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A Igreja dos Navegantes em Cascais

João Aníbal Henriques, 02.02.22
 

por João Aníbal Henriques

Marcante na paisagem cénica de Cascais, com os seus altivos torreões a imporem-se na paisagem sobre o caso antigo da vila, a Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes (também designada como de São Pedro Gonçalves Telmo ou de Nossa Senhora dos Prazeres) é um dos mais enigmáticos segredos de Cascais.

Nada se sabendo de certo sobre a sua origem, presume-se que a Igreja dos Navegantes tenha sido construída algures no Século XVI por iniciativa dos homens do mar de Cascais. Isto mesmo é alegado por eles quando, nessa mesma altura, através dos seus representantes legais, apelam directamente a Roma e ao Papa queixando-se dos abusos que sofriam por parte da Igreja local.

 

 

Diziam eles que as multas de que eram alvo, e que derivavam das faltas às presenças obrigatórias nas Missas e ao trabalho que faziam ao Domingo, se deviam à necessidade efectiva de angariarem o seu sustento. E que, em contrapartida, haviam construído a suas custas dois conventos, um no Estoril e outro em Cascais, um hospício e duas igrejas (a de Nossa Senhora dos Prazeres e a da Ressurreição de Cristo que caiu com o Terramoto de 1755).

Terá sido este contacto, aliás, o que motivou o Papa Paulo V a conceder a autorização para se pescar aos Domingos e nos dias santos, na perspectiva de que os lucros auferidos nessas ocasiões se destinavam exclusivamente à construção das igrejas e a consolidar o processo de canonização de Frei Pedro Gonçalves Telmo, futuro padroeiro dos pescadores de Cascais.

A única certeza que existe é que a igreja sofreu uma intervenção que visou a sua reconstrução em 1729, conforme o atesta a data dos seus painéis de azulejos, estando ainda in completa em 1755 quando o terramoto novamente lhe abalou os alicerces.

 

 

Em termos estéticos, a Igreja dos Navegantes  que agora temos,  que resultou do segundo processo reconstrutivo iniciado em finais do Século XVIII, e que só foi concluído em 1942 quando foram colocados os dois torreões, situa-se na transição entre o período maneirista e proto-barroco, apresentando como ponto de sublinhado interesse a sua rara planta oitravada que Raquel Henriques da Silva, a grande especialista nesta matéria, considera que “exemplifica o gosto de inovação formal característico daquele período”.

O facto de ter ficado inacabada, sem os detalhes decorativos e estéticos característicos do barroco cascalense, sublinham o seu interesse que, de acordo com a historiadora já referida, depende muito mais do jogo de luz que a sua formulação arquitectónica propicia, do que propriamente do formalismo regular que caracteriza outros monumentos idênticos desta mesma época.

 

 

O seu carácter diferenciador, provavelmente resultante da influência dos frades de Nossa Senhora da Piedade, que orientaram os homens do mar no seu projecto de erguer a igreja, transforma a Igreja dos navegantes num dos mais preciosos monumentos do Património religioso Cascalense.

 

As Igrejas e a Religiosidade de Cascais

João Aníbal Henriques, 03.02.16

 

 

por João Aníbal Henriques
 
A religiosidade ancestral de Cascais, visível através dos monumentos que contribuem para a face urbana da vila, é marcada por um conjunto de lendas e tradições que englobam resquícios de muitas épocas e vivências diferentes.
 
O Cristianismo, realidade nascente em Cascais logo nos dealbar da sua existência, é somente uma das faces de um edifício muito mais vasto do qual fazem parte os fundamentos do islamismo que tanta expressão teve neste território, e também de muitos outros credos e facções que corporizaram um impressionante espólio cultural que os Cascalenses, muitas vezes sem disso se aperceberem, acabam por integrar no seu dia-a-dia.
 
O culto a Nossa Senhora, por exemplo, espraia-se nas suas várias devoções, de que em Cascais temos expressão na Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal, na Senhora dos Navegantes, na Senhora da Vitória, na Senhora da Assunção, na Senhora do Rosário, na Senhora de Fátima, etc. Mas na sua essência mais profunda, as raízes perdem-se nos tempos longínquos, anteriores ao nascimento da própria mãe de Jesus Cristo, tendo-se adaptado aos tempos e às vontades e perseverado no inconsciente das populações.


 
 
Na sua vertente urbana, é nas igrejas que encontramos os vestígios mais impositivos desta prática, sendo Cascais uma vila rica em património religioso.
 
