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O Hotel Miramar no Monte Estoril: uma questão de vocação

João Aníbal Henriques, 06.06.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Existem construções que transcendem o imenso valor que se associa ao seu uso e que, pelas suas características intrínsecas, se impõem na paisagem definindo com precisão a vocação das localidades onde foram construída. É o que acontece com o Chalet Almeida Pinheiro, mais conhecido como Hotel Miramar, em pleno coração do Monte Estoril…
 
O Chalet Almeida Pinheiro, situado em pleno coração do Monte Estoril, é uma das peças mais emblemáticas da arquitectura de veraneio em Portugal. Concebido para cumprir a dupla função de ostentar a riqueza, o poder e a diferença da sua primeira encomendadora, uma “excêntrica africanista” de acordo com a descrição do Engenheiro Almeida Pinheiro que o construiu, e de servir como habitação de luxo para a mesma, a casa apresentava uma volumetria excepcional, impondo-se na paisagem e no registo de veraneio que caracterizava as casas existentes na sua envolvência.
 
De acordo com as descrições da época, a dimensão do Chalet Almeida Pinheiro era de tal forma inusitada que a casa fazia lembrar uma enorme praça de touros colocada estrategicamente dentro de um grande e frondoso jardim que, encobrindo tenuamente alguns dos seus detalhes, despertava a curiosidade e o interesse de quem por ele passava naqueles tempos. Deixava implícita uma certa descrição, apesar de o apelo maior seguir na linha da ostentação, apelando à imaginação e ao enleio.
E desde logo, quando ainda era uma construção muito recente no autêntico emaranhado de egos que deu forma ao desenho arquitectónico do Monte Estoril original, se transformou no cadinho maior da identidade monte estorilense assumindo papel fulcral na definição estética do que haveria de vir a ser aquela localidade enquanto berço primária da vocação turística municipal.
 
 
 
 
Os principais elementos definidores da importância arquitectónica do Chalet Almeida Pinheiro tiveram uma função estética e decorativa. 
 
Os torreões, altaneiros mas propositadamente desnivelados, recriavam em pleno romantismo a ideia de coisa velha e antiga, lançando em quem o observava a dúvida sobre a verdadeira origem daquela construção. No final do Século XIX, quando a casa foi construída, não havia no horizonte possibilidade alguma de uma enorme batalha em terras estorilenses, nem tão pouco se augurava a possibilidade de construir um castelo com pretensões funcionais. A ideia subjacente ao projecto, mais do que dependente da realidade vivida de forma efectiva, pretendia reforçar o vínculo identitário com o revivalismo decorativo do romantismo grassante, recriando cenários plenos de imaginação e ficcionando uma realidade que se assumia como cenário maior no qual os seus proprietários representavam o papel da sua vida. Como é evidente, os torreões do Chalet Almeida Pinheiro nunca defenderam nada nem ninguém, apesar de as mísulas de cantaria fazerem lembrar velhos merlões de castelos que outros sítios têm a sorte de ter. Mas, em termos da sua funcionalidade estética, cumpriram religiosamente o seu papel de sublinhadores da importância da já referida “excêntrica africanista” no contexto social romântico do Monte Estoril de então e, por outro lado, reforçaram os vínculos entre a nova construção que viu a luz do dia somente em 1899 e as restantes casas torreadas que davam forma à identidade estética e arquitectónica daquela que era considerada a “pérola de Portugal”.
 
A arcaria que suportava o alpendre situado na fachada principal, encimada mais tarde pela propaganda ao Hotel Royal e ao Hotel Miramar que o substituiu, recupera também ela a formulação estética daquilo que mais tarde vem a ser a “Casa Portuguesa”. A encomendadora, que teria enriquecido em África e que era de origens humildes de uma das aldeias provincianas do interior Português, precisava avidamente de se mostrar aos seus pares e, sobretudo, de o fazer de forma linear e inquestionável. E a casa, repositório maior dos seus anseios, surge no Monte Estoril do Século XIX como memória maior do velho solar de província que assenta os seus alicerces em laços de sangue antigos e perenes cujas origens se perdem nos princípios do próprio tempo…
 
Por fim, recriando-se enquanto cenário enquadrador do alpendre profundamente prenhe dos valores ancestrais da Portugalidade e do torreão altaneiro em guarda perante uma invasão que simplesmente se ousava imaginar, o muro delimitador da propriedade rematava a paisagem com um apelo quase rude às memórias da pedra solta de uma qualquer casa rural na várzea sintrense. Naquela altura, como é evidente, poder-se-ia ter colocado ali um muro de emparelhamento regular e com corte rectilíneo dando foco à casa e cumprindo a função de segurança que um qualquer muro deve ter. Mas não foi assim. Em linha com tudo o resto, o muro é também ele próprio elemento estruturante da paisagem e reforço emblemático da força da casa no contexto do Monte Estoril que estava a nascer. Pretendia transparecer a ideia de coisa antiga e forte, em linha com a ambição social de quem o concebeu.
 
