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cascalenses

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O Castelo de São Mamede em Guimarães

João Aníbal Henriques, 10.02.17

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Quando a História se cruza com a lenda, recriando um cenário onírico onde fantasia e realidade compõem um espaço único que calcorreamos, criam-se as condições para que um determinado lugar assuma laivos de deslumbramento que perduram ao longo dos anos.
 
É o que acontece na Cidade de Guimarães, comummente aceite como “Berço de Portugal”, no topo da sua colina de Nossa Senhora da Oliveira onde se ergue o seu altaneiro castelo. A construção, que quase parece ter sido esculpida como se de um cenário de teatro se tratasse, impõe-se na paisagem da cidade e define de forma evidente o imaginário colectivo dos vimaranenses e representa a própria identidade de Portugal.
 
 
 
 
De acordo com a documentação histórica, o Castelo de Guimarães foi começado a construir pela Condessa Mumadona Dias, viúva do poderosíssimo Conde Hermenegildo Gonçalves que governou o Condado Portucalense no final do Século X. No ano de 968, para defesa de uma comunidade monástica que havia criado no sopé do monte de Guimarães, a condessa emite um documento de doação do castelo à comunidade religiosa com vista à sua protecção contra os gentios. Nesse documento, é mencionado expressamente que as obras de construção já estavam terminadas e que a designação oficial da fortaleza era São Mamede. Será, porventura, um dos mais antigos documentos de fundação existentes em Portugal e, com a clareza notarial que apresenta, é por certo o principal atestado que nos permite conhecer e perceber o processo que conduziu à formação da nossa identidade e, posteriormente, a conquista da independência nacional.
 
Depois da conturbação normal que resulta da morte da condessa e do processo de posse pelo qual lutaram os seus descendentes, o Castelo de Guimarães volta a intervir directamente no devir nacional quando é entregue, por ordem do Rei Afonso VI de Leão e Castela, ao Conde Dom Henrique. A doação real, resultante do casamento do nobre borgonhês com a filha segunda do monarca, D. Teresa, acompanha o processo de criação formal do Condado Portucalense e, segundo reza a lenda, é a principal responsável pelo facto de ali ter nascido Dom Afonso Henrique que, mais tarde, virá a ser o primeiro Rei de Portugal.
 
 
 
A ligação de Dom Afonso Henriques a Guimarães, eivada dos mistérios próprios das histórias que se criam e desenvolvem no imaginário popular, relaciona-se por sua vez com a célebre Batalha de São Mamede, na qual o futuro monarca derrota a sua mãe e assume oficialmente os destinos do país emergente. Ali, no ímpeto de uma das batalhas mais significantes da História de Portugal, o auto-proclamado rei desfere o golpe final contra a sua mãe. Em termos simbólicos, é este o momento decisivo na cisão definitiva entre a lealdade jurada ao rei estrangeiro e o assumir de um caminho novo, marcado pela protecção divina e até pela presença do Filho de Deus junto do novo rei, num episódio cujos contornos surgem enublados pela passagem do tempo, entrando numa zona de não-tempo e não-espaço onde desaparecem os indícios daquilo que é real e do que é imaginário.
 
São Mamede, o mártir Cristão que lendariamente nasce envolvido pela desgraça e que ao longo da vida se concentra numa relação de dependência profunda e directa da mercê de Deus, personifica a concretização do impossível e a o apelo à força de uma Fé que supera a própria existência do real. Tal como Dom Afonso Henriques fará em meados do Século XII, Mamede de Cesareia está marcado pelo destino. A ele compete zelar pelos fracos e pelos desprovidos de sorte, garantindo-lhes o estabelecimento de pontes directas com o céu. No cimo da colina do castelo, depois de ultrapassada a Capela de São Miguel, chega-se então ao portão daquele espaço especial, e cruzando-se a sua entrada, deparamo-nos com o cenário mais linear do que foi o próprio nascimento de Portugal.
 
O mártir São Mamede, depois de atacado no estômago pelo rei pagão, sobreviveu graças à intervenção de Deus Pai. Directamente do céu, foi a própria divindade quem lhe colocou um estômago novo, permitindo-lhes resistir ao ataque e sobreviver para continuar a promover a sua Fé. Mas, quando tudo parecia indicar um desfecho oposto, Deus dirige-se a Mamede e diz-lhe que os seus dias na Terra chegaram ao fim… e ele aceita, numa entrega consubstancial à vontade do seu Pai, e entrega prazeirosamente a Alma ao Criador, sabendo de antemão que o milagre que deu forma à sua curta vida era, ele mesmo, a pedra angular que reforçaria a Fé de tantos que haveriam ainda de nascer num futuro que ele não sonhava e nem sequer concebia.
 
