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O Hipódromo Municipal Manuel Possolo em Cascais

João Aníbal Henriques, 25.06.25

 

por João Aníbal Henriques

Sendo peça essencial na determinação da memória identitária de Cascais, o Hipódromo Manuel Possolo representa o culminar de uma história muito longa de ligação de Cascais aos cavalos e ao hipismo que porventura remonta há mais de 2000 anos.

De facto, datado dos primeiros anos da Era Cristã, foi encontrada na Villa Romana de Freiria uma pedra de um vetusto anel representando uma biga, ou seja, um pequeno veículo puxado por dois cavalos destinado a grandes velocidades e a competições hípicas. E esta história, perdida nos anais da história cascalense, terá sido o arranque de um processo longo que culminou, em 1936, com a concretização do velho sonho de Manuel Possolo de criação de um equipamento moderno que pudesse albergar com dignidade os muitos concursos hípicos que nessa altura e por sua direcção aconteciam na vila.

 

 

Não existindo muita documentação que nos ateste os passos que levaram à construção do hipódromo, diz-nos o ilustre historiador cascalense José d’Encarnação que o primeiro passo foi dado por iniciativa do Visconde dos Olivais. A pedido de José Florindo d’Oliveira e de Manuel Possolo, que tinham fundado a Sociedade Propaganda de Cascais alguns anos antes, o ilustre benemérito ofereceu à nova instituição uma parte dos seus terrenos situados na zona do Parque do Gandarinha para ali se realizarem as provas hípicas que aquela instituição realizava precariamente no fosso da Cidadela.

Pouco tempo depois, mercê da necessidade de aumentar o espaço e começar a construção das bancadas situadas sobre o braço da Ribeira dos Mochos que atravessa a propriedade da Família Avillez, recebeu a Sociedade Propaganda mais um pedaço de terreno para anexar ao novo hipódromo que foi oferecido à Câmara Municipal de Cascais como contrapartida pelo extraordinário projecto de urbanização que a Família Espírito-Santo pretendia fazer entre as Casas do Gandarinha e o cruzeiro que lhes pertencia nos terrenos existentes a Oeste da Boca do Inferno.

 

 

O terceiro pedaço de terreno anexado ao novo equipamento foi, de acordo com o apontamento da autoria do já mencionado José d’Encarnação, adquirido pela câmara à Firma “Fomento Urbano”, pelo valor de 536.800$00 e com uma área total de 3984 metros quadrados. Nesse espaço, situado a Poente do relvado, construiu-se o picadeiro e ali se instalavam as boxes que guardavam os cavalos trazidos das mais variadas partes do País e do Mundo quando aqui se realizavam os grandes concursos hípicos que animaram Cascais durante muito tempo.

Por fim, sem que se perceba muito bem como é que o processo administrativo se deu, a Câmara Municipal anexou ao equipamento um terreno de semeadura que acompanhava as margens da ribeira e que é hoje o relvado principal do hipódromo. Estávamos em 1960 quando a edilidade procedeu ao registo dessa parcela, atribuindo-lhe um valor matricial de 940.000$00. Aqui, durante muitos anos e por iniciativa da Sociedade Propaganda, realizavam-se vários eventos hípicos e taurinos, utilizando-se para tal uma estrutura amovível de madeira que era montada e desmontada para cada um dos eventos.

O terreno situado em frente ao Clube da Parada, onde actualmente se encontra o parque de estacionamento, era desde sempre propriedade da Câmara Municipal, tendo servido durante muitos anos para a construção de uma das mais famosas praças de touros de Cascais, pela qual passaram os grandes nomes da tauromaquia nacional e, nas bancadas, as mais ilustres personalidades do reino, a começar pela Família Real, sempre que estava a gozar o seu período de veraneio estival na nossa terra. Como refere Manuel Eugénio Fernandes da Silva, no seu livro sobre as touradas em Cascais, esta praça de touros foi construída em alvenaria, tendo sido posteriormente demolida para a construção da Monumental de Cascais, situada no Bairro do Rosário, e criando o espaço necessário para a construção do mítico Pavilhão do Dramático.

 

 

O espaço sobejante, ou seja, o pedaço de terreno que existia nas traseiras do ringue de hóquei do Dramático de Cascais, e que confrontava com o equipamento hípico, foi nessa altura alugado pela câmara à Sociedade Propaganda de Cascais por 500$00 mensais, de forma a poder ser utilizado como campo de aquecimento para os cavalos que disputavam os concursos hípicos realizados no hipódromo.

Esta amálgama de histórias e de variados espaços que confluem para a criação do Hipódromo de Cascais, resultam em primeira instância do trabalho realizado por Manuel Possolo que, sem descanso, nunca desistiu de empreender todos os contactos, pressões e explicações para que o poder político vigente apoiasse as pretensões de Cascais a ter um hipódromo ao nível do melhor que existia no mundo hípico de então. Mas, sem grandes fundamentos documentais, foram necessários os esforços de todos para que fosse possível levar a bom porto o cumprimento deste comum desiderato.