 
 
 
Num dos seus artigos mais emblemáticos sobre o Monte Estoril, a Professora Raquel Henriques da Silva caracteriza o esquema quase “esquizofrénico” do local para sublinhar o seu carácter único e excepcional. De facto, o caso do Chalet Almeida Pinheiro, com a sua imensa excentricidade e pujança, só podia ter surgido naquele local e naquela época, num Monte Estoril onde tudo transbordava de romantismo e de sonho. O carácter onírico da localidade, onde os telhados de duas águas aguardam eternamente os nevões enormes que se sabe de antemão que nunca chegarão, e os castelos medievais construídos já em pleno Século XX sem nenhuma funcionalidade nem utilidade prática que não fosse a de servirem inocentemente de cadinho de esperança para o carácter mas sonhador dos seus habitantes, sobrepõem-se a todos os resquícios de lógica e de discernimento. Ali, num espaço de sonho em que se sonha, tudo é de facto passível de acontecer e, em linha com esse pressuposto, o custo de cada uma destas excentricidades é tido como um investimento.
 
No Monte Estoril de 1899 o Chalet Almeida Pinheiro é muito mais do que uma casa qualquer. É símbolo maior de uma movimento arquitectónico recriado de raiz a partir daquele que será porventura o primeiro masterplan Português. Aqui vale tudo e tudo faz sentido fazer, até porque sendo palco de excêntricos, era simultaneamente uma ponte maior entre as agruras da vida real e o sonho maior que todos afincadamente desejamos viver. Foi esse pressuposto, mais do que qualquer preciosismo canónico que a arquitectura de então pudesse ter, que fez desta uma localidade total e completamente diferente. E foi essa diferença, marcada pela igualmente diferente maneira de ali se viver, que recriou a identidade coesa, forma, determinante e determinada que perdurou (contra tudo e contra todos) até época muito recente.
 
Mas como todos os sonhos são frágeis e inconsistentes, também este clima de quase-loucura que o Monte Estoril teve o ensejo de desenvolver, se debateu com problemas estruturais que o pragmatismo da vida normal sempre tem a capacidade de oferecer. E, logo na abertura do novo Século, quando Portugal se envolveu nos períodos negros das revoltas políticas e a Corte de sangue azul desapareceu para sempre, os castelos de cartas que os sonhadores de outros tempos haviam ousado empreender, desmoronaram-se sucessivamente ao sabor do um vento que rapidamente os fez tremer.
 
E as casas, castelos e torreões, despidos de utilidade prática, tiveram de ser reconvertidos e reconfigurados perante a nova lógica funcionalista que acabava de nascer. Vendidos e restruturados, acabaram quase todos por assumir novas funções e por desempenhar papéis diferentes num Portugal novo que a Implantação da República acabou por trazer. Como peças únicas que eram, e com custos de produção incomportavelmente altos para a época de crise que o novo regime consolidou por muito tempo, tornaram-se cada vez mais motivo acrescido de interesse por parte de todos aqueles que desejavam deslumbrar-se com a pujança artística que estas construções acabavam por ter.
 
Ao Monte Estoril, primeiro de Lisboa e arredores e depois de todos os cantos e recantos do Mundo, vinham muitos para passear nas ruelas pseudo-medievais, para se deslumbrarem com os castelos fugazes e com os muros de pedra, e para apreciarem os jardins imensos onde cresciam pretensamente livres espécies vegetais que haviam sido plantadas ali depois de terem sido trazidas de origens inóspitas somente com o intuito de fazerem diferença e de acentuarem o cenário de exclusividade que o Monte Estoril conseguiu ter.
 
 
 
 
Nasce assim o turismo em Portugal. E nasce no Monte Estoril porque ser aquele um local único no Mundo inteiro. Nasce no Monte Estoril porque ali era possível usufruir dos bons ares da praia, da vida excelente que se afagava com o tom azulado dos sangues dos que ali viviam sempre, e também da paisagem marcante e marcada pela  força bruta e inesperada de imóveis como este.
 
Quando em 1906 o Engenheiro Almeida Pinheiro vendeu a sua casa a uma sociedade de empreendedores, nasce na velha mansão o mítico Royal Hotel e em 1914, depois de se afirmar no contexto da Primeira Grande Guerra, é novamente vendido a Ricardo Allen, Salvador Villanova e Ventura Garcia que o adaptam funcionalmente a um novo registo de hotel, e o rebatizam com o nome de Hotel Miramar.
 