Ao fundar Portugal, o Rei Afonso Henriques cumpre destino idêntico. Dá forma, corpo e vida ao novo Estado de Portugal, numa entrega absoluta à vontade de Deus e antecipadamente disposto a sacrificar a sua vitória em prol de um outro qualquer desígnio. A subida do monte em Guimarães, tendo como horizonte da Senhora da Oliveira cuja orientação assegurava o bom carácter do seu trajecto, fê-la de forma totalmente desligada da matéria, numa quase absurda ingenuidade de sentimentos que o afastavam do tempo e do espaço em que viveu. Por isso Ourique foi algures em Portugal, embora tenha sido palco privilegiado da visita do próprio filho de Deus! E, sem tempo e sem espaço, foi em todo o território de Portugal que isso aconteceu.
 
 
 
 
Como para poder nascer é necessário morrer, numa inversão completa da lógica de pensamento que constrange a cultura Ocidental, Afonso Henriques gera o novo reino num registo de imaterialidade que permite ao improvável país novo a sobrevivência num cenário em que nada o deixaria antever. Foi um milagre o nascimento de Portugal e milagre maior ainda a sua sobrevivência durante tantos séculos. Tudo foi possível, soba égide de São Mamede, porque em Guimarães, cadinho sagrado da Alma de Portugal, Afonso foi capaz de viver em pleno a consagração e de concretizar o irrealizável aos olhos dos homens por exclusiva vontade de Deus…
 
Depois de obras profundas realizadas no castelo pelo Rei Dom Dinis, o mesmo que foi casado com a alquímica Rainha Santa que transmutava a matéria aos olhos do povo e do seu Rei, o Castelo de São Mamede ganha a fora que hoje ainda tem. Passam-se depois vários séculos de paulatino abandono, mercê da estabilização territorial que torna inútil o altaneiro castelo, processo que culmina com a sua classificação como Monumento Nacional em 1908, que virá a desencadear uma intervenção profunda realizada em pleno Estado Novo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Deste período ficou o aspecto cenográfico das suas muralhas, apimentadas com as ameias neo-medievais, que o retiraram do desinteressante e pouco edificante papel de fortaleza principal do Reino, para lhe conferir o título onírico de Berço de Portugal.
 
Em Guimarães ainda hoje se sente no ar o perfume fugidio desse sonho de antanho. As pedras das casas e das velhas capelas, erguidas à sombra do portentoso castelo e das imensas lendas que sempre o rodearam, vão refulgindo num brilho obscuro que acompanha os momentos bons e maus de Portugal.
 
É obrigatório visitar, explorar a fundo e conhece cada detalhe deste castelo excepcional. Até porque ali (ali mesmo naquele recanto sombrio do velho recinto amuralhado) nasceu Portugal!

O Chafariz de São Francisco e a Porta dos Cavaleiros em Viseu

João Aníbal Henriques, 31.08.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
A cidade de Viseu, capital da Beira Alta, é um dos mais extraordinários repositórios de História em Portugal. Em cada canto e esquina, atravessando as ruelas de traçado tortuoso que dão forma ao seu centro histórico, encontram-se os ecos de outros tempos, como se certos espaços da cidade, por artes mágicas vindas sabe-se lá de onde, preservassem de forma sentida as memórias das muitas vidas e das muitas eras que sobre elas se cruzam.
 
Viseu, mercê de tudo isto, alia a modernidade de uma vida já bastante cosmopolita, assente num comércio que sempre foi activo e florescente, com um cunho de tradição que é difícil de encontrar noutros lugares.
 
É o que acontece, por exemplo, com o Chafariz de São Francisco, no início da Rua do Arco, para onde concorrem os desígnios mais profundos de um romantismo que ainda hoje caracteriza a cidade. Em conjunto com a Porta dos Cavaleiros, que é um dos poucos restos da antiga muralha Afonsina, o recanto enche o olhar do visitante com a beleza do trabalho em pedra mas, sobretudo, com as memórias imaginadas por Camilo Castelo Branco que, no seu “Amor de Perdição”, situa ali a cena de pugilato em que Simão Botelho se batia pelo amor de D. Teresa de Albuquerque...
 
 
 
 
De facto, construído no Século XVIII, aproveitando um manancial natural que por ali existia, o chafariz utiliza a formulação estética barroca e entrega-se à cidade sob a égide sagrada de São Francisco, opondo a singeleza da devoção deste santo, à opulência quase majestática que caracteriza este espaço. Compondo-se como se fosse uma espécie de cenário, no qual o chafariz nada mais é o que o fundo de palco no qual brilham os restos antigos da velha muralha com a sua porta histórica e o palacete beirão dos Albuquerques, a fonte aproveita o espaço de uma estrutura anterior que terá sido demolida por António de Albuquerque, o seu construtor.
 
