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As Festas do Divino Espírito-Santo em Cascais

João Aníbal Henriques, 20.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A ligação ancestral de Cascais à Igreja Católica, Apostólica e Romana existe desde tempos imemoriais. Logo em meados do primeiro século, quando os seguidores de Jesus abandonaram a designação de “Nazarenos” pela qual tinham ficado conhecidos, para assumirem a condição de Cristãos, que a palavra sagrada se espalhou rapidamente através da imensa rede de estradas que dava forma ao então Império Romano. E é crível, até porque a arqueologia nos oferece provas cabais da existência de redes comerciais entre o extremo Ocidental e a Cidade de Roma, que a nova doutrina tenha chegado depressa e sido estabelecida neste território.

Para além da Páscoa, numa extensão das práticas espirituais que vinham desde a época Judaica e que se adaptaram à nova religião que surgiu com a Morte e a Ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo, um dos momentos altos do calendário votivo entre os Cristãos era a comemoração do Pentecostes, ou seja, a celebração da descida do Espírito-Santo sobre os Apóstolos ao quinquagésimo dia após a Ressureição de Cristo.

Como refere João da Cruz Viegas num dos seus opúsculos sobre a História de Cascais, a “Páscoa do Espírito-Santo é festejada cinquenta dias depois da Páscoa Cristã e oito dias antes do Domingo da Santíssima Trindade, comemorando a descida do Espírito-Santo sobre os doze Discípulos de Cristo, pelas nove horas da manhã, quando estavam em oração com Maria Santíssima e outras santas mulheres no Cenáculo, casa situada no Monte Sião onde Jesus Cristo tinha celebrado a sua última Páscoa com os Apóstolos”.

 

 

De acordo com  as Sagradas Escrituras, o Espírito-Santo desceu sobre os doze Apóstolos como línguas de fogo, ganhando eles assim o dom de entender e falar vários idiomas simultaneamente, ganhando a graça de fazerem milagres e enchendo-se com a sensação avassaladora da imensa sabedoria que lhes foi entregue. Simbolicamente associado ao acontecimento, é a pomba branca que a Cristandade passou a utilizar para perpectuar na memória esta alteração paradigmática do rito fundacional daquela que haveria de se tornar na mais importante de todas as religiões professadas no Mundo durante dois mil anos.

Em Cascais, onde os primeiros templos Católicos acompanham a formação da própria nacionalidade, as festividades comemorativas do Pentecostes deverão ter existido pelo menos desde o Século XVI, quando no antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade se instalou uma comunidade Carmelita que tinha no culto ao Espírito-Santo um dos seus pilares de Fé. Originalmente com um cunho muito simples, organizado em torno de um grupo de cascalenses que percorria as ruas da vila com uma bandeira evocativa da efeméride e que recolhia os donativos dos moradores para o pagamento das despesas com o “bodo” destinado a alimentar condignamente os habitantes mais pobres, depressa evoluíram para rituais mais elaborados, como o atestam em termos comparativos os festejos que ocorriam simultaneamente noutras partes do País e, aqui mesmo ao lado, na aldeia serrana do Penedo, em plena Serra de Sintra.

Nessa segunda fase, uma vez mais em continuidade com os velhos rituais ancestrais e provavelmente pagãos que eram concretizados nestas paragens desde a época Pré-Histórica, juntou-se aos festejos a figura de um boi que, muito enfeitado, percorria as ruas da vila de forma a mostrar aos desfavorecidos a qualidade da oferta que iriam receber.

Este ritual de partilha, concertada sobre uma espécie de pacto-social em que participavam os mais abastados habitantes locais, que dessa forma partilhavam com os menos afortunados a sua prosperidade no âmbito de um ritual religioso que esbatia a ideia de uma “caridadezinha” que muitas vezes inibia por vergonha os que verdadeiramente necessitavam dessa ajuda para sobreviver, garantia que todos tinham acesso à quantidade mínima de nutrientes que são necessários para preservar a saúde e o bem-estar da comunidade, nomeadamente das proteínas que raramente chegavam ao prato da maior parte dos cascalenses mais pobres.

 

 

Escolhendo para coroar como Imperador a crianças mais humilde, pura e pobre que encontrassem na terra, e que simbolicamente, devido aos seus predicados, se tornava naquelas festividades o cerne de toda a devoção dos cascalenses, a festa do Espírito-Santo terminava sempre com um jantar onde participavam as mais importantes personalidades locais, que pagavam integralmente a sua refeição e que, dessa maneira, se associavam ao ritual de viabilização do bodo dos pobres que seguidamente lhes era oferecido.  Muitas das senhoras de Cascais, num acto de abnegada devoção, adquiriam doses do bodo para elas próprias oferecerem aos mais pobres e guardavam consigo porções de pão benzido que utilizavam ao longo do ano para consagrar as efemérides mais relevantes.

