Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

cascalenses

cascalenses

Quando a Vila da Parede se Tornou na "Nova Olivença de Cascais"

João Aníbal Henriques, 21.10.25

 

por João Aníbal Henriques

Em 1934 a actual Vila da Parede, no Concelho de Cascais, esteve prestes a mudar de nome. Por iniciativa do Grémio Alentejano e da Comissão de Propaganda de Cascais, apoiados num artigo de jornal publicado com grande alvoroço nessa mesma data, criou-se um movimento de opinião que pretendia renomear aquele lugar com o impactante topónimo “Nova Olivença”!

Esta ideia, contextualizada numa época em que o Estado Novo se estava ainda a afirmar politicamente, procurando grandes causas que contrariassem o vazio provocado pela Primeira República, cruza-se com o desafio que Cascais igualmente atravessava de recuperar o prestígio e a importância estratégica que detinha durante os últimos anos do regime monárquico. E a denominada “Causa de Olivença”, com força e peso político de âmbito nacional, prestava-se a iniciativas ousadas…

O bastião republicano paredense, pujante durante o período que se estende desde a revolução que levou à implantação da república até à revolução nacional de 1928, havia perdido muita da sua força e a capacidade de afirmação no contexto do novo regime ia paulatinamente desaparecendo, deixando vulneráveis as posições dos mais relevantes cidadãos paredenses desses tempos.

No referido artigo publicado nesse mesmo ano, o jornal “Os Novos” advogava que a Causa de Olivença era um desígnio nacional e, como tal, Cascais, com o seu prestígio e visibilidade de nível internacional, poderia contribuir de forma decisiva para a defesa da reintegração da Cidade Alentejana de Olivença no território nacional. Para tal, bastaria alterar o nome do lugar da Parede, passando a designá-lo como “Nova Olivença”.

A causa de Olivença é uma disputa histórica entre Portugal e Espanha sobre a soberania da vila de Olivença, situada junto à fronteira luso-espanhola. Portugal perdeu o território em 1801, após a Guerra das Laranjas, pelo Tratado de Badajoz, mas nunca reconheceu plenamente essa perda, considerando o tratado nulo e invocando o Congresso de Viena (1815), que recomendava a restituição. Embora Espanha administre Olivença desde então, Portugal mantém a reivindicação diplomática, tornando a questão uma causa simbólica de afirmação histórica e territorial.

A Parede, que pouco tempo antes havia sofrido uma outra tentativa de alteração do seu topónimo, nessa altura no contexto da afirmação turística da então Costa do Sol, no âmbito da qual houve quem pretendesse designá-la como “São José do Estoril” (dando continuidade à força visual da marca ‘Estoril’ que começava no Monte Estoril e seguia por Santo António do Estoril, São João do Estoril, São Pedro do Estoril e deveria terminar na referida São José do Estoril), seria assim o fulcro da nova onda de contestação nacionalista que visava colocar a questão de Olivença no contexto da discussão política internacional, recuperando Portugal o controle político daquela localidade.

 

 

O Grémio Alentejano de Lisboa, em conjunto com a Comissão de Propaganda de Cascais, tomaram como boa esta causa e avançaram sem grande sucesso com a pressão junto do Executivo Municipal.

Não tendo despertado interesse por parte de quem governava Cascais, o projecto acabou por cair no esquecimento, mas vale a pena lembrá-lo pela importância que para a compreensão daquilo que foi o território municipal cascalense durante este período conturbado da História de Portugal.

 

 

 
 

O Louvor ao Trabalho do Campo na Aldeia de Murches em 1940

João Aníbal Henriques, 21.05.25
 

 

por João Aníbal Henriques

Em 1940, enquanto o Mundo se envolvia numa guerra de dimensões até essa altura inimagináveis, Portugal comemorava de forma sentida a grandeza da sua história através da alusão ao 800º centenário da Batalha de Ourique, em 1140, e o 3º centenário da Restauração da Independência Nacional, em 1 de Dezembro de 1640.

