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cascalenses

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Aylan Kurdi e a Europa

João Aníbal Henriques, 03.09.15

 

 
 
por João Aníbal Henriques

No dia em que se cumprem 74 anos desde o início dos gaseamentos aos judeus perpetrado pelo III Reich nazi durante a II Guerra Mundial, chegam-nos as imagens (nem o adjectivo chocante é suficiente para as descrever) de homens e crianças mortos que deram à costa na Praia de Bodrum, na Turquia.
 
No desespero extremo de quem tem como único objectivo na vida o de sobreviver, os refugiados entregam-se ao destino na tentativa vã de chegar à Europa. E fazem-no porque a ideia de uma Europa Unida se gera a partir dos valores (teóricos) da fraternidade, da liberdade, do humanismo, da democracia e do respeito. E são esses valores e esses princípios ilusórios, que muitos ainda tentam utilizar para descrever a Europa que temos, que ditam a tragédia real que sobre eles se vai abatendo.
 
Porque a Europa que temos não é unida. Porque a Europa em que vivemos não é fraterna. Porque esta Europa não sabe o que é o humanismo. Porque a Europa que subsiste não reconhece o direito universal à democracia nem se respeita…
 
E não se julgue que é um problema da Europa de hoje e das tentativas populistas de transformar o velho continente das Nações numa amálgama federal de dependências. Não. Este problema afectou profundamente a Europa no início do Século XX, conduzindo ao eclodir da guerra em 1914; reiterou-se a partir do início da década de 30 levando ao início da Segunda Grande Guerra em 1939; e depois, mais ou menos controlados pelo peso dos media e pelas campanhas propagandísticas que contornam a realidade e toldam o entendimento dos povos, deu forma ao desastroso drama dos Balcãs, ao desmantelamento das antigas repúblicas soviéticas e a muitos outros focos de ódio entranhados no País Basco, na Catalunha, na Ucrânia, na Bélgica, na Irlanda do Norte, na Escócia, etc.
 
A Europa federal de índole franco-alemã que nos querem impor é anti-natural e por natureza anti-valores. É uma Europa virada para o seu umbigo Berlinense, centrada na defesa da riqueza e da materialidade e sulcada pelo rigor dos calendários eleitorais dos seus membros. Tudo o resto são ninharias que não importam aos governantes.
 
Um nojo. Esta Europa que ainda temos. 

Espectro de Ódio no Gueto de Frankfurt

João Aníbal Henriques, 07.05.15

 

 

Num Mundo marcado pelos acontecimentos e pela história poucos são os locais que possuem um impacto de tal maneira forte que nos afecta desde o primeiro momento que deles nos acercamos. É o que acontece com o antigo gueto judaico de Frankfurt, na Alemanha, musealizado depois da II Guerra Mundial e recriando o espaço de ódio e de segregação racial que determinou a vida dos Judeus durante muitos séculos.
 
Indissociada da história da cidade de Frankfurt, os judeus alemães viveram apartados do resto da comunidade e literalmente fechados num espaço próprio desde praticamente o Século XIII. No final do Século XIX, durante um período de florescimento do poder dos judeus, o gueto foi parcialmente demolido, num espectro de degradação que foi imensamente agravado durante o período do III Reich.
 
Escavado arqueologicamente durante o processo de reconstrução de Frankfurt, o gueto judaico preserva os arruamentos estreitos e os becos e ruelas que davam forma aquele antro de segregação. Para além de algumas habitações, onde quase podemos sentir a forma como sobreviveram os judeus naquele diminuto espaço, podemos ainda ver dois mikvá, o local dos banhos rituais judaicos perdidos no acanhado espaço onde se processava a vida de toda aquela imensa comunidade e se pressentem o horror da doença e da falta de higiene que foi transversal a toda a história daquele espaço.


 
Durante o período de terror nazi, quando o gueto já mais não era do que um mero antro de criminalidade, muitos foram aqueles que morreram assassinados às mãos dos algozes do Reich simplesmente por caminharem pelo emaranhado de ruelas que dava forma aquele lugar tão especial.
 
Hoje, numa Alemanha ainda fustigada pelos fantasmas de duas guerras cruéis e substanciais onde abundam os sinais, as memórias e as ruínas das inconcebíveis atrocidades que terminaram há precisamente 70 anos, o gueto de Frankfurt é uma memória que subsiste por si própria e se sobrepõe à própria História da Alemanha. As suas paredes parecem gemer de uma dor que se foi perpetuando de geração em geração, dando forma a uma sobrevivência na qual o humanismo nunca esteve presente. 
 
Quando se comemora o fim da guerra, vale a pena visitar em silêncio o gueto de Frankfurt, Vale a pena ouvir os gemidos longínquos daqueles que ali nasceram, viveram e morreram ao longo dos séculos. Vale a pena ponderar sobre as razões que levaram a uma situação deste género. Vale a pena pensar como foi possível que tal tenha acontecido ainda há tão pouco tempo.







