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cascalenses

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A Senhora da Conceição em Piódão

João Aníbal Henriques, 19.10.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Vive-se de contrastes em Piódão. O azul do céu, reflectindo de forma insana o verde das escarpas da serra, abre caminho para o negro do xisto, em contraste profundo com o branco e o azul celestial da Igreja Matriz. É terra de todos e de ninguém, alcandorada nas lembranças rudes da Serra da Estrela e nos sonhos inexpressivos das curvas e contra-curvas desérticas que temos de atravessar para chegar até ela. Mas impõe-se à vista e aos sentidos, quando sob a égide maior da Senhora que Concebe, se abrem as janelas da Alma para um transbordar imenso do suor de Portugal. Está prenhe de Portugal. Está plenamente cheia do contraste enorme que dá forma à Nação e que à sua volta congrega a vontade maior de todos os portugueses. Uma preciosidade!
 
Miguel Torga, citado numa das pedras lavradas que se encontram à entrada desta Aldeia Histórica de Portugal, descreveu o Piódão como sendo o “ovo primordial de Portugal”. Ali, segundo o próprio, reencontrou a essência maior de uma País que espartilha desde há quase 900 anos uma gigantesca Nação. O Portugal do Piódão não é aquele que vem nos livros e nos enche as horas intermináveis das lições nas escolas. É um Portugal suado e vivido, assente na interpretação da natureza e na fusão quase perfeita entre a vontade de Deus, expressa na força física que a envolve, e a do Homem, traduzida no azul quase grotesco que lhe acentua as formas.
 
 
 
 
As suas origens, perdidas no meio das imensas nascentes de águas que fertilizam aqueles socalcos, fundam-se directamente na pujança física do território em que se insere. As primeiras comunidades humanas que ali se instalaram, algures nos idos longínquos do Neolítico mais remoto, interpretaram o carácter úbere daquelas terras e nele alicerçaram a sua vida e a sua sobrevivência numa rotina cíclica de interdependência sadia que perdurou ao longo de milhares de anos e de centenas de sucessivas gerações.
 
É daí que vem, muito provavelmente, a ligação mítica e mística aos mais ancestrais arquétipos sociais e religiosos que mais tarde hão-de consolidar a própria Nacionalidade, eivados da certeza (mais do que unicamente dos laivos periclitantes da Fé) de que a Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, era ali a força palpável e viva que determinava a própria existência.
 
 
 
 
Em termos decorativos, a formulação primordial de Piódão surge da confrontação aos opostos. O preto do xisto, determinante por resultar do aproveitamento natural e consistente dos recursos existentes, aparece aos nossos olhos sublinhado pelo azul cobáltico que delimita as portas e janelas, como se se tratasse de uma quase humanização do espaço, das coisas e das casas que ali foram sendo construídas. Mas o contrates maior, sobressaindo em harmonia plena da paisagem de conjunto do povoado, aparece em linha com a fachada inesperada e magnânima da sua Igreja Matriz dedicada precisamente a Nossa Senhora da Conceição.
 
Sendo recente, porque o actual templo que detém esta configuração somente desde o Século XIX, quando o Cónego Manuel Fernandes Nogueira ali instalou o seu colégio de preparação para a formação dos seminaristas e reformatou a velha igreja ao sabor de um estilo neo-barroco que interpretou o sentir da população e o traduziu no monumento pujante de impacto que hoje conhecemos, a Igreja Matriz de Piódão carrega consigo dois segredos que ajudam a contextualizar e a perceber a própria povoação. Em primeiro lugar, sabe-se que foi o estado de ruína eminente em que a igreja se encontrava que determinou a intervenção do clérigo já mencionado que, segundo reza a lenda, terá recolhido junto dos seus conterrâneos uma quantia insuspeita de dinheiro em volume suficiente para aquela imensa construção. Por isso, no mesmo lugar e provavelmente com contornos substancialmente diferentes, terá existido outro templo cuja origem está situada em pleno Século XVII.
 