 

 

Em 1993, perante as mudanças que se avizinhavam nos equilíbrios políticos municipais, a edilidade resolve, sob proposta do Vereador João Reixa, regularizar toda a situação assinando um protocolo global com a Sociedade Propaganda de Cascais que, com a duração de 50 anos a contar dessa data, garantisse que o equipamento continuaria incólume e a desenvolver as suas funções hípicas. O preço simbólico de renda de 1.000$00 por ano, pretendia, de acordo com os pressupostos da proposta que foi aprovada em reunião de câmara, reconhecer o trabalho que a Sociedade Propaganda de Cascais vinha fazendo há muitas décadas na área do desporto hípico municipal. E assim, esta insigne instituição assume o encargo de zelar e manter o hipódromo e de o rentabilizar desportivamente até 2043, estando previsto igualmente a renovação automática consecutiva por períodos de 10 anos depois dessa data.

Profundamente marcado pelas memórias de muitas dezenas de concursos hípicos que ali se realizaram durante muitas décadas, o Hipódromo de Cascais carrega consigo a responsabilidade de manter viva a recordação de Manuel Possolo. O ilustre cascalense que criou o equipamento e que tanto contribuiu para levar bem longe o nome e a fama de Cascais, faleceu na sua casa, situada na Rua Carvalho Araújo, envolvido pela auréola mítica que nasceu com a sua prolífera actividade no universo municipal.

 

Fotografias @ Arquivo Histórico Municipal de Cascais

 

 

Regresso do Presidente da República a Cascais Após Viagem aos Açores em 1941

João Aníbal Henriques, 22.05.25

 

por João Aníbal Henriques

Em Julho e Agosto de 1941, num contexto internacional marcado pela II Guerra Mundial, a República Portuguesa teve necessidade de afirmar a importância do Arquipélago dos Açores para a soberania nacional. Para tal, cumprindo aquele que era um desiderato sempre adiado desde a viagem efectuada àquele território pelo Rei Dom Carlos e pela Rainha Dona Amélia, o então Chefe de Estado, o General Óscar Fragoso Carmona, fez uma visita oficial preparada com minúcia e muito cuidado e apoiada por uma campanha de comunicação nunca vista em Portugal.

Com o perigo eminente de um ataque alemão àquela que era estrategicamente uma das mais importantes rotas de fuga numa Europa em guerra, os Açores eram igualmente visitados pelos interesses particulares de ingleses e americanos que Portugal tinha de rebater, afirmando-se historicamente como o país proprietário daquele território ultramarino. A visita do General Carmona foi, deste modo, a forma encontrada para propagar junto de todo o Mundo a soberania portuguesa sobre os açores e, no contexto da guerra, reforçar a importância de Portugal enquanto parceiro estratégico das potencias beligerantes mesmo mantendo a sua bem conhecida neutralidade política.

 


Tendo corrido da melhor forma e cumprido integralmente os propósitos para os quais havia sido concebida, a visita do Presidente da República aos Açores fez manchetes em toda a comunicação social nacional e internacional, levando consigo a mensagem subliminar do Estado Português, e enchendo de orgulho e de esperança os portugueses que viam nos dirigentes do Estado Novo a solução mais pragmática para os muitos problemas que afectam cronicamente Portugal desde há demasiadas décadas.

Como no resto do País, Cascais vibrou de forma entusiasmada como os ecos desta viagem. E os cascalenses, cientes do facto de a sua vila ter sido escolhida pelo histórico presidente para sua residência oficial, impavam de orgulho perante o sucesso alcançado por aquele que eles consideravam um deles.

O mais entusiasmado dos cascalenses com o êxito da iniciativa foi José Florindo d’Oliveira, o dirigente de sempre da Propaganda de Cascais que, politicamente muito próximo dos ideais propagados pelo Estado, aproveitava todas as oportunidades para contribuir activamente para que a sua terra fizesse parte do grande plano de salvar Portugal. E nesta ocasião, mesmo contra as opiniões oficiais que pediam às entidades locais que se alheassem da viagem do Presidente da República aos Açores, Florindo d’Oliveira teimou em organizar a sociedade civil cascalense para receber de forma gloriosa o General Carmona no seu regresso à Cidadela de Cascais depois de tão retumbante êxito alcançado em terras açorianas.