Funciona assim, já perdido nas suas origens mais remotas e no sonho inalcançado a velha africanista de outras eras e de outros tempos, até 1975 quando é destruído por um incêndio.
 
Passaram-se muitas décadas desde que o Chalet Almeida Pinheiro desapareceu fisicamente da praxis urbana monte estorilense. Mas a pujança da sua força, o carácter enorme do seu torreão e o enquadramento cénico dos seus muros ancestrais, sobreviveu até hoje, mostrando que mais do que a sua funcionalidade, é a sua presença física que serve de fulcro identitário maior da comunidade onde se insere. Apesar do estado avançado de ruína, ele continua a fazer parte da estrutura cénica do Monte Estoril que ainda temos.
 
 

 

Monte Estoril - Salvar a Identidade Municipal

João Aníbal Henriques, 17.01.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
O deslumbramento onírico que transparece do Monte Estoril, resultante de mais de 130 anos de genialidade promovida por aqueles que ousaram sonhá-lo e construí-lo, assenta na sua monumentalidade e também numa comunidade socialmente coesa que partilha uma identidade arreigada e irrepetível.
 
O seu plano de desenvolvimento urbanístico, desenhado à priori num exercício perfeitamente inédito no Portugal de então, espelha de sobremaneira a genialidade dos seus vários promotores. Desde José Jorge de Andrade Torrezão, passando por Carlos Anjos e pelo Conde de Moser e mais tarde pela singularidade humanística de figuras como João de Deus Ramos e José Dias Valente, vários foram aqueles que definiram o Monte Estoril que hoje temos.
 
 
 
 
O traçado das suas ruas, os planos arquitectónicos das suas casas, as espécies vegetais escolhidas para cada jardim, e até a forma como foram construídos os seus muros e definida a sua linha de paisagem, foram algumas das peças que dotaram a localidade de um charme que perdurou de muitas gerações e cujo eco, apesar de tudo, ainda hoje se sente nos recantos encantados que sobreviveram à paulatina destruição.
 
Tendo sido, desde há muito tempo, alvo da cobiça desmesurada e do despudor dos decisores político-partidários, o Monte Estoril tem vindo a ser delapidado da sua riqueza com grave prejuízo para a Identidade Municipal. 
 
Com a aprovação e entrada em vigor do novo Plano Director Municipal, em meados de 2015, seria expectável que ficasse definitivamente traçada uma política de salvaguarda que protegesse o Monte Estoril de futuros ataques à sua identidade. Mas não aconteceu assim.
 
Contrariando a orientação política comum nos países que entendem a importância do património na definição da identidade de um espaço e na qualidade de vida dos seus moradores, o actual PDM limitou de forma extraordinária a listagem de imóveis com importância patrimonial no Monte Estoril, e definiu um parcelamento territorial em unidades designadas como ‘operativas’, cujo resultado principal é já a apreciação casuística de cada projecto que para ali venha a ser apresentado.
 
O Monte Estoril fica assim, novamente, a depender da vontade, da perspectiva, da sensibilidade e dos conhecimentos de quem decide, sujeito às vicissitudes que nas últimas décadas o têm vindo a destruir progressivamente.
 
E são muitos os casos que são prementes na definição do que se vai fazer no Monte Estoril nos próximos tempos. Depois de a demolição do saudoso Hotel Atlântico não ter sido aproveitada para construir naquele espaço um edifício cujas características estivessem em linha com a arquitectura de cenário que dá corpo à identidade local, antes se optando por um edifício pós-moderno igual a tantos outros que se constroem permanentemente nos subúrbios da capital, vale a pena ponderar sobre o que se vai fazer em vários espaços fundamentais para a localidade.
 
 
 
 
A construção do novo edifício onde se situava a Discoteca Bauhaus; as ruínas do antigo Hotel Miramar; o projecto de reconversão do Edifício Cruzeiro e a eventual demolição do picadeiro e da antiga sede do Grupo Desportivo Estoril-Praia; a mítica Villa Montrose; a Villa Baía; as cocheiras da Avenida das Acácias; a estação dos correios; a Villa Guarita; a Vivenda São Francisco; ou a Vivenda Boa-Vista; são apenas alguns exemplos de imóveis fundamentais para o futuro do Monte Estoril aos quais tudo pode acontecer ao abrigo do novo PDM.
 
 
 
 
Às entidades oficiais que são responsáveis pelo futuro desta terra essencial para a vocação turística dos Estoris exige-se agora uma atenção especial a cada um destes projectos. E aos Monte-Estorilenses, exige-se redobrado cuidado relativamente às intricadas operações que possam aparecer e o reforço da coragem e determinação que já tantas vezes mostraram possuir.
 
Porque ainda vale a pena tentar defender o futuro desta terra que herdámos dos nossos avós e que temos a obrigação de legar aos nossos netos.