Mas, tendo a mesmo orago, uma vez que existe ainda hoje uma imagem de Nossa Senhora da Conceição datada do Século XVI, ela própria reinterpretava realidade mais antiga, como se a força da Fé dos que ali habitavam fosse crescendo ao ritmo da passagem paulatina das gerações que se iam sucedendo…
 
 
 
De qualquer maneira, os ciclos de construção e de reconstrução do templo, mantendo a devoção original à Senhora que Concebe, reforçam a convicção de que o culto que lhe dá forma se centra na própria ancestralidade da ocupação do espaço, consolidado a partir de um movimento de cristianização que consolida os saberes e que denota um reforço permanente e sucessivo das certezas primordiais que caracterizam a própria comunidade. A Senhora da Conceição, na sua origem assente na imagem do Crescente que tem aos pés, carrega consigo a significância maior de uma tradição milenar. Mais do que os dois mil anos de História do Cristianismo, esta é um alicerce simbólico profundíssimo que reforça a certeza de que a natureza e os homens, quase sempre em uníssono, são capazes de conjugar as suas existências num plano de eternidade onde o sentido se perde no que somos, no que fazemos, no que dizemos e no que pensamos.
 
Nossa Senhora da Conceição, orago maior de um Piódão que não deixa indiferente ninguém que o visite, representa a reconfortante certeza de que os ciclos são eternos e que a vida, que o peso do corpo físico nos obriga a carregar durante um período muito curto de tempo, é afinal um mero interregno num caminho sinuoso mas profícuo de eternidade!
 
 
 
 
Visitar o Piódão e conhecer a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição é, assim, o mesmo que mergulhar de forma profunda na Alma de Portugal. E o ovo primordial que Torga descreve, um verdadeiro recomeço para todos aqueles que ousem perder-se por completo na amálgama de emoções que este espaço desperta.
 
Vale a pena. Mesmo!

 

A Capela de Murches na Lenda de Santa Iria

João Aníbal Henriques, 16.12.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sendo certa que é ancestral a origem do culto devocional a Santa Iria, também conhecida como Santa Irene, na localidade de Murches, em Cascais, não se conhecem com exactidão os seus primeiros passos. Sabe-se, no entanto, que o culto se estende ao período pré-Cristão, profundamente marcado pelo devir agrícola e pastoril das comunidades antigas que viveram no actual território Cascalense, e paulatinamente adaptado às circunstâncias e à passagem do tempo.
 
A actual Capela de Murches, com o seu estilo chão e inserida na tipologia própria das construções de génese rural, será provavelmente do Século XVI ou XVII, tendo sofrido alterações menores a partir de meados do século seguinte. Mas, apesar disso, e tal como acontece com todos os pontos axiais da religiosidade municipal de Cascais, terá provavelmente reaproveitado o local sagrado onde foi construída, ocupando o espaço onde teria existido um templo anterior. Ainda é possível ver, no remate da fachada Norte do edifício actual, os vestígios desses reaproveitamentos e, embora sem a monumentalidade que a ruralidade local impede, serão resultado do isolamento em que Murches, desde tempos remotos, sempre sentiu em relação à sede e ao litoral do Concelho.
 
É, no entanto, a ruralidade agro-pastoril das terras de Murches, que marca de forma indelével a evolução social nesta localidade e a devoção religiosa das suas gentes a Santa Iria. A dependência dos ciclos da natureza, complementada com a pobreza dos solos e uma existência de base pastoril na qual a transumância assume especial importância, determinaram a ligação à Santa de Tomar, que protege o gado, garante os mananciais de água e defende aqueles que dependem dela.
 
 
 
 
De acordo com a lenda, Santa Iria terá nascido em Tomar, algures em tempo indeterminado, filha de um casal nobre da antiga Nabância. Com um rosto maravilhoso e uma beleza verdadeiramente incandescente, Iria desde cedo foi assediada por toda a espécie de homens da região, a todos tendo resistido estoicamente com a mesma perseverança. Questionada por seus pais acerca de quem iria escolher, a jovem responde que é sua intenção entregar-se totalmente a Deus e fazer votos num mosteiro ali existente, virando definitivamente as costas ao Mundo e às suas gentes. Mesmo duvidando das suas palavras, os pais da menina fizeram-na entrar no mosteiro de monjas beneditinas existe em Sélium, onde se cumpriu a sua suprema vontade.
 
Mas o Mundo, que Iria quis esquecer durante os dias e noites de mortificação passadas dentro das paredes frias do mosteiro, nunca esqueceu a beleza extraordinária da rapariga e, apesar dos seus votos, foram muitos os que continuaram a tentar conquistá-la, mesmo se para isso tivessem de assaltar o espaço e deturpar o odor de santidade que se sentia lá dentro.
 
