crescente, o que contribuiu para a manutenção, difusão e desenvolvimento dessas actividades. A natural curiosidade humana face ao desconhecido, bem como as especulações que também sob uma forma natural se vão desenvolvendo transformou o Espigão das Ruivas num sítio onde os meros rituais de passagem característicos de quase todas as sociedades ditas primitivas, depressa se transformaram em ritos mágico-religiosos carregados de um misticismo que se explica de forma natural pelas contingências geográficas  e magnéticas  que o local possuía, mas também pelo encantamento e pelo sentido apelativo que estava inerente às próprias acções ali desempenhadas.

 
 
De facto, quer a denominação de lugar, onde as ruivas representam, segundo a tradição popular, as antigas ninfas que ali aguardavam o sopro divino que lhes permitia o desenvolvimento da carga sexual com que encantavam os homens, quer mesmo o nome que ainda hoje é atribuído ao curso de água ali existente, em que a relação com o Deus Romano da fertilidade e com o símbolo grego e cartaginês da força e da pujança está extraordinariamente bem patente, demonstram bastante bem a forma como a prática reiterada de um exercício que se afasta da vivência quotidiana pode influenciar as mentalidades, a etnografia e mesmo a vida política de uma comunidade. Essa influência, por seu turno, acaba por influir, sempre de forma positiva, no próprio património edificado, tal como se constata pela listagem patrimonial que apresentamos em anexo.

A chegada dos romanos à Península Ibérica, bem como o esforço por eles desenvolvido no sentido de promover a efectivação de um processo de aculturação do qual dependia a real ocupação deste lugar, acabaram por influir decisivamente no desenvolvimento da nova mentalidade peninsular. De facto, por serem conhecedores de novas técnicas de utilização e de rentabilização do solo, herdadas na sua quase totalidade daquelas que o antigo império grego havia repescado das civilizações antigas do médio oriente, os romanos que se instalaram em Cascais acabaram por transformar, de uma forma bastante radical, o modo de vida das populações indígenas, uma vez que estas últimas, na sua quase totalidade, eram compostas profissionalmente de agricultores e pescadores, razão pela qual se tornou bastante fácil o referido processo de aculturação.

Como se sabe, ambas estas actividades se encontravam bastante dependentes dos elementos naturais para o seu sucesso ou insucesso, sendo que, aqui como noutros locais, os habitantes que a elas se dedicam tendem a respeitar de sobremaneira as expressões do ambiente e do meio envolvente, atribuindo-lhes significação simbólica e religiosa. Não será por acaso, quanto mais não seja porque o acaso não existe, que os grupos humanos formados essencialmente por pescadores e lavradores, tal como acontecia em Cascais no período imediatamente anterior à chegada dos Romanos, são mais propícios ao desenvolvimento de rituais místicos e mágicos.

 
 
Não será estranho a nenhum Cascalense, segundo esta ordem de ideias, o encontrar de diversas capelas e ermidas dedicadas a figuras simbólicas do cristianismo católico, edificadas sobre vestígios mais ou menos palpáveis de templos ou espaços sagrados anteriores, nomeadamente atribuídos a cultos pagãos ou indígenas pré-históricos. A continuidade ritual de Cascais será assim, como não poderia deixar de ser, o fruto de uma série de influências recebidas dos mais variados pontos do globo, desde as antigas migrações norte-africanas, até às recentes comunidades afro-brasileiras que aqui desenvolvem as suas acções. A dependência da terra e do mar, mesmo na actualidade, favorece as ligações entre o Homem e Deus, uma vez que o processo de funcionamento da natureza, à partida com características absolutamente aleatórias, se torna incompreensível para o comum cidadão, que é obrigado a procurar noutros sítios as explicações para os bons e maus anos de colheitas e para as boas ou más pescarias.