 

70 Anos do Horror no Campo de Extermínio de Mauthausen-Gosen

João Aníbal Henriques, 07.05.15

 

 
 
 
No rescaldo das comemorações dos 70 anos que se cumprem desde a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial, importa relembrar o mal-conhecido campo de concentração de Mauthasen-Gusen, na Áustria, libertado no dia 7 de Maio de 1945. 
 
Criado ainda antes da eclosão oficial da guerra, quando em 1938 o Reich Alemão começou a enviar para ali alguns prisioneiros oriundos de Dachau, Mauthasen-Gusen era um campo de concentração vocacionado especialmente para o trabalho, tendo recebido prisioneiros de estatuto mais elevado oriundo dos países paulatinamente anexados pela Alemanha. 
 
Os trabalhos forçados que ali se desenvolviam, maioritariamente em pedreiras e minas que serviam para construir armamento, munições e aviões de guerra, provocaram mais e 300.000 mortos oriundos das mais cultas e socialmente mais relevantes classes sociais dos países ocupados. Na chacina, para além dos métodos atrozes usuais nos muitos campos de extermínio nazi espalhados um pouco por todo o território controlado pelos alemães, desempenharam papel de relevo a fome e a exaustão extremas, que levaram à morte um número impossível de determinar com exactidão de homens.
 
Desse grupo de prisioneiros fez parte o fotógrafo espanhol Francisco Boix que, tendo conseguido sobreviver ao martírio, conseguiu recuperar um conjunto muito explícito de fotografias que ilustram (e comprovam) o que ali se passou. 
 
Homens destituídos de toda a sua humanidade, com os ossos visíveis sob a pele diáfana e descoberta e carne, sempre nus e de olhar perdido perante o horror que viam consolidar-se ao seu lado. 
 
As imagens de Boix, mais tarde utilizadas como prova nos julgamentos de guerra que se sucederam ao armistício, são o cerne incontornável de um dos mais negros e terríveis acontecimentos de sempre na Europa. Para além das atrocidades cometidas e do regime de terror imposto pelo III Reich, foi um período de profunda desumanização que põe em causa milhares de anos de evolução e de civilidade. 
 
O ano de 1945 aconteceu há já setenta anos mas, na globalidade da nossa longa história, foi anteontem. Importa lembrar e relembrar, porque as imagens atrozes de Francisco Boix são a prova de que é fácil à humanidade resvalar para as trincheiras animalescas da barbárie. Demasiado rápido. Demasiado fácil.
 
 

 

 

 

 

 

O Muro de Berlim 25 Anos Depois

João Aníbal Henriques, 03.11.14

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Parece impossível, inverosímil e inaceitável! Mesmo quem percorre as ruas do centro de Berlim, aceitando o horror do que ali se passou durante a II Grande Guerra e que ainda se sente, tem dificuldade em aceitar que há tão pouco tempo tenha sido possível à capital de uma das mais importantes nações da Europa viver dividida num regime de terror que contraria os mais elementares princípios do respeito pelo homem… e no entanto, apesar de tudo e de todos, das memórias bem vivas que se preservam nas vidas daqueles que ali sofreram estas atrocidades, e de toda a evolução que a Europa conheceu ao longo das últimas décadas, passaram-se apenas 25 anos desde o início da demolição do muro da vergonha. Foi ontem…
 
 
 
É quase impossível, para quem viaja carregando a sensibilidade humanista natural na nossa sociedade ocidental, visitar a capital da Alemanha sem se transtornar com as memória sentidas que transbordam a cada recanto daquela cidade tão especial.
 
À primeira vista, para quem gosta da história e de tocar os mesmos monumentos e espaços tocados por outros ao longo dos milénios, Berlim não é a cidade ideal para uma viagem de recreio. Mas isso é só à primeira vista. Apesar de ter sido quase completamente arrasada em 1945 durante os bombardeamentos que puseram fim à II Guerra Mundial e ao ciclo de terror imposto pelo III Reich nazi, parece que as pedras que reconstruíram a cidade carregam consigo as memórias terríveis que encheram de dor, sofrimento e consternação aquele espaço.
 
 
 
Em cada canto que se visita, lá estão ainda os ecos dos passos ignominiosos do Führer e as sombras cáusticas dos milhões de homens, mulheres e crianças que caminharam aterrorizados para uma morte atroz e inconcebível. Os monumentos, as casas e as ruas, todos novos e alguns deles com pouco mais de década e meia de existência, não foram capazes de se limpar destas emoções e elas envolvem-nos, num limbo de nojo e de amargura que é maior do que as palavras utilizadas nos muitos guias turísticos que por lá se vendem, e que tornam única uma visita atenta a este local emblemático da Europa onde hoje vivemos.
 