Em conluio com o Presidente da Câmara Municipal de Cascais, José Roberto Raposo Pessoa, organizou uma festa de boas-vindas ao Chefe de Estado marcada de forma brilhante por um convite feito a todos os cascalenses que possuíssem automóveis, de forma a que se concentrassem à entrada do território municipal, junto à Fortaleza de São Julião da Barra, acompanhando em desfile a entrada do General Carmona em Cascais e acompanhando-o ao longo da Avenida Marginal, em cortejo embandeirado, até à residência oficial na Cidadela.

 


Dizia Florindo d’Oliveira num panfleto que encheu todas as caixas de correio do Concelho de Cascais: “Preparemo-nos para festivamente aguardar a chegada do Exmº. Senhor Presidente da República! Depois da triunfal visita aos Açores o Chefe da Nação tornou-se ainda mais querido aos nossos corações! A admiração que temos por Sua Excelência, o respeito que nos inspira o alto cargo, que tão elevadamente desempenha, aumentam com as manifestações de carinho, admiração e respeito que todos os nossos concidadãos lhe tributam. Recebamos grandiosamente, na volta ao seu lar nesta nossa vila, o Exmº. Senhor General Carmona e a Sua Exmª. Família! Regosijarmo-nos pela sua feliz viagem é abraçar também o Portugal Insular, pela nobreza com que recebeu o Chefe da Nação comum! Gritar bem alto que muito queremos ao preclaríssimo Chefe da Nação é dizer ao Mundo o nosso amor a Portugal!”

 


E o povo de Cascais respondeu à altura ao apelo de Florindo d’Oliveira e José Raposo Pessoa, literalmente entupindo a Avenida Marginal, entre a entrada por Carcavelos e a Cidadela de Cascais, com milhares de automóveis ostentando orgulhosamente centenas de bandeiras de Portugal, e acompanhados ao longo da estrada e enchendo os passeios, por milhares de Cascalenses que gritavam apoteoticamente pelo seu vizinho Presidente.

A reacção do Chefe de Estado não se fez esperar e no mesmo dia, através de telegrama enviado para a Câmara Municipal e para a Sociedade Propaganda de Cascais, o General Óscar Carmona agradece de forma sincera e reconhecida a iniciativa da Sociedade Propaganda, da Câmara Municipal, na pessoa do seu Presidente e dos Vereadores, e de todas as entidades públicas e privadas que contribuíram para a organização deste evento, sublinhando o quão importante havia sido para ele e para a sua esposa essa grande manifestação de carinho por parte dos cascalenses. Diz ele que foi “uma manifestação que lhe calou muito no seu espírito e que jamais esquecerá!”

Nas contas apresentadas no final do evento, verifica-se que o investimento dos cascalenses no mesmo ascendeu  a 602$50, a que se somaram cerca de 300$00 que foram pagos directamente pela Junta de Turismo de Cascais para impressão dos cerca de 10.000 convites distribuídos à população, e mais 600$00 relativos à oferta de foguetes e morteiros lançados durante a festa e que foram pagos pelo Grupo Desportivo Estoril Plage.

 

 

 

Fotografias do AHMC – Arquivo Histórico Municipal de Cascais

O Louvor ao Trabalho do Campo na Aldeia de Murches em 1940

João Aníbal Henriques, 21.05.25
 

 

por João Aníbal Henriques

Em 1940, enquanto o Mundo se envolvia numa guerra de dimensões até essa altura inimagináveis, Portugal comemorava de forma sentida a grandeza da sua história através da alusão ao 800º centenário da Batalha de Ourique, em 1140, e o 3º centenário da Restauração da Independência Nacional, em 1 de Dezembro de 1640.

Pensada de forma a exaltar o passado glorioso do Império Português, e respondendo assim de forma indirecta às pressões das grandes potenciais internacionais que desejavam libertar as antigas colónias ultramarinas de forma a poderem controlar elas próprias as imensas riquezas que elas possuíam, este programa de comemorações assumia uma efectiva missão civilizadora, reforçando a identidade histórica do país e promovendo propagandisticamente o nacionalismo defendido pelo Estado Novo.

 


Cascais, desde sempre terra de Reis e de Pescadores, não se coibiu de apoiar e colaborar com a iniciativa, desde logo se empenhando numa série de iniciativas que compunham um programa comemorativo local e complementar às grandes eventos que estavam a ocorrer a nível Nacional. A sociedade civil cascalense, encabeçada pela Associação Comercial, pela Sociedade Musical, pela Associação de Bombeiros e pela Sociedade Propaganda, desenvolveu assim um conjunto inesperados de projectos nos quais participaram as entidades públicas de âmbito local e central.