Pensada de forma a exaltar o passado glorioso do Império Português, e respondendo assim de forma indirecta às pressões das grandes potenciais internacionais que desejavam libertar as antigas colónias ultramarinas de forma a poderem controlar elas próprias as imensas riquezas que elas possuíam, este programa de comemorações assumia uma efectiva missão civilizadora, reforçando a identidade histórica do país e promovendo propagandisticamente o nacionalismo defendido pelo Estado Novo.

 


Cascais, desde sempre terra de Reis e de Pescadores, não se coibiu de apoiar e colaborar com a iniciativa, desde logo se empenhando numa série de iniciativas que compunham um programa comemorativo local e complementar às grandes eventos que estavam a ocorrer a nível Nacional. A sociedade civil cascalense, encabeçada pela Associação Comercial, pela Sociedade Musical, pela Associação de Bombeiros e pela Sociedade Propaganda, desenvolveu assim um conjunto inesperados de projectos nos quais participaram as entidades públicas de âmbito local e central.

Com o empenho muito particular de José Florindo de Oliveira, que na quantidade imensa de pedidos de apoio que endereça às mais variadas entidades públicas e privadas faz sempre questão de mencionar que os festejos de Cascais se inserem no vasto programa nacional comemorativo dos centenários, realizam-se em 1940, na aldeia de Murches, as festas de “Louvor ao Trabalho do Campo”. Explicando que com a inspiração que recebeu daquele que ela considera “o maior trabalhador de Portugal”, o Presidente do Conselho de Ministros, Doutor António d’Oliveira Salazar, pretende “ir ao encontro das necessidades e das dificuldades da boa gente do nosso campo, sem o ar ou o motivo e atitude de quem vai fazer uma esmola”, Florindo d’Oliveira  quer ajudar a comunidade agrícola que nessa altura ainda existia no Concelho de Cascais, e que tinha sido afectada por um péssimo ano agrícola que lhes havia condicionado de forma brutal os seus sempre muito precários rendimentos.

Diz ele que que ir “muito alegremente levar-lhes o conforto e o auxílio possível, tendo como protesto para tal fim uma festa de trabalho” com a apresentação de carros de lavoura, gados, alfaias, usos e costumes, de forma a evitar que os poucos que subsistem deixem de amanhar, cultivar e semear as poucas terras produtivas que subsistem em Cascais.

 


Para tal, escolheu a aldeia de Murches para receber este evento, não só porque tinha em seu torno um moinho e uma azenha, como porque tinha uma bem preservada capela dedicada a Santa Iria que lhe permitia juntar uma componente religiosa sempre muito importante para dignificar os festejos populares. Dizia ele, em correspondência trocada com o Secretariado de Propaganda Nacional, que queria aproveitar o cenário bucólico deste recanto campestre cascalense, para que a festa seja em tudo bem portuguesa, a bem da vivência das nossas aldeias e gritando de forma entusiasmada a parangona que serve de assinatura aos festejos nacionais: “Viva Portugal!”

Logo pela manhã, depois de um desfile etnográfico feito pelos alunos das escolas das aldeias vizinhas, todos os participantes reuniram-se junto à Capela de Santa Iria, em Murches, com as componentes da Mocidade Portuguesa que eram dirigidas pelo Comandante Joaquim Segurado. A solenidade dos festejos, sobretudo aqueles que contaram com a participação massiva da juventude de Cascais, foram primorosamente preparados de forma a impressionarem aqueles que a eles assistiram. Florindo d’Oliveira considerava que a solenidade ajudava a impressionar e a fixas no espírito os valores que presidiram à organização do certame e, desta maneira, a promover a mensagem que está subjacente ao próprio programa das comemorações.

A encerrar essa primeira manhã, uma salva de morteiros acentuou o carácter oficial da iniciativa, enquadrando a visita de honra à capela, onde a Mocidade de Portuguesa fez a guarda de honra ao altar, e que antecedeu a distribuição de prémios junto das crianças participantes. As meninas receberam um corte de vestido e um mapa de Portugal e os rapazes mais bem classificados receberam uma nota de vinte Escudos e o mesmo mapa de Portugal.

Os festejos religiosos seguiram-se presididos pelos priores de Alcabideche e de Cascais, e neles terão participado centenas de populares que ali acorreram oriundos das mais variadas paragens em torno de Lisboa.