João da Cruz Viegas, no opúsculo atrás referido, menciona os cascalenses ilustres que no jantar de 1903 se juntaram no antigo “Hotel Globo”, situada por cima da Mercearia Pedada, cumprindo este ritual que tão importante era para a Identidade da Nossa Terra: “Comendador Manuel Vieira d’Araújo Viana, que era o juiz da festa naquele ano; Dom Fernando Castelo Branco (Pombeiro), Administrador do Concelho; Rodrigo Luís Caldeira, Secretário da Câmara Municipal; Francisco da Silva Vedras; António Mendes Lopes, farmacêutico; João Desidério Nunes; João Campos; Alexandre Inácio; Domingos Vardasca; Júlio Ovidio Morgado; Domingos Teixeira dos Santos; e Manuel Pereira Dias”.

Este último, que ainda em vida passou a Cruz Viegas estas informações, explicou-lhe ainda que nesse ano de 1903 foram vinte e três os festeiros encarregues de fazer cumprir a tradição e que a despesa acumulada, que serviu de base à preparação do bodo popular, ascendeu a um total de 284$000 Reis.

Interrompidos provisoriamente depois da implantação do regime republicano, os Festejos do Espírito-Santo foram retomados em Cascais ao longo da década de 40 do Século XX por iniciativa de José Florindo de Oliveira e de Eugénio da Assunção que, como em quase tudo o que acontecia na vila durante aquela época, contaram com a entusiástica participação de Armando Penin Gomes Villar, então Presidente da Propaganda de Cascais e de Alberto Mourato que com ele assumiu a responsabilidade de pagar um boi para compor o bodo seco oferecido à população.

 

 

Nas Festas de 1943 o bodo foi servido aos pobres de Cascais nas instalações do antigo hospital anexo à sede da Santa Casa da Misericórdia, numa cerimónia que foi presidida pela Senhora Dona Maria do Carmo Fragoso Carmona, mulher do então Presidente da República, coadjuvada pela D. Albertina de Melo e por Dona Rosa de Melo. O juiz da festa desse ano, Guilherme Cardim, juntou-se ao bodo com o tesoureiro, Pedro Valentim Nava, que com as senhoras degustaram sopa, cozido à portuguesa e vinho, ao som da banda filarmónica do Grupo Desportivo Estoril-Plage. Nesse dia fez-se distribuição de carne ao hospital da Santa Casa da Misericórdia, à Casa dos Pobres, à Casa de Trabalho de Nossa Senhora da Assunção, à Maternidade Maria Amália Vaz de Carvalho, e do bodo molhado aos dois únicos presos que estavam encarcerados na cadeia da vila. Para as crianças que frequentavam a Creche José Luís foi entregue arroz e massa, sendo que por toda a vila foi distribuído larga quantidade de pão bento.

No jantar final, ocorrido no dia 13 de Junho, estiveram presentes Guilherme Cardim, Pedro Valentim Nava, João da Cruz Viegas, Padre Moysés da Silva, Joaquim Nunes Ereira, João António Gaspar, Francisco Avelino de Sousa Amado, Frederico da Costa Pinto, Joaquim Canas Jardim, Dom António Castelo Branco, Professor Francisco Cruz, Alberto Mourato, António Santa, Eugénio Bernardino d’Assunção, António Ricoca, Pedro Aguiar, Abílio Maria, Carlos de Sousa, Júlio Pedro d’Assunção, Manuel Paulino, António da Silva Neves Júnior, Sebastião Bonifácio, Osvaldo Faria, Ventura Ledesma Abrantes, João Victor Gaspar, José Afonso Vilar Júnior, Filipe Nobre de Figueiredo, Francisco Silva, Aníbal Contreiras, António Ferreira dos Santos, Miguel dos Reis, José Cartaxo, Silvino Duarte, José Apolinário Duarte, António Miguel Muchacho, Joaquim António Gaiteiro, Domingos Nunes, Serafim Nunes, Gabriel Muchacho, Fernando José Dias e João Marinha Arraia.

A partir do ano de 1944, por iniciativa de Armando Villar, os festejos passaram a incluir uma comissão de “Mordomos de Honra” que, contribuindo materialmente para a festa, evitavam que a mesma decorresse sem a dignidade que todos consideravam essencial para o sucesso do evento. Nessa primeira edição foram “Mordomos de Honra” o Reverendo Padre Moysés da Silva; o Presidente da Câmara Municipal, José Raposo Pessoa; o Presidente da Junta de Turismo, Augusto Teles Abreu Nunes; o Presidente da Junta de Freguesia, D. José Avilez; o Administrador da Estoril Plage, Guilherme Cardim; Joaquim Nunes Ereira, pela Propaganda de Cascais; e João da Cruz Viegas. Fizeram ainda parte as senhoras D. Felícia Gonçalves Villar, D. Felismina Canas Cardim, D. Lucinda da Silva Abreu Nunes, D. Laura Carnoto d’Oliveira, D. Maria José Magalhães Pessoa, D. Maria Isabel Avilez, D. Rosalina Pedroso Muchaxo e D. Tomásia Canas Ereira.