Construído a partir de 1961, como consequência do agravamento das relações muito tensas que resultaram da divisão da cidade pelos aliados ocidentais e soviéticos depois do final da guerra, o muro de Berlim era uma realidade física com mais de 156 kms de comprimento e cerca de 300 torres de vigilância que literalmente dividiram a cidade e os seus habitantes, separando famílias e reforçando a dor da qual a Alemanha não tinha conseguido recuperar depois das atrocidades da guerra.
 
De um lado, o sector ocidental, Berlim era essencialmente Americana. Orientações urbanísticas que promoviam a democracia, com edifícios de vidro e superfícies transparentes, amplos jardins verdejantes e centros-comerciais cheios de marcas internacionais, transformaram a cidade num dos mais cosmopolitas centros da Europa de então. Livres e seguros da sua vida, os Alemães ocidentais, constitucionalmente integrados na República Federal Alemã, viviam numa economia de consumo, no qual o liberalismo americano estava omnipresente, num ambiente de ostentação e consumismo que contrastava largamente com aquilo que se passava do outro lado.
 
No sector oriental, vigiados 24 horas por dia e controlados nos seus mais insignificantes movimentos, os Alemães apartados à força dos seus familiares ocidentais, sobreviviam à sombra de uma economia de fachada, envolvidos na pobreza de quem não é livre para escolher os passos que dá, e siderados pelas forças militares de um regime soviético que cumpria ordens estrangeiras originadas directamente no Kremlin.
O contraste era tão grande e a separação tão efectiva, que os Alemães de cada um dos lados desconhecia basicamente a forma como viviam os do outro lado, criando uma série de estórias e de lendas que, de lado a lado, foram envolvendo os outros numa aura de ficção extremada que os tornou em gente efectivamente diferente.
 
 
 
Mas há 25 anos, em Novembro de 1989, tudo mudou inesperadamente. Como consequência do enfraquecimento soviético e da consequente diminuição da opressão militar imposta pela guerra fria, os Alemães de leste ousaram insurgir-se contra o regime em que viviam. Esperava-se sangue e terror imenso, em linha com aquilo a que a idade já estava habituada, mas nada disso aconteceu. Naquela manhã do dia 9, saindo das suas casas a pé e de bicicleta, milhares de berlinenses saltaram o muro e abraçaram os seus familiares com os quais tinham perdido o contacto há já tantos anos. E não aconteceu nada a ninguém.
 
O muro caiu, de forma tão expressiva e emblemática e carregou consigo um mundo novo e diferente e uma Europa necessariamente mais forte a pujante. Tal como é inconcebível a sua construção, e o modo como o chamado ocidente aceitou a situação ignóbil que esse monumento criou, inconcebível é também a sua demolição, num movimento natural de reaproximação que embora marcado pelas feridas insanáveis que ainda hoje por lá vemos, se impôs ao Mundo como se de uma realidade natural se tratasse e como se aquele momento, acompanhado ao vivo e em directo por biliões de pessoas em todo o lado, mais não fosse do que um mero exercício experiencialista igual a tantos outros que se foram fazendo…
 
 
 
 
Vinte e cinco anos depois, é pungente passear em Berlim. Tendo desaparecido quase completamente, demolido e vendido em peças aos milhões de turistas que imediatamente invadiram os monumentos antigos que a URSS reconstruiu de fora exemplar depois da guerra, o muro é como se ainda lá estivesse. As pedras que colocaram para marcar o local onde se erguia, são um testemunho demasiado pesado por quem ali passa pela primeira vez e é impossível calcorrear aquela linha sem expressar a questão retórica que enche a boca de toda a gente: como foi possível?
 
Como foi possível aquilo que ali aconteceu? Como foi possível que o Mundo inteiro tenha sido complacente com uma realidade daquelas? Como possível que a Alemanha, ainda hoje a gemer lacrimosamente com as feridas que lhe foram impostas por duas grandes guerras, tenha sido capaz de se reconstruir, de fomentar equilíbrios novos e diferentes, e de promover um dia-a-dia no qual o bem-estar é parte integrante.
 
 
 
 
 
É certo que as memórias do Reich permanecem bem vivas naquela cidade. Apesar de as suas casas, edifícios e monumentos terem desaparecido quase completamente. Mas também é certo que para os Alemães que ali vivem, transformando memórias em negócios evidentemente florescentes, viveram eles próprios mais de 40 anos de terror ninguém compreende.
 
Berlim não apagou ainda as memórias das suas guerras, tal como ainda transpira com o suor do terror soviético. Mas fá-lo como se isto se tivesse passado há 5 séculos e não, como infelizmente sabemos, há apenas 25 anos. Ontem…