 


A finalizar a festa e para regozijo de todos os participantes, realizou-se uma parada pecuária com enfoque nas especialidades equina, bovina, ovina e suína, que se dividiu ao longo das ruas que de diversas origens levavam ao adro da capela. Na primeira secção participaram garanhões de 3 a 10 anos de idade e cavalos castrados de 4 a 15 anos de idade. Na segunda secção estiveram éguas de criação e de trabalho. Na terceira secção brilharam juntas de bois mirandeses, conhecidos como “ratinhos” atrelados a carros ornamentados. Na quarta secção foi possível ver vacas taurinas e novilhas, que antecederam a quinta secção onde surgiam os rebanhos de ovinos compostos por ovelhas de raça burdaleira e saloia. Na última secção viam-se varrascos, com procos reprodutores de origem inglesa que se misturavam com porcos bízaros de origem local.

O júri que classificou os gados, os carros e as crianças que participaram nos festejos e que decidiu que prémios lhes ia entregar, era composto por Francisco Romano Esteves, Dr. Sousa Amado, Tenente Silva Reis, Dr. Alfredo Branco e Dr. António Sérgio Pessoa. A Comissão de Honra, em que participaram os grandes nomes das personalidades mais importantes de Cascais, como Armando Villar, António Muchaxo ou Abreu Nunes, era presidida pelo Capitão José Roberto Raposo Pessoa que nessa altura desempenhava funções como Presidente da Câmara Municipal de Cascais.

Integradas no programa extra-oficial do programa de Comemoração dos Centenário Nacionais, as Festas de Louvor ao Trabalho do Campo, em Cascais, destinavam-se a levar aos povos das aldeias cascalenses a ideia patriótica de uma Pátria enaltecida pelos feitos dos seus antepassados, apoiando assim os esforços que estavam a ser desenvolvidos em termos globais pelo Governo da Nação.

Fotografias do Arquivo Histórico Municipal de Cascais - AHMC

 

 

As Primeiras Festas do Mar em Cascais

João Aníbal Henriques, 13.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A primeira edição das Festas do Mar de Cascais aconteceu em Julho de 1936. Com um enquadramento e objectivos substancialmente diferentes daqueles que actualmente caracterizam os festejos, foram sempre, mesmo assim, a expressão maior da ligação ancestral que Cascais tem com a sua baía e com o mar.

Na versão de 1936, pensada e organizada por José Florindo de Oliveira, então Presidente da Comissão de Propaganda de Cascais, as Festas do Mar surgem enquadradas pelos desafios que afectavam a Europa e o Mundo naqueles anos. Em clima de pré-guerra, com a consolidação do socialismo e do comunismo em vários países, pressentia-se já a necessidade de Portugal recuperar o registo de prestígio que o havia caracterizado muitos anos antes. E a pressão sobre as colónias, nessa altura já assumidamente ameaçadora por parte das grande potenciais mundiais, obrigava a um exercício de recuperação dos símbolos e dos valores ligados ao mar.

No ofício enviado em 1936 ao Ministro do Mar, no qual a direcção da Propaganda de Cascais pede autorização para arrancar com a edição inaugural dos festejos, estão expressos os objetivos que presidem à iniciativa. Diz nesta carta o cascalense Florindo d’Oliveira: “Com os nossos respeitosos cumprimentos e com um pedido de desculpa por esta maçada e abuso, pedimos licença a V.Exª. para vos expormos um assunto, que para nós se nos afigura d’um elevado fim Nacional, e que, dentro do seu objectivo se nos afigura uma boa lição aos homens da doutrina do internacionalismo, aos da foice e do martelo e ainda aos cegos que por aí andam divulgando destruidoras doutrinas. Ao internacionalismo há pois que opor uma grande barreira de Nacionalismo”.

 

 

No pedido enviado ao Ministro Manuel Ortins Torres de Bettencourt, Florindo d’Oliveira explica que a Baía de Cascais foi o berço do grande navegador Afonso Sanches e que, na senda do papel muito relevante que ele teve na Epopeia Marítima Nacional, desejava que as festas de Cascais fossem lançadas simbolicamente associadas à Cruz de Cristo, que durante essa época gloriosa era a marca que identificava as naus e as caravelas portuguesas que davam novos mundos ao Mundo: “Que nas velas de todas as embarcações inscritas na Capitania do Porto desta vila,  quer de recreio, quer de pesca ou outras, seja pregada a Cruz de Cristo, para que ela faça ofuscar ou desaparecer para sempre da nossa terra o símbolo do comunismo”.

