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Devolver a Ribeira das Vinhas a Cascais

João Aníbal Henriques, 25.01.17

 

 
 
O Vale da Ribeira das Vinhas, acessível a partir das traseiras do edifício do mercado, foi durante milénios um canal privilegiado de mobilidade para os Cascalenses. Era através dele, quando a vila dependia de forma directa do trabalho árduo e suado dos saloios que exploravam as pequenas unidades agrícolas situada no termo municipal, que chegavam a Cascais os legumes, as frutas e o leite que se produziam nas antigas aldeias rurais do Cobre, Murches, Zambujeiro, Malveira-da-Serra ou Janes. Era também através do caminho de pé-posto que acompanhava o serpentear das águas da ribeira, que as lavadeiras transportavam as roupas dos Cascalenses, num ciclo de interdependência que deu corpo à Identidade Municipal.
 
Ao nível dos costumes e das tradições, assim como nas crenças, nas práticas religiosas e na Fé, os Cascalenses construíram uma memória colectiva que reproduz um sentimento vivo e arreigado de Cascalidade. E grande parte desses usos e costumes, repetidos de forma reiterada ao longo de centenas de anos, concretizaram-se neste espaço extraordinário.
 
Paulatinamente abandonadas as pequenas explorações agrícolas que aí existiram até meados da década de 80 do Século passado, o Vale da Ribeira das Vinhas foi perdendo a sua importância no seio da comunidade Cascalense. As memórias antigas que integrava, foram-se apagando na medida em que iam morrendo os Cascalenses antigos que davam vida ao lugar, ao ponto de serem hoje muito poucos aqueles que conhecem este recanto encantado de Cascais.
 
 
 
   
Apesar disso, o Vale da Ribeira das Vinhas é ainda um dos locais de maior potencial para a Nossa Terra. Para além de ser uma via de comunicação acessível e confortável entre o centro da vila e os bairros periféricos, como o Bairro dos Pescadores, o Bairro da Caixa de Previdência, o Bairro da Assunção, a Pampilheira, o Cobre, o Zambujeiro, Murches, Alvide, Bairro Irene ou as Fontaínhas, permitindo transformar uma ida ao mercado, à praia ou à estação numa curta e inesquecível caminhada, o património histórico e natural ali existente, bem como a envolvente antropológica do local, poderiam ser facilmente aproveitados em favor do fomento da nossa identidade.
 
 
 
 
Assente no pressuposto de que a intervenção a realizar na Ribeira das Vinhas deve assumir um carácter minimalista, reduzindo ao mínimo o investimento público e rentabilizando os muitos equipamentos potenciais que ali subsistem, a nossa proposta passa pela recuperação do antigo caminho pedonal, integrando-o no património edificado ali existente, nomeadamente as azenhas, os moinhos e as várias estruturas agrícolas, complementado com a criação de uma bolsa de hortas urbanas que deveriam ser entregues à população. Nas componentes lúdica, pedagógica e turística, é essencial a recuperação das Grutas de Alvide e a recriação de vários trajectos pedonais e cicláveis associados à participação das escolas, associações juvenis cascalenses e aos agrupamentos de escuteiros.
 
Em ano de eleições, quando os poderes autárquicos se mostram naturalmente menos crispados perante as sugestões dos Cascalenses, vale a pena reforçar esta nossa proposta, convidando todas e todos os munícipes de Cascais para que literalmente invadam este espaço extraordinário.
 
A bem de Cascais!

A Capela de Murches na Lenda de Santa Iria

João Aníbal Henriques, 16.12.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sendo certa que é ancestral a origem do culto devocional a Santa Iria, também conhecida como Santa Irene, na localidade de Murches, em Cascais, não se conhecem com exactidão os seus primeiros passos. Sabe-se, no entanto, que o culto se estende ao período pré-Cristão, profundamente marcado pelo devir agrícola e pastoril das comunidades antigas que viveram no actual território Cascalense, e paulatinamente adaptado às circunstâncias e à passagem do tempo.
 
A actual Capela de Murches, com o seu estilo chão e inserida na tipologia própria das construções de génese rural, será provavelmente do Século XVI ou XVII, tendo sofrido alterações menores a partir de meados do século seguinte. Mas, apesar disso, e tal como acontece com todos os pontos axiais da religiosidade municipal de Cascais, terá provavelmente reaproveitado o local sagrado onde foi construída, ocupando o espaço onde teria existido um templo anterior. Ainda é possível ver, no remate da fachada Norte do edifício actual, os vestígios desses reaproveitamentos e, embora sem a monumentalidade que a ruralidade local impede, serão resultado do isolamento em que Murches, desde tempos remotos, sempre sentiu em relação à sede e ao litoral do Concelho.
 