 

 

Na edição de 1948, com Ricardo Espírito-Santo Silva como juiz e José Afonso Villar jr. como tesoureiro, os festejos contaram com a presença e apoio de Gabriel Muchaxo, Joaquim Sabino Pedroso, Silvino Duarte, António Silvestre Gonçalves, Alfredo Luiz Paulo, Francisco Casaleiro, Conde Murça, Condessa de Monte Real, Casa de Palmela, D. Nuno Almada, Condessa de Azambuja, Conde Jorge de Monte Real,  Condessa de Linhares, D. Maria Inez Carmona, Conde das Alcáçovas, Conde de Cabral, José Ribeiro Espírito-Santo Silva, Eduardo Guedes de Sousa e Dona Amélia de Melo. À festa juntaram-se ainda Armando Villar (então Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Cascais), o médico Dr. Álvaro de Lacerda e Melo, Amadeu Stoffel, António Casimiro d’Almeida, António Muchaxo, Guilherme Cardim, José Teixeira Roxo e Manuel Paulino.

As Festas do Divino Espírito-Santo de Cascais são uma das mais antigas tradições desta vila de Reis e de Pescadores, traduzindo a um só tempo a vivência religiosa e social da terra e das suas gentes. Conhecê-las e compreendê-las, integrando-as na dinâmica própria de cada momento da História de Cascais, é um passo importante para ajudar a projectar o futuro dinâmico e coeso pelo qual todos ansiamos.

 

Fotografias do Arquivo Histórico Municipal de Cascais e do Arquivo Histórico da Sociedade Propaganda de Cascais

 

As Primeiras Festas do Mar em Cascais

João Aníbal Henriques, 13.05.25
 

por João Aníbal Henriques

A primeira edição das Festas do Mar de Cascais aconteceu em Julho de 1936. Com um enquadramento e objectivos substancialmente diferentes daqueles que actualmente caracterizam os festejos, foram sempre, mesmo assim, a expressão maior da ligação ancestral que Cascais tem com a sua baía e com o mar.

Na versão de 1936, pensada e organizada por José Florindo de Oliveira, então Presidente da Comissão de Propaganda de Cascais, as Festas do Mar surgem enquadradas pelos desafios que afectavam a Europa e o Mundo naqueles anos. Em clima de pré-guerra, com a consolidação do socialismo e do comunismo em vários países, pressentia-se já a necessidade de Portugal recuperar o registo de prestígio que o havia caracterizado muitos anos antes. E a pressão sobre as colónias, nessa altura já assumidamente ameaçadora por parte das grande potenciais mundiais, obrigava a um exercício de recuperação dos símbolos e dos valores ligados ao mar.

No ofício enviado em 1936 ao Ministro do Mar, no qual a direcção da Propaganda de Cascais pede autorização para arrancar com a edição inaugural dos festejos, estão expressos os objetivos que presidem à iniciativa. Diz nesta carta o cascalense Florindo d’Oliveira: “Com os nossos respeitosos cumprimentos e com um pedido de desculpa por esta maçada e abuso, pedimos licença a V.Exª. para vos expormos um assunto, que para nós se nos afigura d’um elevado fim Nacional, e que, dentro do seu objectivo se nos afigura uma boa lição aos homens da doutrina do internacionalismo, aos da foice e do martelo e ainda aos cegos que por aí andam divulgando destruidoras doutrinas. Ao internacionalismo há pois que opor uma grande barreira de Nacionalismo”.

 

 

No pedido enviado ao Ministro Manuel Ortins Torres de Bettencourt, Florindo d’Oliveira explica que a Baía de Cascais foi o berço do grande navegador Afonso Sanches e que, na senda do papel muito relevante que ele teve na Epopeia Marítima Nacional, desejava que as festas de Cascais fossem lançadas simbolicamente associadas à Cruz de Cristo, que durante essa época gloriosa era a marca que identificava as naus e as caravelas portuguesas que davam novos mundos ao Mundo: “Que nas velas de todas as embarcações inscritas na Capitania do Porto desta vila,  quer de recreio, quer de pesca ou outras, seja pregada a Cruz de Cristo, para que ela faça ofuscar ou desaparecer para sempre da nossa terra o símbolo do comunismo”.