E assim, com o apoio directo e empenhado do então Ministro da Marinha e também do Presidente da República, o Marechal Óscar Fragoso Carmona, que nessa altura residia precisamente no Palácio Real da Cidadela de Cascais, a primeira edição das Festas do Mar aconteceu em Cascais em Julho de 1936.

De entre as muitas iniciativas que fizeram parte do programa destas festas, onde não podiam faltar os concursos de natação e as regatas de barcos à vela e remos, organizadas pelo Grupos Dramático e Sportivo de Cascais e pelo Clube Naval de Cascais, salienta-se um grande cortejo com as embarcações militares da Armada Portuguesa que, transportando a bordo todas as entidades oficiais, navegaram pelas águas da baía acompanhando a frota de pesca costeira, todos hasteando bandeiras com a tradicional Cruz de Cristo e homenageando assim os navegadores que corporizaram os descobrimentos portugueses.

 

 

Ao longe, balouçando suavemente ao sabor da brisa estival e do marulhar das ondas da baía, um dos barcos de guerra transportava a Banda de Música da Armada, que ia encantando os milhares de festeiros que assistiram à iniciativa a partir da esplanada que existia junto ao Passeio Dona Maria Pia de Sabóia. E o ponto alto dessa tarde, que muito entusiasmou os cascalenses ali presentes, foi o sinal dado pelos Bombeiros de Cascais de “navio em perigo” lá para os lados da Boca do Inferno. De imediato, num exercício em que participaram todas as entidades presentes, saiu para o mar uma enorme comitiva que tinha como objectivo prestar auxílio ao navio pretensamente em dificuldade, num exercício que entusiasmou de sobremaneira os que assistiam à iniciativa a partir de terra.

A corporação de Bombeiros de Cascais, com o Comandante Joaquim Theotónio Segurado à cabeça, participou no exercício com carros porta-cabos, foguetes e demais apetrechos de salvamento, transformando a iniciativa num exercício sensacional e raro que a todos impressionou.

Simultaneamente, ao longo de toda a tarde e prolongando-se noite afora, a esplanada do Clube Naval encheu-se de animação, com serviço de chá e pastelaria, bufete e arraial popular animado pela banda da Sociedade Musical de Cascais que deu o mote para o baile que entrou directamente nas memórias identitárias da vila de Cascais.

 

 

As receitas destas primeira edição das Festas do Mar foram prontamente distribuídas com o acordo unânime de todos os organizadores: 70 % reverteu directamente para o apoio aos pescadores que haviam sido afectados pelos grande temporais que tinham devastado o mar de Cascais durante a última Primavera;  20% foi entregue ao Instituto de Socorros a Náufragos que, criada por iniciativa do Rei Dom Carlos, era desde então uma das principais instituições da sociedade civil de Cascais; e os restantes 10% seguiram para os cofres da Comissão de Propaganda de Cascais, entidade que carregava consigo a responsabilidade de zelar pela animação e pelo espaço público na vila e, dessa maneira, pela angariação dos meios que se afiguravam necessários para manter Cascais como a mais charmosa e cosmopolita de todas as terras portuguesas.

 

 

Em 1936, quando o Mundo vivia aterrorizado com as convulsões políticas que haverão de culminar na eclosão da II Guerra Mundial (1939-1945), Cascais preocupava-se com a união da sua sociedade civil, salvaguardando que todos contribuíam directamente para a criação das condições necessárias ao cumprimento do seu comum desiderato. Na organização desta primeira edição das Festas do Mar participaram directamente o Presidente da República, o Ministro da Marinha, o Delegado Marítimo de Cascais, o Administrador do Concelho, o Presidente da Câmara Municipal, o Presidente do Clube Naval, o Presidente da Associação Comercial de Cascais, os directores da Sociedade Propaganda da Costa do Sol, o Proprietários das armações de Cascais (Alberto Graça), Guilherme Salgado, que era na altura o representante junto da câmara Corporativa, os elementos da Comissão de Propaganda, os pescadores e proprietários de barcos, nomeadamente José Crespo, Filipe Figueiredo e D. José d’Avillez e o demais povo de Cascais. As festas contaram ainda com o apoio directo do Diário de Notícias que, através de parangonas de propaganda da iniciativa, juntaram em Cascais a imensidão de público que transformou este certame num inquestionável sucesso.