Com o empenho muito particular de José Florindo de Oliveira, que na quantidade imensa de pedidos de apoio que endereça às mais variadas entidades públicas e privadas faz sempre questão de mencionar que os festejos de Cascais se inserem no vasto programa nacional comemorativo dos centenários, realizam-se em 1940, na aldeia de Murches, as festas de “Louvor ao Trabalho do Campo”. Explicando que com a inspiração que recebeu daquele que ela considera “o maior trabalhador de Portugal”, o Presidente do Conselho de Ministros, Doutor António d’Oliveira Salazar, pretende “ir ao encontro das necessidades e das dificuldades da boa gente do nosso campo, sem o ar ou o motivo e atitude de quem vai fazer uma esmola”, Florindo d’Oliveira  quer ajudar a comunidade agrícola que nessa altura ainda existia no Concelho de Cascais, e que tinha sido afectada por um péssimo ano agrícola que lhes havia condicionado de forma brutal os seus sempre muito precários rendimentos.

Diz ele que que ir “muito alegremente levar-lhes o conforto e o auxílio possível, tendo como protesto para tal fim uma festa de trabalho” com a apresentação de carros de lavoura, gados, alfaias, usos e costumes, de forma a evitar que os poucos que subsistem deixem de amanhar, cultivar e semear as poucas terras produtivas que subsistem em Cascais.

 


Para tal, escolheu a aldeia de Murches para receber este evento, não só porque tinha em seu torno um moinho e uma azenha, como porque tinha uma bem preservada capela dedicada a Santa Iria que lhe permitia juntar uma componente religiosa sempre muito importante para dignificar os festejos populares. Dizia ele, em correspondência trocada com o Secretariado de Propaganda Nacional, que queria aproveitar o cenário bucólico deste recanto campestre cascalense, para que a festa seja em tudo bem portuguesa, a bem da vivência das nossas aldeias e gritando de forma entusiasmada a parangona que serve de assinatura aos festejos nacionais: “Viva Portugal!”

Logo pela manhã, depois de um desfile etnográfico feito pelos alunos das escolas das aldeias vizinhas, todos os participantes reuniram-se junto à Capela de Santa Iria, em Murches, com as componentes da Mocidade Portuguesa que eram dirigidas pelo Comandante Joaquim Segurado. A solenidade dos festejos, sobretudo aqueles que contaram com a participação massiva da juventude de Cascais, foram primorosamente preparados de forma a impressionarem aqueles que a eles assistiram. Florindo d’Oliveira considerava que a solenidade ajudava a impressionar e a fixas no espírito os valores que presidiram à organização do certame e, desta maneira, a promover a mensagem que está subjacente ao próprio programa das comemorações.

A encerrar essa primeira manhã, uma salva de morteiros acentuou o carácter oficial da iniciativa, enquadrando a visita de honra à capela, onde a Mocidade de Portuguesa fez a guarda de honra ao altar, e que antecedeu a distribuição de prémios junto das crianças participantes. As meninas receberam um corte de vestido e um mapa de Portugal e os rapazes mais bem classificados receberam uma nota de vinte Escudos e o mesmo mapa de Portugal.

Os festejos religiosos seguiram-se presididos pelos priores de Alcabideche e de Cascais, e neles terão participado centenas de populares que ali acorreram oriundos das mais variadas paragens em torno de Lisboa.

 


A finalizar a festa e para regozijo de todos os participantes, realizou-se uma parada pecuária com enfoque nas especialidades equina, bovina, ovina e suína, que se dividiu ao longo das ruas que de diversas origens levavam ao adro da capela. Na primeira secção participaram garanhões de 3 a 10 anos de idade e cavalos castrados de 4 a 15 anos de idade. Na segunda secção estiveram éguas de criação e de trabalho. Na terceira secção brilharam juntas de bois mirandeses, conhecidos como “ratinhos” atrelados a carros ornamentados. Na quarta secção foi possível ver vacas taurinas e novilhas, que antecederam a quinta secção onde surgiam os rebanhos de ovinos compostos por ovelhas de raça burdaleira e saloia. Na última secção viam-se varrascos, com procos reprodutores de origem inglesa que se misturavam com porcos bízaros de origem local.

O júri que classificou os gados, os carros e as crianças que participaram nos festejos e que decidiu que prémios lhes ia entregar, era composto por Francisco Romano Esteves, Dr. Sousa Amado, Tenente Silva Reis, Dr. Alfredo Branco e Dr. António Sérgio Pessoa. A Comissão de Honra, em que participaram os grandes nomes das personalidades mais importantes de Cascais, como Armando Villar, António Muchaxo ou Abreu Nunes, era presidida pelo Capitão José Roberto Raposo Pessoa que nessa altura desempenhava funções como Presidente da Câmara Municipal de Cascais.

Integradas no programa extra-oficial do programa de Comemoração dos Centenário Nacionais, as Festas de Louvor ao Trabalho do Campo, em Cascais, destinavam-se a levar aos povos das aldeias cascalenses a ideia patriótica de uma Pátria enaltecida pelos feitos dos seus antepassados, apoiando assim os esforços que estavam a ser desenvolvidos em termos globais pelo Governo da Nação.