 
 
 
Assim, as contribuições dadas pelos invasores itálicos para o conhecimento daquelas que eram as melhores formas de controlar a natureza depressa lhes granjeou um respeito e uma fidelidade que veio a permitir a sua vasta interferência nos rituais mágicos e religiosos praticados neste espaço. Só que, nesta como noutras áreas directamente relacionadas com a presença romana no actual território Cascalense, também os invasores superaram o bloqueio ideológico promovido anteriormente. Os recém-chegados ocupantes, como povo desenvolvido à custa de intrincados processos de aculturação promovidos em todo o território imperial, incentivados pela riqueza crescente que a aculturação e a necessidade de homogeneidade promovia, depressa perceberam que a manutenção física do território conquistado, para ser duradoura e para produzir os tão almejados frutos económicos pretendidos, passava mais depressa pelo encetamento de relações amigáveis com os indígenas, do que pela manutenção de uma posição de força militar que, como já outros casos o haviam demonstrado, possui um tempo de vigência muito curto, para além de se tornar bastante dispendioso.

A única solução compatível, no caso peninsular, onde as populações autóctones possuíam um grau de desenvolvimento difícil de definir, uma vez que as suas estruturas de hierarquização social, bem como as principais características de vivência em grupo, se encontravam providas de bases bastante sólidas, o que, para alguns investigadores poderá ser sinónimo de um grau bastante grande de desenvolvimento, foi a de promover o contacto amigável entre os dois grupos, de onde resultou a miscelânea cultural encontrada em Cascais pelo Prof. José da Encarnação. Para outros investigadores, a consequente procura crescente de ritos e rituais paranormais, bem como a existência de uma complicada base ideológica e religiosa, traduz-se na prática pela pouca aptidão comunal pelas matérias relacionadas com o conhecimento científico.

 
 
 
Só que, em nosso entender, esses investigadores esquecem as características que normalmente revestem essa proclamada cientificidade, de onde se destacam, pela observação do devir histórico das ciências, o carácter precário e provisório de todas as descobertas efectuadas em quase todas as áreas do saber. Por esse motivo, e porque o saber mágico-ritual das populações indígenas Cascalenses, no momento imediatamente anterior à chegada dos romanos, era de facto bastante complexo, para além de espelhar grandemente a necessidade de compreensão da natureza e dos seus fenómenos, será lícito pensar que o desenvolvimento comunitário inerente a este facto deverá ser tido em conta, sendo essa, afinal, a única chancela que veio a condicionar o esforço romano de proclamar e desenvolver uma política de respeito face às crenças e à cultura peninsular. É por este motivo, mais do que por qualquer outro, que a miscenização entre romanos e indígenas vai marcar definitivamente a vivência daquele que é actualmente o território concelhio de Cascais, facto que teve o seu seguimento lógico, em momentos seguintes, pela continuidade de utilização desta política de mistura que esteve patente não só durante o período visigótico, com também durante o Árabe e mesmo durante os anos de ouro dos Descobrimentos.

A comprovar esta hipótese e na sequência do trabalho epigráfico do Prof. José da Encarnação, já mencionado anteriormente, está a existência de diversas lápides romanas encontradas em Cascais onde é possível vislumbrar a mistura em questão. Na sua obra «Roteiro Epigráfico Romano de Cascais», embora com algumas naturais reticências, o autor segue precisamente esse cainho: «por conseguinte, parece ter confluído na identificação deste divindade influências orientais. Não será de rejeitar a hipótese de uma relacionação - através do radical ar - com a água corrente, na sequência do raciocínio, apresentado em 1975, a reflectir a importância da Ribeira de Manique para os agricultores de antanho. Ma essa divindade tem um cunho étnico, digamos assim, atendendo ao primeiro sobrenome: protegerá de modo especial os Aranti; já o segundo encomiástico, terá uma função diferente, a de infundir confiança - porque Áraco vencerá todos os obstáculos... [...] É a dedicante uma indígena romanizada: usa o gentilício decerto mais frequente no termo de Olísipo - Iulius - e, por isso, não hesita em o mencionar simplesmente em sigla.»

 
 
É óbvio, quando se menciona a vivência psíquica e sagrada de uma comunidade que viveu tão afastada do presente, que o carácter dos conhecimentos que agora se adquirem e se difundem podem ser simplesmente pistas que servirão de bases a novas hipóteses, razão pela qual, e fundamentando a já referida precariedade do conhecimento científico actual, o ilustre autor acaba por concluir mais à frente: «Uma interpretação sedutora, confesso; assaz desprovida de fundamentos válidos, não o nego; mas é nesse campo ainda movediço que, infelizmente, ainda nos movimentamos quando tentamos desvendar o mundo ainda tão hermético da teonímia indígena peninsular».