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cascalenses

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A Singeleza Franciscana e a Ideia do Estoril

João Aníbal Henriques, 04.05.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Seguindo os princípios que nortearam a vida de São Francisco de Assis, que em 1209 fundou a Ordem Mendicante, a Regra definitiva dos Franciscanos foi aprovada pelo Papa Honório III, em 1223.
 
No Estoril, foi no ano de 1527 que se procedeu à instalação de um Convento Franciscano de características sui-generis, pela sua proximidade ao mar e pelo Santo de Devoção – Santo António do Estoril.
 
 
 
 
O espaço em questão, mesclado de um intenso sabor a mar, pouco conhecido da generalidade dos espaços da Ordem, é também condicionado por uma forte presença da Serra de Sintra, marcando assim o desenvolvimento de um enorme potencial de aprofundamento religioso que os frades que ali se instalavam vão aproveitar de uma forma bastante profícua.
 
Pertença do Dr. Luís da Maia, clérigo do hábito de São Pedro, o terreno onde veio a instalar-se o convento, possuía já uma pequena capela dedicada a São Roque, mandada construir alguns anos antes, em data não determinada, por Leonor Fernandes, moradora no Casal do Estoril. O momento em que o ilustre prelado oferece o terreno à Ordem, que o recebe pela mãos de Rodrigo de Sant’Iago, é precisamente aquele que marca o início do processo de construção do idílio conventual, para o qual se utilizaram, trazidas do derruído Convento de Enxombregas, as pedras que vieram a consolidar as suas paredes. A direcção das obras assumidas por Rodrigo de Sant’Iago foi de tal modo perene, que depressa se concluiu a construção do novo templo que, composto por uma única nave, possuía no entanto três altares, onde se prestava culto à imagem de Nossa Senhora da Boa Nova, a São Domingos e a São Francisco. Segundo a ‘Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves’, na qual se descrevem os edifícios da Ordem de São Francisco, existiria ainda uma imagem de Santo António ao lado da epístola, no altar-mor, que possivelmente seria datável de um momento anterior à construção do edifício.
 
 
 
 
Ao que parece, o grande êxito que veio a enformar a existência do convento, e que lhe granjeou uma fama que trouxe a estas paragens uma série de importantes vultos da vida Nacional, ficou a dever-se à imagem da Santa Padroeira, a Senhora da Boa Nova, com os seus três palmos de altos, e com feições consideradas «gráceis e perfeitinhas». Joana Manuel, a quem havia sido instituído o Morgado do Estoril, Manuel Jorge, síndico do convento, Álvaro Martins, marinheiro de água doce e o Marquês de Castelo Rodrigo, apoiante incondicional da submissão filipina, são apenas alguns dos mais evidentes apoiantes da Causa Franciscana Estorilense, contribuindo com importâncias que, em conjunto com a exploração agrícola que os frades foram desenvolvendo nos terrenos que desciam até à praia, garantiam a possibilidade de se irem promovendo as obras de remodelação e de manutenção que permitiram ao convento subsistir e até desenvolver-se à medida em que se ia avançando para a segunda metade do século XVIII, quando o terramoto de 1755 veio pôr em causa a sua existência.
 
 
 
 
Os frades do Estoril, dedicados a uma vida de interiorização na qual o trabalho árduo das muito pouco férteis terras conventuais era, desenvolveram uma postura religiosa que em muito se afastou daquela outra que caracterizou a Ordem Carmelita instalada no Convento de Nossa Senhora da Piedade, em Cascais. Para estes últimos, a interacção com a comunidade, numa dinâmica de ensino e de aprendizagem, em que tecnicamente a sua mais-valia se ia transportando para as actividades profissionais dos cascalenses, principalmente na pesca mas também na horticultura, as portas do convento deviam estar abertas, recebendo no seu seio todos aqueles que dele necessitassem para resolver os problemas do quotidiano. Os frades estorilenses, possivelmente também como consequência da esterilidade do seu meio, onde as comunidades humanas não se haviam instalado de uma forma sistemática, mantendo um povoamento em pequenos casais e onde as únicas excepções são marcadas pelas aldeias de Alapraia e, mais a nascente, Caparide, tornaram o seu espaço no espaço eminentemente dedicado à interiorização, mantendo relações muito pouco próximas com a comunidade e alicerçando a sua dinâmica de trabalho no princípio da auto-subsistência que, aliás, era também consequência dos princípios fundamentais que norteavam a sua Regra.
 