Fotografias do Arquivo Histórico Municipal de Cascais - AHMC

 

 

As Festas do Divino Espírito-Santo em Cascais

João Aníbal Henriques, 20.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A ligação ancestral de Cascais à Igreja Católica, Apostólica e Romana existe desde tempos imemoriais. Logo em meados do primeiro século, quando os seguidores de Jesus abandonaram a designação de “Nazarenos” pela qual tinham ficado conhecidos, para assumirem a condição de Cristãos, que a palavra sagrada se espalhou rapidamente através da imensa rede de estradas que dava forma ao então Império Romano. E é crível, até porque a arqueologia nos oferece provas cabais da existência de redes comerciais entre o extremo Ocidental e a Cidade de Roma, que a nova doutrina tenha chegado depressa e sido estabelecida neste território.

Para além da Páscoa, numa extensão das práticas espirituais que vinham desde a época Judaica e que se adaptaram à nova religião que surgiu com a Morte e a Ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo, um dos momentos altos do calendário votivo entre os Cristãos era a comemoração do Pentecostes, ou seja, a celebração da descida do Espírito-Santo sobre os Apóstolos ao quinquagésimo dia após a Ressureição de Cristo.

Como refere João da Cruz Viegas num dos seus opúsculos sobre a História de Cascais, a “Páscoa do Espírito-Santo é festejada cinquenta dias depois da Páscoa Cristã e oito dias antes do Domingo da Santíssima Trindade, comemorando a descida do Espírito-Santo sobre os doze Discípulos de Cristo, pelas nove horas da manhã, quando estavam em oração com Maria Santíssima e outras santas mulheres no Cenáculo, casa situada no Monte Sião onde Jesus Cristo tinha celebrado a sua última Páscoa com os Apóstolos”.

 

 

De acordo com  as Sagradas Escrituras, o Espírito-Santo desceu sobre os doze Apóstolos como línguas de fogo, ganhando eles assim o dom de entender e falar vários idiomas simultaneamente, ganhando a graça de fazerem milagres e enchendo-se com a sensação avassaladora da imensa sabedoria que lhes foi entregue. Simbolicamente associado ao acontecimento, é a pomba branca que a Cristandade passou a utilizar para perpectuar na memória esta alteração paradigmática do rito fundacional daquela que haveria de se tornar na mais importante de todas as religiões professadas no Mundo durante dois mil anos.

Em Cascais, onde os primeiros templos Católicos acompanham a formação da própria nacionalidade, as festividades comemorativas do Pentecostes deverão ter existido pelo menos desde o Século XVI, quando no antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade se instalou uma comunidade Carmelita que tinha no culto ao Espírito-Santo um dos seus pilares de Fé. Originalmente com um cunho muito simples, organizado em torno de um grupo de cascalenses que percorria as ruas da vila com uma bandeira evocativa da efeméride e que recolhia os donativos dos moradores para o pagamento das despesas com o “bodo” destinado a alimentar condignamente os habitantes mais pobres, depressa evoluíram para rituais mais elaborados, como o atestam em termos comparativos os festejos que ocorriam simultaneamente noutras partes do País e, aqui mesmo ao lado, na aldeia serrana do Penedo, em plena Serra de Sintra.

Nessa segunda fase, uma vez mais em continuidade com os velhos rituais ancestrais e provavelmente pagãos que eram concretizados nestas paragens desde a época Pré-Histórica, juntou-se aos festejos a figura de um boi que, muito enfeitado, percorria as ruas da vila de forma a mostrar aos desfavorecidos a qualidade da oferta que iriam receber.

Este ritual de partilha, concertada sobre uma espécie de pacto-social em que participavam os mais abastados habitantes locais, que dessa forma partilhavam com os menos afortunados a sua prosperidade no âmbito de um ritual religioso que esbatia a ideia de uma “caridadezinha” que muitas vezes inibia por vergonha os que verdadeiramente necessitavam dessa ajuda para sobreviver, garantia que todos tinham acesso à quantidade mínima de nutrientes que são necessários para preservar a saúde e o bem-estar da comunidade, nomeadamente das proteínas que raramente chegavam ao prato da maior parte dos cascalenses mais pobres.

 

 

Escolhendo para coroar como Imperador a crianças mais humilde, pura e pobre que encontrassem na terra, e que simbolicamente, devido aos seus predicados, se tornava naquelas festividades o cerne de toda a devoção dos cascalenses, a festa do Espírito-Santo terminava sempre com um jantar onde participavam as mais importantes personalidades locais, que pagavam integralmente a sua refeição e que, dessa maneira, se associavam ao ritual de viabilização do bodo dos pobres que seguidamente lhes era oferecido.  Muitas das senhoras de Cascais, num acto de abnegada devoção, adquiriam doses do bodo para elas próprias oferecerem aos mais pobres e guardavam consigo porções de pão benzido que utilizavam ao longo do ano para consagrar as efemérides mais relevantes.