E assim, com o apoio directo e empenhado do então Ministro da Marinha e também do Presidente da República, o Marechal Óscar Fragoso Carmona, que nessa altura residia precisamente no Palácio Real da Cidadela de Cascais, a primeira edição das Festas do Mar aconteceu em Cascais em Julho de 1936.

De entre as muitas iniciativas que fizeram parte do programa destas festas, onde não podiam faltar os concursos de natação e as regatas de barcos à vela e remos, organizadas pelo Grupos Dramático e Sportivo de Cascais e pelo Clube Naval de Cascais, salienta-se um grande cortejo com as embarcações militares da Armada Portuguesa que, transportando a bordo todas as entidades oficiais, navegaram pelas águas da baía acompanhando a frota de pesca costeira, todos hasteando bandeiras com a tradicional Cruz de Cristo e homenageando assim os navegadores que corporizaram os descobrimentos portugueses.

 

 

Ao longe, balouçando suavemente ao sabor da brisa estival e do marulhar das ondas da baía, um dos barcos de guerra transportava a Banda de Música da Armada, que ia encantando os milhares de festeiros que assistiram à iniciativa a partir da esplanada que existia junto ao Passeio Dona Maria Pia de Sabóia. E o ponto alto dessa tarde, que muito entusiasmou os cascalenses ali presentes, foi o sinal dado pelos Bombeiros de Cascais de “navio em perigo” lá para os lados da Boca do Inferno. De imediato, num exercício em que participaram todas as entidades presentes, saiu para o mar uma enorme comitiva que tinha como objectivo prestar auxílio ao navio pretensamente em dificuldade, num exercício que entusiasmou de sobremaneira os que assistiam à iniciativa a partir de terra.

A corporação de Bombeiros de Cascais, com o Comandante Joaquim Theotónio Segurado à cabeça, participou no exercício com carros porta-cabos, foguetes e demais apetrechos de salvamento, transformando a iniciativa num exercício sensacional e raro que a todos impressionou.

Simultaneamente, ao longo de toda a tarde e prolongando-se noite afora, a esplanada do Clube Naval encheu-se de animação, com serviço de chá e pastelaria, bufete e arraial popular animado pela banda da Sociedade Musical de Cascais que deu o mote para o baile que entrou directamente nas memórias identitárias da vila de Cascais.

 

 

As receitas destas primeira edição das Festas do Mar foram prontamente distribuídas com o acordo unânime de todos os organizadores: 70 % reverteu directamente para o apoio aos pescadores que haviam sido afectados pelos grande temporais que tinham devastado o mar de Cascais durante a última Primavera;  20% foi entregue ao Instituto de Socorros a Náufragos que, criada por iniciativa do Rei Dom Carlos, era desde então uma das principais instituições da sociedade civil de Cascais; e os restantes 10% seguiram para os cofres da Comissão de Propaganda de Cascais, entidade que carregava consigo a responsabilidade de zelar pela animação e pelo espaço público na vila e, dessa maneira, pela angariação dos meios que se afiguravam necessários para manter Cascais como a mais charmosa e cosmopolita de todas as terras portuguesas.

 

 

Em 1936, quando o Mundo vivia aterrorizado com as convulsões políticas que haverão de culminar na eclosão da II Guerra Mundial (1939-1945), Cascais preocupava-se com a união da sua sociedade civil, salvaguardando que todos contribuíam directamente para a criação das condições necessárias ao cumprimento do seu comum desiderato. Na organização desta primeira edição das Festas do Mar participaram directamente o Presidente da República, o Ministro da Marinha, o Delegado Marítimo de Cascais, o Administrador do Concelho, o Presidente da Câmara Municipal, o Presidente do Clube Naval, o Presidente da Associação Comercial de Cascais, os directores da Sociedade Propaganda da Costa do Sol, o Proprietários das armações de Cascais (Alberto Graça), Guilherme Salgado, que era na altura o representante junto da câmara Corporativa, os elementos da Comissão de Propaganda, os pescadores e proprietários de barcos, nomeadamente José Crespo, Filipe Figueiredo e D. José d’Avillez e o demais povo de Cascais. As festas contaram ainda com o apoio directo do Diário de Notícias que, através de parangonas de propaganda da iniciativa, juntaram em Cascais a imensidão de público que transformou este certame num inquestionável sucesso.

Interrompidas durante a guerra e reatadas periodicamente durante muitos verões de Cascais, as Festas do Mar são hoje o ponto mais alto da época estival cascalense. Evoluindo ao longo dos anos de acordo com o gosto e o enquadramento das várias épocas, as Festas do Mar foram sempre e continuam a ser o mais vibrante e marcante de todos os eventos organizados em torno do magnífico cenário da nossa baía!

Fotografias de João Cabral da Silva, António Passaporte e Arquivo Histórico Municipal de Cascais