É, no entanto, a ruralidade agro-pastoril das terras de Murches, que marca de forma indelével a evolução social nesta localidade e a devoção religiosa das suas gentes a Santa Iria. A dependência dos ciclos da natureza, complementada com a pobreza dos solos e uma existência de base pastoril na qual a transumância assume especial importância, determinaram a ligação à Santa de Tomar, que protege o gado, garante os mananciais de água e defende aqueles que dependem dela.
 
 
 
 
De acordo com a lenda, Santa Iria terá nascido em Tomar, algures em tempo indeterminado, filha de um casal nobre da antiga Nabância. Com um rosto maravilhoso e uma beleza verdadeiramente incandescente, Iria desde cedo foi assediada por toda a espécie de homens da região, a todos tendo resistido estoicamente com a mesma perseverança. Questionada por seus pais acerca de quem iria escolher, a jovem responde que é sua intenção entregar-se totalmente a Deus e fazer votos num mosteiro ali existente, virando definitivamente as costas ao Mundo e às suas gentes. Mesmo duvidando das suas palavras, os pais da menina fizeram-na entrar no mosteiro de monjas beneditinas existe em Sélium, onde se cumpriu a sua suprema vontade.
 
Mas o Mundo, que Iria quis esquecer durante os dias e noites de mortificação passadas dentro das paredes frias do mosteiro, nunca esqueceu a beleza extraordinária da rapariga e, apesar dos seus votos, foram muitos os que continuaram a tentar conquistá-la, mesmo se para isso tivessem de assaltar o espaço e deturpar o odor de santidade que se sentia lá dentro.
 
O mais assíduo dos seus apaixonados terá sido um tal Britaldo, galante senhor da região de Tomar, que tudo terá feito para seduzir a jovem monja. Ela, no entanto, nunca cedeu à tentação e, reforçando a sua Fé, foi sempre afastando este e outros admiradores que permanentemente cercavam o mosteiro.
Farto de tanto assédio, e certo de que a paz interna só seria reposta com a saída da rapariga, o Monge Remígio, Director Espiritual de Iria, deu-lhe a beber um medicamento preparado com ervas que tinha como objectivo fazer-lhe inchar a barriga e, dessa maneira, criar o pretexto para a sua expulsão do mosteiro. E assim aconteceu. Iria adoeceu gravemente e, apesar da sua inocência, foi deitada porta fora e sujeita às inclemências do tempo e da natureza e, mais importante ainda, às investidas maldosas de todos aqueles que desejavam desposá-la a ela.
 
 
 
 
O nobre Britaldo, quando soube da expulsão de Iria e do seu estado de gravidez, não acreditou na sua inocência e, despeitado por ter sido preterido perante outro qualquer pretendente, mandou assassina-la e atirar o seu corpo às águas do Rio Nabão.
 
Muitos séculos depois, durante o reinado de Dom Dinis, terá sido a Rainha Santa Isabel, a alquimista, quem encontrou os restos mortais da pobre mártir nabantina. O corpo da menina, tendo sido transportado pela corrente até ao Rio Zêzere, e dali até ao grosso causal do Rio Tejo, foi encontrado pela Rainha Santa durante uma das suas estadias no Ribatejo.  E, para sua surpresa e gáudio de todos, o corpo de Santa Iria estava totalmente incorrupto, preservado pelas areias do rio e pela vontade de Deus. O local onde o corpo foi encontrado passou a chamar-se Santa Iria e a grande cidade que existia nas redondezas tomou o nome de Santarém (corruptela de Santa Iria – ou Santa Irene).
 
 
 
 
Profundamente ligada aos cultos pagãos da água e da fertilidade a ela associada, Santa Iria transforma-se na figura angular sobre a qual se procede à cristianização de grande parte das mais importantes zonas do actual território Português. Nabanus, a divindade pagã que dá nome à Nabância onde a santa nasceu, relaciona-se precisamente com o poder regenerador das águas e com a sua ligação espiritual à purificação da humanidade, factor que rapidamente se estende, por intervenção directa da Rainha Alquimista de Portugal, a outras zonas do País. Em Fátima, por exemplo, o local onde Nossa Senhora apareceu em 1917 chama-se Cova da Iria e, em Cascais, é nas margens da Ribeira da Marmeleira, principal veio de água que desce da Serra da Lua – Cynthia - para saciar Cascais, que a dita capela com dedicatória à santa acaba por ser erguida.
 
Santa Iria de Murches, a divindade antiquíssima cuja intercessão garante água e fertilidade aos Cascalenses, é assim motivação maior para uma visita a um dos recantos mais encantados do Concelho de Cascais, num preito de homenagem a uma Identidade cujas origens se perdem nas brumas do tempo.