João da Cruz Viegas, no opúsculo atrás referido, menciona os cascalenses ilustres que no jantar de 1903 se juntaram no antigo “Hotel Globo”, situada por cima da Mercearia Pedada, cumprindo este ritual que tão importante era para a Identidade da Nossa Terra: “Comendador Manuel Vieira d’Araújo Viana, que era o juiz da festa naquele ano; Dom Fernando Castelo Branco (Pombeiro), Administrador do Concelho; Rodrigo Luís Caldeira, Secretário da Câmara Municipal; Francisco da Silva Vedras; António Mendes Lopes, farmacêutico; João Desidério Nunes; João Campos; Alexandre Inácio; Domingos Vardasca; Júlio Ovidio Morgado; Domingos Teixeira dos Santos; e Manuel Pereira Dias”.

Este último, que ainda em vida passou a Cruz Viegas estas informações, explicou-lhe ainda que nesse ano de 1903 foram vinte e três os festeiros encarregues de fazer cumprir a tradição e que a despesa acumulada, que serviu de base à preparação do bodo popular, ascendeu a um total de 284$000 Reis.

Interrompidos provisoriamente depois da implantação do regime republicano, os Festejos do Espírito-Santo foram retomados em Cascais ao longo da década de 40 do Século XX por iniciativa de José Florindo de Oliveira e de Eugénio da Assunção que, como em quase tudo o que acontecia na vila durante aquela época, contaram com a entusiástica participação de Armando Penin Gomes Villar, então Presidente da Propaganda de Cascais e de Alberto Mourato que com ele assumiu a responsabilidade de pagar um boi para compor o bodo seco oferecido à população.

 

 

Nas Festas de 1943 o bodo foi servido aos pobres de Cascais nas instalações do antigo hospital anexo à sede da Santa Casa da Misericórdia, numa cerimónia que foi presidida pela Senhora Dona Maria do Carmo Fragoso Carmona, mulher do então Presidente da República, coadjuvada pela D. Albertina de Melo e por Dona Rosa de Melo. O juiz da festa desse ano, Guilherme Cardim, juntou-se ao bodo com o tesoureiro, Pedro Valentim Nava, que com as senhoras degustaram sopa, cozido à portuguesa e vinho, ao som da banda filarmónica do Grupo Desportivo Estoril-Plage. Nesse dia fez-se distribuição de carne ao hospital da Santa Casa da Misericórdia, à Casa dos Pobres, à Casa de Trabalho de Nossa Senhora da Assunção, à Maternidade Maria Amália Vaz de Carvalho, e do bodo molhado aos dois únicos presos que estavam encarcerados na cadeia da vila. Para as crianças que frequentavam a Creche José Luís foi entregue arroz e massa, sendo que por toda a vila foi distribuído larga quantidade de pão bento.

No jantar final, ocorrido no dia 13 de Junho, estiveram presentes Guilherme Cardim, Pedro Valentim Nava, João da Cruz Viegas, Padre Moysés da Silva, Joaquim Nunes Ereira, João António Gaspar, Francisco Avelino de Sousa Amado, Frederico da Costa Pinto, Joaquim Canas Jardim, Dom António Castelo Branco, Professor Francisco Cruz, Alberto Mourato, António Santa, Eugénio Bernardino d’Assunção, António Ricoca, Pedro Aguiar, Abílio Maria, Carlos de Sousa, Júlio Pedro d’Assunção, Manuel Paulino, António da Silva Neves Júnior, Sebastião Bonifácio, Osvaldo Faria, Ventura Ledesma Abrantes, João Victor Gaspar, José Afonso Vilar Júnior, Filipe Nobre de Figueiredo, Francisco Silva, Aníbal Contreiras, António Ferreira dos Santos, Miguel dos Reis, José Cartaxo, Silvino Duarte, José Apolinário Duarte, António Miguel Muchacho, Joaquim António Gaiteiro, Domingos Nunes, Serafim Nunes, Gabriel Muchacho, Fernando José Dias e João Marinha Arraia.