O mais assíduo dos seus apaixonados terá sido um tal Britaldo, galante senhor da região de Tomar, que tudo terá feito para seduzir a jovem monja. Ela, no entanto, nunca cedeu à tentação e, reforçando a sua Fé, foi sempre afastando este e outros admiradores que permanentemente cercavam o mosteiro.
Farto de tanto assédio, e certo de que a paz interna só seria reposta com a saída da rapariga, o Monge Remígio, Director Espiritual de Iria, deu-lhe a beber um medicamento preparado com ervas que tinha como objectivo fazer-lhe inchar a barriga e, dessa maneira, criar o pretexto para a sua expulsão do mosteiro. E assim aconteceu. Iria adoeceu gravemente e, apesar da sua inocência, foi deitada porta fora e sujeita às inclemências do tempo e da natureza e, mais importante ainda, às investidas maldosas de todos aqueles que desejavam desposá-la a ela.
 
 
 
 
O nobre Britaldo, quando soube da expulsão de Iria e do seu estado de gravidez, não acreditou na sua inocência e, despeitado por ter sido preterido perante outro qualquer pretendente, mandou assassina-la e atirar o seu corpo às águas do Rio Nabão.
 
Muitos séculos depois, durante o reinado de Dom Dinis, terá sido a Rainha Santa Isabel, a alquimista, quem encontrou os restos mortais da pobre mártir nabantina. O corpo da menina, tendo sido transportado pela corrente até ao Rio Zêzere, e dali até ao grosso causal do Rio Tejo, foi encontrado pela Rainha Santa durante uma das suas estadias no Ribatejo.  E, para sua surpresa e gáudio de todos, o corpo de Santa Iria estava totalmente incorrupto, preservado pelas areias do rio e pela vontade de Deus. O local onde o corpo foi encontrado passou a chamar-se Santa Iria e a grande cidade que existia nas redondezas tomou o nome de Santarém (corruptela de Santa Iria – ou Santa Irene).
 
 
 
 
Profundamente ligada aos cultos pagãos da água e da fertilidade a ela associada, Santa Iria transforma-se na figura angular sobre a qual se procede à cristianização de grande parte das mais importantes zonas do actual território Português. Nabanus, a divindade pagã que dá nome à Nabância onde a santa nasceu, relaciona-se precisamente com o poder regenerador das águas e com a sua ligação espiritual à purificação da humanidade, factor que rapidamente se estende, por intervenção directa da Rainha Alquimista de Portugal, a outras zonas do País. Em Fátima, por exemplo, o local onde Nossa Senhora apareceu em 1917 chama-se Cova da Iria e, em Cascais, é nas margens da Ribeira da Marmeleira, principal veio de água que desce da Serra da Lua – Cynthia - para saciar Cascais, que a dita capela com dedicatória à santa acaba por ser erguida.
 
Santa Iria de Murches, a divindade antiquíssima cuja intercessão garante água e fertilidade aos Cascalenses, é assim motivação maior para uma visita a um dos recantos mais encantados do Concelho de Cascais, num preito de homenagem a uma Identidade cujas origens se perdem nas brumas do tempo.
 

As Duas Arcas do Castelo de Montemor-o-Novo...

João Aníbal Henriques, 27.04.15


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por João Aníbal Henriques

Há muitos anos, durante o domínio árabe, vivia no Castelo de Montemor-o-Novo um castelão muito rico que tinha uma filha formosa e casadoura. Enquanto ele procurou encontrar um noivo rico para desposar a menina, ela apaixonou-se por um simples e pobre soldado malgrado a oposição do pai. Sem dele conseguir obter a aprovação de que necessitava para casar com o seu apaixonado, a menina resolve fugir do castelo abandonando definitivamente o seu lar. O castelão, apesar dos muitos esforços que fez para recuperar a sua filha, chegou ao fim da vida roído pelo desgosto de não a voltar a ver. Na hora da morte, ao dispor dos seus bens, resolveu deixar-lhe tudo o que tinha, pedindo encarecidamente que a encontrassem e a informassem desta sua derradeira decisão. Mas não foi linear na forma como o fez… depois de encher uma arca com toda a sua riqueza, encheu uma segunda arca, absolutamente igual à primeira, com uma enorme maldição, instando a filha a escolher bem aquela que desejava abrir em primeiro lugar. Quando chegou ao castelo para recolher a sua herança, a filha foi informada deste desígnio e, com medo de abrir em primeiro lugar a terrível maldição, não ousou escolher, tendo optado por deixar no castelo ambas as arcas, uma com um grande tesouro e a segunda com uma terrível maldição. Reza a lenda que ainda hoje, passados muitos séculos desde este nefasto acontecimento, estão enterradas algures no Castelo de Montemor-o-Novo as arcas em questão. Resta encontra-las e ter a coragem de arriscar ser tocado pela ancestral maldição!