A Igreja dos Navegantes é, de acordo com as mais abalizadas opiniões, o mais antigo templo existente actualmente em Cascais. Também denominada de Nossa Senhora dos Prazeres ou de São Pedro Gonçalves, é vulgarmente denominada como “Igreja dos Homens do Mar”, seus fundadores, pertencentes à irmandade dos marítimos de Cascais. A monumentalidade da obra, e as dificuldades inerentes à canonização de Frei Pedro Gonçalves, estiveram na origem de diversos factores que levaram ao imenso atraso da sua construção. As suas características arquitectónicas, mais até do que a documentação conhecida sobre o templo, indicam que foi reconstruída em 1729, embora as suas torres só tenham sido concluídas em 1942.


 
 
A Igreja da Misericórdia, situada em pleno coração da actual Vila de Cascais, é um edifício construído em 1777 sobre as ruínas de um templo anterior e que ruiu com o terramoto de 1755. As reutilizações de materiais anteriores, ainda hoje bem visíveis na estrutura do edifício, levam a que se pense que a origem ancestral da igreja anterior remonte aos idos de 1551, data da instituição de Misericórdia em Cascais. O facto de na Sacristia se encontrarem vestígios de uma antiga Capela de Santo André, parece indicar uma fundação mais antiga, ou talvez a uma remodelação ou ampliação que terá acontecido algures em meados do Século XVI.


 
 
A Ermida de Nossa Senhora da Conceição dos Inocentes, situada em local próximo da antiga Igreja da Ressurreição, foi erigida em 1634, conforme indica o cruzeiro colocado junto à sua entrada. O terramoto de 1755 marca profundamente o seu culto, uma vez que, segundo reza a lenda, a intercessão da padroeira terá estado na base de um grande milagre. Nesta ermida se refugiaram os habitantes de Cascais quando do terramoto, não tendo o edifício sofrido qualquer dano como consequência daquele catastrófico acontecimento, mesmo estando tão próximo do mar.
 
O Convento de Nossa Senhora da Piedade, eram sem sombra para dúvidas um dos mais importantes e emblemáticos edifícios da vila. Para além da sua monumentalidade, ainda hoje visível em vários pormenores que acabaram por ser integrados no processo de adaptação a casa de veraneio e posteriormente a centro cultural, era ali que existia o primeiro colégio de filosofia de Portugal, nele convergindo grande parte dos principais vultos da espiritualidade de então.
 
A capela que integra o edifício, e que é hoje utilizada como auditório, será datável do Século XVI, sendo contemporânea da construção do próprio convento. No entanto, e tal como este, a capela actual nada tem a ver com a antiga, quer em termos arquitectónicos, quer em termos da disposição do seu espaço. Do que lhe aconteceu naquela manhã fatídica do dia 1 de Novembro de 1755 sabemos, por intermédio de um dos seus frades que continuou a viver no meios das suas ruínas, “do que se proveita ficar o de Nª Srª. da Piedade com suas paremestras em alto, se todas estão inclinadas e fora dos prumos e as abóbadas da igreja e seu frontispício até à barra rendido, suas celas e oficinas abauladas e o claustro sem palmo de parede que não esteja caído?”.
 
A Ermida de Nossa Senhora da Guia, comummente datada do Século XVI, é atribuída à Ordem de São Francisco, não só porque pertencia a uma ordem de freiras, como também pela indicação fornecida pelo pároco da Freguesia da Ressurreição. Uma das suas lápides sepulcrais possui a data de 1577. Embora também tivesse sofrido bastante com o terramoto de 1755, perdendo grande parte da sua fachada e a grande escada mencionada pelo Padre Marçal da Sjlveira, é ainda possível encontrar por lá alguns vestígios da construção original.
 
O grande número de edifícios religiosos que existem no casco mais antigo de Cascais, aponta assim para o forte e arreigado sentimento religioso da população, provando também que existiam meios financeiros suficientes para a sua construção. A indústria das pescas, de acordo com as invocações que perduram nos seus interiores, terá sido a fonte desses meios, ainda que muitos deles se saiba que provieram de ordens religiosas, do Patriarcado de Lisboa e mesmo de alguns particulares.


 
 
A boa relação e interajuda existe entre os pescadores da vila e os frades das ordens religiosas aqui instaladas, está bem patente nas palavras do já mencionado Padre Marçal da Sjlveira, que nos diz que foram os frades quem ensinou aos pescadores da vila a secar e a conservar os seus peixes.
 
Sendo intemporal a importância deste património para o sustento da tão vilipendiada vocação turística municipal, o certo é que as igrejas, ermidas e capelas de Cascais são ainda hoje pedras basilares na formatação cultural e social desta terra. Eixos assumidos de uma religiosidade transversal a todas as épocas da História de Cascais, calcorrear estes edifícios representa um passo essencial na definição e na compreensão do que é ser Cascalense.