A partir do ano de 1944, por iniciativa de Armando Villar, os festejos passaram a incluir uma comissão de “Mordomos de Honra” que, contribuindo materialmente para a festa, evitavam que a mesma decorresse sem a dignidade que todos consideravam essencial para o sucesso do evento. Nessa primeira edição foram “Mordomos de Honra” o Reverendo Padre Moysés da Silva; o Presidente da Câmara Municipal, José Raposo Pessoa; o Presidente da Junta de Turismo, Augusto Teles Abreu Nunes; o Presidente da Junta de Freguesia, D. José Avilez; o Administrador da Estoril Plage, Guilherme Cardim; Joaquim Nunes Ereira, pela Propaganda de Cascais; e João da Cruz Viegas. Fizeram ainda parte as senhoras D. Felícia Gonçalves Villar, D. Felismina Canas Cardim, D. Lucinda da Silva Abreu Nunes, D. Laura Carnoto d’Oliveira, D. Maria José Magalhães Pessoa, D. Maria Isabel Avilez, D. Rosalina Pedroso Muchaxo e D. Tomásia Canas Ereira.

 

 

Na edição de 1948, com Ricardo Espírito-Santo Silva como juiz e José Afonso Villar jr. como tesoureiro, os festejos contaram com a presença e apoio de Gabriel Muchaxo, Joaquim Sabino Pedroso, Silvino Duarte, António Silvestre Gonçalves, Alfredo Luiz Paulo, Francisco Casaleiro, Conde Murça, Condessa de Monte Real, Casa de Palmela, D. Nuno Almada, Condessa de Azambuja, Conde Jorge de Monte Real,  Condessa de Linhares, D. Maria Inez Carmona, Conde das Alcáçovas, Conde de Cabral, José Ribeiro Espírito-Santo Silva, Eduardo Guedes de Sousa e Dona Amélia de Melo. À festa juntaram-se ainda Armando Villar (então Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Cascais), o médico Dr. Álvaro de Lacerda e Melo, Amadeu Stoffel, António Casimiro d’Almeida, António Muchaxo, Guilherme Cardim, José Teixeira Roxo e Manuel Paulino.

As Festas do Divino Espírito-Santo de Cascais são uma das mais antigas tradições desta vila de Reis e de Pescadores, traduzindo a um só tempo a vivência religiosa e social da terra e das suas gentes. Conhecê-las e compreendê-las, integrando-as na dinâmica própria de cada momento da História de Cascais, é um passo importante para ajudar a projectar o futuro dinâmico e coeso pelo qual todos ansiamos.

 

Fotografias do Arquivo Histórico Municipal de Cascais e do Arquivo Histórico da Sociedade Propaganda de Cascais

 

As Primeiras Festas do Mar em Cascais

João Aníbal Henriques, 13.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A primeira edição das Festas do Mar de Cascais aconteceu em Julho de 1936. Com um enquadramento e objectivos substancialmente diferentes daqueles que actualmente caracterizam os festejos, foram sempre, mesmo assim, a expressão maior da ligação ancestral que Cascais tem com a sua baía e com o mar.

Na versão de 1936, pensada e organizada por José Florindo de Oliveira, então Presidente da Comissão de Propaganda de Cascais, as Festas do Mar surgem enquadradas pelos desafios que afectavam a Europa e o Mundo naqueles anos. Em clima de pré-guerra, com a consolidação do socialismo e do comunismo em vários países, pressentia-se já a necessidade de Portugal recuperar o registo de prestígio que o havia caracterizado muitos anos antes. E a pressão sobre as colónias, nessa altura já assumidamente ameaçadora por parte das grande potenciais mundiais, obrigava a um exercício de recuperação dos símbolos e dos valores ligados ao mar.

No ofício enviado em 1936 ao Ministro do Mar, no qual a direcção da Propaganda de Cascais pede autorização para arrancar com a edição inaugural dos festejos, estão expressos os objetivos que presidem à iniciativa. Diz nesta carta o cascalense Florindo d’Oliveira: “Com os nossos respeitosos cumprimentos e com um pedido de desculpa por esta maçada e abuso, pedimos licença a V.Exª. para vos expormos um assunto, que para nós se nos afigura d’um elevado fim Nacional, e que, dentro do seu objectivo se nos afigura uma boa lição aos homens da doutrina do internacionalismo, aos da foice e do martelo e ainda aos cegos que por aí andam divulgando destruidoras doutrinas. Ao internacionalismo há pois que opor uma grande barreira de Nacionalismo”.

 

 

No pedido enviado ao Ministro Manuel Ortins Torres de Bettencourt, Florindo d’Oliveira explica que a Baía de Cascais foi o berço do grande navegador Afonso Sanches e que, na senda do papel muito relevante que ele teve na Epopeia Marítima Nacional, desejava que as festas de Cascais fossem lançadas simbolicamente associadas à Cruz de Cristo, que durante essa época gloriosa era a marca que identificava as naus e as caravelas portuguesas que davam novos mundos ao Mundo: “Que nas velas de todas as embarcações inscritas na Capitania do Porto desta vila,  quer de recreio, quer de pesca ou outras, seja pregada a Cruz de Cristo, para que ela faça ofuscar ou desaparecer para sempre da nossa terra o símbolo do comunismo”.

