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A Igreja de São João Baptista em São João das Lampas

João Aníbal Henriques, 02.05.25

São João das Lampas 01.JPG

por João Aníbal Henriques

Quem entra em São João das Lampas desconhece geralmente que a povoação é de génese muito antiga e indeterminada. De facto, a terra mudou de nome no final do Século XVI, chamando-se até essa altura São João dos Porqueiros. E a sua Igreja Matriz, fulgurante no brilho emanado pelo seu extraordinário pórtico manuelino, seria originalmente um pequeno templo rústico construído pela comunidade rural que ali habitava, ao qual foram sendo acrescentados diversos elementos que lhe conferem a sua formulação actual.

Nada se sabendo sobre a sua origem, apesar de vários sinais que nos apontam para épocas ancestrais e para cultos e rituais que muito provavelmente antecedem o próprio cristianismo, é certo que naquele lugar já existia um templo em 1421, por ter sido mencionado como tal no testamento de Martim Soudo.

Alguns dos seus elementos morfológicos, nomeadamente os dois pórticos secundários de entrada, serão provavelmente datáveis desse período ancestral, muito embora seja actualmente impossível perceber exactamente qual foi o diálogo estabelecido por aquelas cantarias com o edifício original.

 

 

Sabe-se, no entanto, que o pórtico manuelino é realidade datável do final do primeiro quartel do Século XVI, e que o mesmo é atribuído por vários autores à escola associada ao Paço Real de Sintra. A disfuncionalidade plástica do mesmo no corpo da velha igreja, provavelmente resultante da afirmação política e social que a localidade conheceu neste período, contrasta com a simbologia que nele está gravada.

Num apelo à pureza original, num misto sub-reptício de pujança artística cruzado com os valores espirituais ligadas ao culto do Espírito-Santo, a igreja assenta a sua prática num virtuoso apelo às virtudes associadas à entrega a Deus e à negação das ilusões que resultam da efemeridade material da vida terrena… A justiça terrena, bitola que sustenta o permanente apelo às virtudes espirituais, assenta num permanente apelo à Tríade Divina: Pai, Filho e Espírito-Santo, numa alusão velada ao papel desempenhado por São João Baptista na preparação do caminho para semear a Palavra do Senhor.

Tal como nos tempos bíblicos, também em São João dos Porqueiros se vivia intensamente os rituais associados à descida do Espírito-Santo, sabendo-se que dela depende a capacidade de o Ser Humano se impor na Terra, num registo de humildade que faz grandes aqueles que têm a capacidade de assumir esse compromisso durante a sua vida terrena. O bodo cerimonial, que o já referido Martim Soudo refere no seu testamento do Século XV, é assim um ritual comunitário de partilha que, a partir desta igreja, redistribui a riqueza de quem mais tem junto daqueles que mais necessidades passam em cada uma das eras. A escolha do Imperador, coroado sempre depois de uma triagem efectuada no seio da comunidades das crianças mais humildes e pobres, simboliza precisamente esse apelo à castidade, à bondade e à pureza original, pois, parafraseando Jesus Cristo, é dos humildes o Reino dos Céus.

 

 

O Baptista, que sobreviveu nas margens do Rio Jordão alimentado por esmolas escassas e por gafanhotos quando elas não vinha, foi também ele milagrosamente filho de Zacarias e de Isabel, a idosa prima da Virgem Maria a quem o Espírito Santo concedeu a graça de gerar um filho que cumprisse as profecias de anunciar a chegada do Salvador. Ele foi muito mais importante do que as Sagradas Escrituras referem, uma vez que é por seu intermédio que o seu primo Jesus se cristifica.

De facto, o seu apelo à limpeza espiritual, sublimada por um perdão divino que se activa simbolicamente através do baptismo, é o primeiro passo no sentido de estabelecer na Terra um novo reino diferente de todos aqueles que jamais ali tinham proliferado. O Reino do0 Espírito, no qual a matéria desempenha um papel secundário, servindo a flor como símbolo máximo de uma existência baseada na bondade, na entrega e na contemplação terrena da Obra de Deus.

Em São João das Lampas, numa linha de génese provavelmente iniciática, São João Baptista surge inserido num registo em que a marca é a papoila, bem visível nesta sua igreja principal. A flor, que naturalmente enche a paisagem envolvente com o seu fulgor primaveril, personifica esse mesmo apelo espiritual à pureza, dando corpo para que os bodos ao Espírito Santo se tornem no principal elemento organizador da comunidade.

Quando baptizou o seu primo Jesus, referindo-se-Lhe como “Filho de Deus”, São João Baptista lançou o mote para a vida pública do Salvador, recriando assim a dinâmica que alterará de forma profunda toda a vivência religiosa da humanidade. E sempre, como a Igreja de São João dos Porqueiros simboliza, num venerável baixar de cabeça, humildemente se submetendo à vontade de Deus-Pai e entregando-Lhe em mãos os destinos de todos nós.