 
 
Destacando-se dos demais, mais pelo seu esplendor espiritual do que propriamente pela sua maneira de funcionar em termos comunitários, Frei António de Palmela e Frei Cristóvão da Trindade, ali desenvolveram o seu percurso iniciático em direcção a Deus, mortificando a carne com a pobreza extrema e fortificando o espírito em orações e jejuns sistemáticos. A fama destes monges, de quem todos ouviam falar mais que poucos conheciam pessoalmente, acabou por garantir-lhes a recepção de muitos bens, que os habitantes das redondezas lhes ofertavam, com o objectivo de contribuírem para a vida de santidade que ali promoviam. As ofertas, no entanto, eram permanentemente redistribuídas pelos mais humildes, mantendo-se os monges de Santo António na mais pura e humilde das existências, gozando apenas da extraordinária vista que se alcançava das janelas do convento. Rocha Martins, o reputado jornalista que já mencionámos, descreve de uma forma paradigmática a envolvência do convento, a qual permite perceber quais foram as grandes transformações que o denominado progresso acabou por trazer a este lugar: «Um prado verdejava na vizinhança; a aragem suave coava-se pelo pinhal mas, por vezes, a ventania vergava o frondoso arvoredo; cresciam, na encosta virada ao mar, plantas selváticas e as águas brotavam, com a fama de milagrosas, sobretudo na parte mais baixa da serra de Santo António, a qual tinha ao sul o fortim de São Roque e a oeste o Casal do Estoril». Da mesma opinião, explicando ao mesmo tempo que a situação que caracterizava o convento em muito contribuiu para a forma como era procurado pelos mais fervorosos e dignos monges de todos os tempos em que durou a sua existência, era Frei Jerónimo de Belém que o visitou no início do século XVIII: «que o agradável da sua visita convidou em outros tempos a muitos religiosos para frequentarem nele a Escola do Céu, livres dos cuidados do Mundo que tanto embaraçavam os progressos da virtude e atrasam os espíritos mais fervorosos».
 

Religiosidade e Sacralidade em Cascais

João Aníbal Henriques, 25.07.13

por João Aníbal Henriques

A vida religiosa de Cascais, profundamente marcada pela dicotomia existente entre um litoral vincado pela actividade piscatória e um interior onde a agricultura se afigura como a principal actividade dos munícipes, caracteriza-se por uma incomparável riqueza em termos patrimoniais e, sobretudo, em termos dos usos e costumes centenários que se mantêm vivos nos arquétipos culturais da população.

A ligação sempre perene que Cascais estabelece com o passado, determinante em algumas das suas mais importantes áreas de intervenção, permite às diferentes gerações que ocuparam este espaço a partilha de rituais e de cultos, os quais se vão misturando, num processo serôdio e complicado, até renasceram numa forma nova, que obriga à criação de estruturas próprias para os abrigar.

Da pré-história até à actualidade, muitos são os vestígios desta ritualidade cascalense, visível não só através dos monumentos e edifícios Cristãos, como também na expressão artística e cultural daqueles que aqui habitam. Em grande parte dos casos, mesmo nas expressões mais recentes dessa religiosidade, é fácil sentir no que hoje se constrói, a marca omnipresente do que já ali havia existido, facto que garante a Cascais uma posição única no vasto emaranhado de cultos e crenças saloias e piscatórias que caracterizam desde sempre a ecuménica e recentemente cosmopolita Península de Lisboa.

Iniciando-se na Vila de Cascais, onde podemos encontrar alguns dos mais representativos exemplares da arquitectura religiosa do Concelho, o presente roteiro sugere uma passagem demorada pelas formulações mais humildes da construção religiosa de bases rurais. A Capela de São Brás, na Areia, construído num espaço muito próximo da Capela de São José, na Quinta da Bicuda, define a sua orientação em função do passado, recriando uma ponte de ligação cultualística que o presente se encarregou de fomentar.

A viagem continua, mantendo em permanência o rumo rural do Concelho, através das antigas aldeias de Murches, Malveira-da-Serra, Manique e Alcoitão, onde o visitante encontra alguns dos exemplares mais interessantes nos quais a arquitectura de base chã se vai misturando com expressões mais eruditas e conservadoras.

A religiosidade de cariz particular, com o culto privado a marcar presença nas vetustas quintas dos grandes produtores de outrora, é caracterizada pela sua permanente abertura à sociedade. De facto, e ao contrário do que é normal acontecer noutras regiões do País, as capelas privadas de Cascais foram sempre espaços de partilha, nos quais a condição social ou a profissão se esbatia em prol de uma mistura na qual a Igreja desempenhava papel fundamental e preponderante.

Antes de terminar, o visitante deverá observar com atenção os importantíssimos exemplares de artes sacra contidos em alguns destes espaços, os quais se combinam com interessantes e milenares  lendas populares, nas quais o imaginário cultual de outrora se mistura com a expressão tradicionalista do catolicismo actual.