E assim, com o apoio directo e empenhado do então Ministro da Marinha e também do Presidente da República, o Marechal Óscar Fragoso Carmona, que nessa altura residia precisamente no Palácio Real da Cidadela de Cascais, a primeira edição das Festas do Mar aconteceu em Cascais em Julho de 1936.

De entre as muitas iniciativas que fizeram parte do programa destas festas, onde não podiam faltar os concursos de natação e as regatas de barcos à vela e remos, organizadas pelo Grupos Dramático e Sportivo de Cascais e pelo Clube Naval de Cascais, salienta-se um grande cortejo com as embarcações militares da Armada Portuguesa que, transportando a bordo todas as entidades oficiais, navegaram pelas águas da baía acompanhando a frota de pesca costeira, todos hasteando bandeiras com a tradicional Cruz de Cristo e homenageando assim os navegadores que corporizaram os descobrimentos portugueses.

 

 

Ao longe, balouçando suavemente ao sabor da brisa estival e do marulhar das ondas da baía, um dos barcos de guerra transportava a Banda de Música da Armada, que ia encantando os milhares de festeiros que assistiram à iniciativa a partir da esplanada que existia junto ao Passeio Dona Maria Pia de Sabóia. E o ponto alto dessa tarde, que muito entusiasmou os cascalenses ali presentes, foi o sinal dado pelos Bombeiros de Cascais de “navio em perigo” lá para os lados da Boca do Inferno. De imediato, num exercício em que participaram todas as entidades presentes, saiu para o mar uma enorme comitiva que tinha como objectivo prestar auxílio ao navio pretensamente em dificuldade, num exercício que entusiasmou de sobremaneira os que assistiam à iniciativa a partir de terra.

A corporação de Bombeiros de Cascais, com o Comandante Joaquim Theotónio Segurado à cabeça, participou no exercício com carros porta-cabos, foguetes e demais apetrechos de salvamento, transformando a iniciativa num exercício sensacional e raro que a todos impressionou.

Simultaneamente, ao longo de toda a tarde e prolongando-se noite afora, a esplanada do Clube Naval encheu-se de animação, com serviço de chá e pastelaria, bufete e arraial popular animado pela banda da Sociedade Musical de Cascais que deu o mote para o baile que entrou directamente nas memórias identitárias da vila de Cascais.

 

 

As receitas destas primeira edição das Festas do Mar foram prontamente distribuídas com o acordo unânime de todos os organizadores: 70 % reverteu directamente para o apoio aos pescadores que haviam sido afectados pelos grande temporais que tinham devastado o mar de Cascais durante a última Primavera;  20% foi entregue ao Instituto de Socorros a Náufragos que, criada por iniciativa do Rei Dom Carlos, era desde então uma das principais instituições da sociedade civil de Cascais; e os restantes 10% seguiram para os cofres da Comissão de Propaganda de Cascais, entidade que carregava consigo a responsabilidade de zelar pela animação e pelo espaço público na vila e, dessa maneira, pela angariação dos meios que se afiguravam necessários para manter Cascais como a mais charmosa e cosmopolita de todas as terras portuguesas.

 

 

Em 1936, quando o Mundo vivia aterrorizado com as convulsões políticas que haverão de culminar na eclosão da II Guerra Mundial (1939-1945), Cascais preocupava-se com a união da sua sociedade civil, salvaguardando que todos contribuíam directamente para a criação das condições necessárias ao cumprimento do seu comum desiderato. Na organização desta primeira edição das Festas do Mar participaram directamente o Presidente da República, o Ministro da Marinha, o Delegado Marítimo de Cascais, o Administrador do Concelho, o Presidente da Câmara Municipal, o Presidente do Clube Naval, o Presidente da Associação Comercial de Cascais, os directores da Sociedade Propaganda da Costa do Sol, o Proprietários das armações de Cascais (Alberto Graça), Guilherme Salgado, que era na altura o representante junto da câmara Corporativa, os elementos da Comissão de Propaganda, os pescadores e proprietários de barcos, nomeadamente José Crespo, Filipe Figueiredo e D. José d’Avillez e o demais povo de Cascais. As festas contaram ainda com o apoio directo do Diário de Notícias que, através de parangonas de propaganda da iniciativa, juntaram em Cascais a imensidão de público que transformou este certame num inquestionável sucesso.

Interrompidas durante a guerra e reatadas periodicamente durante muitos verões de Cascais, as Festas do Mar são hoje o ponto mais alto da época estival cascalense. Evoluindo ao longo dos anos de acordo com o gosto e o enquadramento das várias épocas, as Festas do Mar foram sempre e continuam a ser o mais vibrante e marcante de todos os eventos organizados em torno do magnífico cenário da nossa baía!

Fotografias de João Cabral da Silva, António Passaporte e Arquivo Histórico Municipal de Cascais