Interrompidas durante a guerra e reatadas periodicamente durante muitos verões de Cascais, as Festas do Mar são hoje o ponto mais alto da época estival cascalense. Evoluindo ao longo dos anos de acordo com o gosto e o enquadramento das várias épocas, as Festas do Mar foram sempre e continuam a ser o mais vibrante e marcante de todos os eventos organizados em torno do magnífico cenário da nossa baía!

Fotografias de João Cabral da Silva, António Passaporte e Arquivo Histórico Municipal de Cascais

O Castelo de São Mamede em Guimarães

João Aníbal Henriques, 10.02.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Quando a História se cruza com a lenda, recriando um cenário onírico onde fantasia e realidade compõem um espaço único que calcorreamos, criam-se as condições para que um determinado lugar assuma laivos de deslumbramento que perduram ao longo dos anos.
 
É o que acontece na Cidade de Guimarães, comummente aceite como “Berço de Portugal”, no topo da sua colina de Nossa Senhora da Oliveira onde se ergue o seu altaneiro castelo. A construção, que quase parece ter sido esculpida como se de um cenário de teatro se tratasse, impõe-se na paisagem da cidade e define de forma evidente o imaginário colectivo dos vimaranenses e representa a própria identidade de Portugal.
 
 
 
 
De acordo com a documentação histórica, o Castelo de Guimarães foi começado a construir pela Condessa Mumadona Dias, viúva do poderosíssimo Conde Hermenegildo Gonçalves que governou o Condado Portucalense no final do Século X. No ano de 968, para defesa de uma comunidade monástica que havia criado no sopé do monte de Guimarães, a condessa emite um documento de doação do castelo à comunidade religiosa com vista à sua protecção contra os gentios. Nesse documento, é mencionado expressamente que as obras de construção já estavam terminadas e que a designação oficial da fortaleza era São Mamede. Será, porventura, um dos mais antigos documentos de fundação existentes em Portugal e, com a clareza notarial que apresenta, é por certo o principal atestado que nos permite conhecer e perceber o processo que conduziu à formação da nossa identidade e, posteriormente, a conquista da independência nacional.
 
Depois da conturbação normal que resulta da morte da condessa e do processo de posse pelo qual lutaram os seus descendentes, o Castelo de Guimarães volta a intervir directamente no devir nacional quando é entregue, por ordem do Rei Afonso VI de Leão e Castela, ao Conde Dom Henrique. A doação real, resultante do casamento do nobre borgonhês com a filha segunda do monarca, D. Teresa, acompanha o processo de criação formal do Condado Portucalense e, segundo reza a lenda, é a principal responsável pelo facto de ali ter nascido Dom Afonso Henrique que, mais tarde, virá a ser o primeiro Rei de Portugal.
 
 
 
A ligação de Dom Afonso Henriques a Guimarães, eivada dos mistérios próprios das histórias que se criam e desenvolvem no imaginário popular, relaciona-se por sua vez com a célebre Batalha de São Mamede, na qual o futuro monarca derrota a sua mãe e assume oficialmente os destinos do país emergente. Ali, no ímpeto de uma das batalhas mais significantes da História de Portugal, o auto-proclamado rei desfere o golpe final contra a sua mãe. Em termos simbólicos, é este o momento decisivo na cisão definitiva entre a lealdade jurada ao rei estrangeiro e o assumir de um caminho novo, marcado pela protecção divina e até pela presença do Filho de Deus junto do novo rei, num episódio cujos contornos surgem enublados pela passagem do tempo, entrando numa zona de não-tempo e não-espaço onde desaparecem os indícios daquilo que é real e do que é imaginário.
 