Mantendo a base cultual sempre em torno dos elementos-chave da identidade local, nomeadamente a sua ligação à génese saloia da sua comunidade e às raízes agrícolas que durante muitos séculos deram corpo ao edifício económico da região, o edifício vai evoluindo à medida das doações que vai recebendo, ficando muitas delas eternizadas nas inscrições epigráficas que acompanham alguns dos seus elementos.

 

 

De salientar, porque é hoje elemento principal na caracterização daquele conjunto patrimonial, a construção da torre sineira e da alpendrada que acompanha duas das suas fachadas. Provavelmente do Século XVI ou XVII na sua formulação actual, surgem esteticamente ligadas às funcionalidades que lhes estavam adstritas e que definem a dicotomia entre a pujança alcançada devido ao sucesso agrícola e suinícola daquela zona, e a singeleza cultural que deriva da génese saloia da comunidade.

Classificada como Monumento de Interesse Público, incluindo a igreja, o seu adro e todo o espaço envolvente, através da Portaria n.º 9/2015, publicada no DR, 2.ª série, n.º 4 de 07 de Janeiro de 2015, a Igreja de São João Baptista de São João das Lampas é hoje um dos mais relevantes espaços religiosos da Área Metropolitana de Lisboa, definindo com rigor aquele que é o registo identitário da Região Saloia.

 

A Torre Mourisca de São João da Ribeira em Rio Maior

João Aníbal Henriques, 28.03.17

 

 
por João Aníbal Henriques
 
A Torre Mourisca de São João da Ribeira, no Concelho de Rio Maior, é um dos mais significativos testemunhos da História do Ribatejo. Tem, por um lado, agregado a si a aura lendária da sua relação aos mouros, durante o período de ocupação Árabe da Península Ibérica e, por outro lado, tem também o impacto visual que resulta da sua sobranceria em relação à povoação que a envolve.
 
Não sendo um documento, no sentido tradicional do termo, basicamente por pouco se conhecerem as suas origens, é certamente um marco de memória de um dos períodos mais conturbados e importantes da formação e consolidação da nacionalidade Portuguesa.
 
 
 
 
De acordo com a documentação existente, a Torre Mourisca de São João da Ribeira terá sido edificada no ano de 1111. Misto de vigia e de atalaia, com o seu coruchéu engalanado com as ameias que serviam de protecção, terá servido como posto avançado de controle das investidas cristãs durante as guerras da reconquista cristã que Dom Afonso Henriques levou a afeito. De facto, no período em questão, foi nestes espaços de ninguém, nos quais a incerteza política reinava, que se escreveram as mais heróicas e importantes páginas da historiografia medieval, definindo dinâmicas de aculturação que haveriam de promover a transição entre os dois poderes políticos de então.
 
 
 
 
A cristianização da Península Ibérica, definida no actual território concelhio de Rio Maior a partir de um esforço de integração das antigas estruturas árabes (e possivelmente também da populaça e das elites religiosas locais…) nas ovas estruturas Cristãs, recria realidades de transição que atestam a forma como tudo se passou e a importância que a actuação de conquistados e de conquistadores teve para que a medievalidade se tenha imposto sem custos de maior para as populações.
 
Agregada à Torre Mourisca de São João da Ribeira, é hoje possível visitar a Igreja de São João Baptista que, para além de cristianizar toda a imagética associada à figura ascética do baptista, recupera também de forma simbólica a própria organização espacial do lugar.  A nova igreja cristã, singela como o são todos os espaços de culto que foram edificados durante este período remoto da implantação da nova fé no território nacional, será com toda a certeza o reaproveitamento da antiga mesquita muçulmana, num devir devocional do qual fazem parte as estruturas simbólicas de ambas as religiões.
 
 
 
 
A sacralidade associada à Torre Mourisca, bem visível na sua ligação à igreja e ao cemitério actual, define o eixo orientador do próprio desenvolvimento urbanístico da localidade, estabelecendo uma organização espacial a que não é alheia o próprio carácter subjacente ao terreno onde a mesma se insere. Reza a lenda local que, por exemplo debaixo do grande cruzeiro oitocentista que se encontra colocado junto ao adro da igreja, existem um conjunto de sepulturas antigas do período muçulmano que o dito monumento, marcando de forma perene o espaço em questão, pretende cristianizar e, dessa maneira, sacralizar. Só que, como facilmente se percebe, todo este ensejo de demarcar estruturas de fé, se dissolve na puerilidade de crenças ancestrais. De facto, o carácter simbólico subjacente aos enterramentos originais não se altera, antes se modificando, mas somente num plano de simbologia, a orientação específica que determina a sua natureza. A islamização do actual território rio maiorense, tal como, alguns séculos mais tarde, a sua re-cristianização, define-se a partir desta praxis de aceitação, apesar de os testemunhos materiais que nos restam parecerem apontar para uma cisão que efectivamente nunca existiu.
 

 

Tendo sido recuperada em 2016 pela Câmara Municipal de Rio Maior, a Torre Mourisca de São João da Ribeira é hoje um marco inultrapassável numa visita ao Ribatejo, impondo na paisagem a agrura do seu perfil branco e recuperando as memórias do espaço envolvente.