São Mamede, o mártir Cristão que lendariamente nasce envolvido pela desgraça e que ao longo da vida se concentra numa relação de dependência profunda e directa da mercê de Deus, personifica a concretização do impossível e a o apelo à força de uma Fé que supera a própria existência do real. Tal como Dom Afonso Henriques fará em meados do Século XII, Mamede de Cesareia está marcado pelo destino. A ele compete zelar pelos fracos e pelos desprovidos de sorte, garantindo-lhes o estabelecimento de pontes directas com o céu. No cimo da colina do castelo, depois de ultrapassada a Capela de São Miguel, chega-se então ao portão daquele espaço especial, e cruzando-se a sua entrada, deparamo-nos com o cenário mais linear do que foi o próprio nascimento de Portugal.
 
O mártir São Mamede, depois de atacado no estômago pelo rei pagão, sobreviveu graças à intervenção de Deus Pai. Directamente do céu, foi a própria divindade quem lhe colocou um estômago novo, permitindo-lhes resistir ao ataque e sobreviver para continuar a promover a sua Fé. Mas, quando tudo parecia indicar um desfecho oposto, Deus dirige-se a Mamede e diz-lhe que os seus dias na Terra chegaram ao fim… e ele aceita, numa entrega consubstancial à vontade do seu Pai, e entrega prazeirosamente a Alma ao Criador, sabendo de antemão que o milagre que deu forma à sua curta vida era, ele mesmo, a pedra angular que reforçaria a Fé de tantos que haveriam ainda de nascer num futuro que ele não sonhava e nem sequer concebia.
 
Ao fundar Portugal, o Rei Afonso Henriques cumpre destino idêntico. Dá forma, corpo e vida ao novo Estado de Portugal, numa entrega absoluta à vontade de Deus e antecipadamente disposto a sacrificar a sua vitória em prol de um outro qualquer desígnio. A subida do monte em Guimarães, tendo como horizonte da Senhora da Oliveira cuja orientação assegurava o bom carácter do seu trajecto, fê-la de forma totalmente desligada da matéria, numa quase absurda ingenuidade de sentimentos que o afastavam do tempo e do espaço em que viveu. Por isso Ourique foi algures em Portugal, embora tenha sido palco privilegiado da visita do próprio filho de Deus! E, sem tempo e sem espaço, foi em todo o território de Portugal que isso aconteceu.
 
 
 
 
Como para poder nascer é necessário morrer, numa inversão completa da lógica de pensamento que constrange a cultura Ocidental, Afonso Henriques gera o novo reino num registo de imaterialidade que permite ao improvável país novo a sobrevivência num cenário em que nada o deixaria antever. Foi um milagre o nascimento de Portugal e milagre maior ainda a sua sobrevivência durante tantos séculos. Tudo foi possível, soba égide de São Mamede, porque em Guimarães, cadinho sagrado da Alma de Portugal, Afonso foi capaz de viver em pleno a consagração e de concretizar o irrealizável aos olhos dos homens por exclusiva vontade de Deus…
 
Depois de obras profundas realizadas no castelo pelo Rei Dom Dinis, o mesmo que foi casado com a alquímica Rainha Santa que transmutava a matéria aos olhos do povo e do seu Rei, o Castelo de São Mamede ganha a fora que hoje ainda tem. Passam-se depois vários séculos de paulatino abandono, mercê da estabilização territorial que torna inútil o altaneiro castelo, processo que culmina com a sua classificação como Monumento Nacional em 1908, que virá a desencadear uma intervenção profunda realizada em pleno Estado Novo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Deste período ficou o aspecto cenográfico das suas muralhas, apimentadas com as ameias neo-medievais, que o retiraram do desinteressante e pouco edificante papel de fortaleza principal do Reino, para lhe conferir o título onírico de Berço de Portugal.
 
Em Guimarães ainda hoje se sente no ar o perfume fugidio desse sonho de antanho. As pedras das casas e das velhas capelas, erguidas à sombra do portentoso castelo e das imensas lendas que sempre o rodearam, vão refulgindo num brilho obscuro que acompanha os momentos bons e maus de Portugal.
 
É obrigatório visitar, explorar a fundo e conhece cada detalhe deste castelo excepcional. Até porque ali (ali mesmo naquele recanto sombrio do velho recinto amuralhado) nasceu Portugal!