Relativamente à porta, é um dos últimos vestígios da medievalidade viseense, tendo resultado de um dos derradeiros esforços de amuralhamento para protecção da cidade. Digna de um realce especial, é a lápide existente no exterior da velha porta, dando conta da devoção do Rei Dom João IV a Nossa Senhora da Conceição (muitos anos antes de o dogma ter sido aceite pela Santa Sé, em 1854), em linha com uma tradição popular antiga que considera Nossa Senhora da Conceição como Rainha de Portugal. A Senhora da Conceição, ritualisticamente cultuada no território Nacional desde antes da fundação da nacionalidade, é provavelmente o resultado da aculturação das velhas crenças pagãs, cruzadas sobre uma enorme amálgama de pressupostos que resultam das vicissitudes do devir histórico, resultando aqui, neste recanto de Viseu, como uma espécie de eixo estrutural de uma Fé que é transversal em termos políticos e sociais a todos aqueles que vivem no País, e que conjuga, agregando vontades, o todo Nacional a partir de um elemento devocional que todos aceitam como peça essencial da existência de Portugal.
 
Em Viseu, o Chafariz de São Francisco e a Porta dos Cavaleiros, compõem um todo turístico que valoriza a cidade, principalmente se interpretados a partir da sua integração na riquíssima história local.

O Palácio da Bolsa no Porto

João Aníbal Henriques, 08.08.16

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Quando se observa pela primeira vez o edifício do Palácio da Bolsa, no Porto, estranha-se a imponência de uma construção ecléctica, que baralha os estilos e se impõe na paisagem através de uma escala imensa que contrasta com a arquitectura tradicional da cidade.
 
De facto, com o Rio Douro literalmente a espreitar pelas ruelas que dão acesso à Ribeira, o Palácio da Bolsa deixa vislumbrar a magnificência de um velho palácio inglês, marcado aqui e ali pelas linhas clássicas das velhas e ostensivas construções pombalino na baixa lisboeta.
 
Misturando estilos e procurando um efeito cénico que estivesse em linha com a importância que o comércio sempre teve na definição da estrutura urbana da Cidade do Porto, o actual Palácio da Bolsa é um edifício recente, tendo começado a ser construído em 1842 com base num projecto traçado por Joaquim da Costa Lima. Na sua fachada virada a nascente, assumem especial importância as linhas neoclássicas que aproveitam o declive natural da paisagem e que transformam a colunata que suporta a sua entrada monumental, numa espécie de palco cerimonial que se prolonga através da torre do relógio que a encima.
 
 
 
 
O carácter cénico do edifício, que tem como principal função impor na paisagem a marca de poder dos comerciantes da invicta, é bem visível não só na recuperação de valores arquitectónicos revivalistas na sua fachada monumental, como também na decoração interior e nos valores assumidos em diversas das suas salas principais. Dando corpo à escadaria principal, também ela de impacto efectivo na definição do espaçamento interior, o Pátio das Nações, cercado de um claustro deambulatório totalmente anacrónico e que serve de forma eficaz a necessidade de reforçar a função política do edifício, recria o ambiente de requinte que ainda hoje é visível na generalidade dos grandes jantares de gala e dos eventos que ali acontecem.
 
Dignos de referência especial, até porque é deles a responsabilidade artística dos mais interessantes aspectos da sua decoração interna, são as participações dos cenógrafos Manini e Pereira Júnior, responsáveis pela definição estéticas das funcionalidades do palácio, bem como a decoração exuberante da Sala Árabe ou do Tribunal do Comércio que compõem o cenário de pompa que o Palácio da Bolsa recria.
 
 
Terminado já em 1910, quando em Portugal (e também no Porto) se sentiam os laivos da chegada do novo regime político, o Palácio da Bolsa caracteriza-se pelo seu carácter revivalista, como se no passado romântico que cada detalhe decorativo determina, residissem as raízes do poder efectivo que os comerciantes tiveram e têm na cidade.
 
Aberto ao público, vale a pena visitar o Palácio da Bolsa. Não só pelas características do edifício e pela sua monumentalidade, como também para observar aquilo que, não sendo, ele tem capacidade para recriar no imaginário do Porto. Uma preciosidade!

Deu Lá Deu e o Eterno Feminino de Monção

João Aníbal Henriques, 07.09.15

 

 
por João Aníbal Henriques
 
Existem poucas terras assim! Monção, vila minhota situada no extremo Norte de Portugal, junto na margem do Rio Minho e a um passo da Galega Salvaterra del Miño, teve sempre uma história conturbada e marcada por constante ataques e contra-ataques oriundos do país vizinho.
 
Mas, no furor bélica dos muitos episódios que dão corpo à sua existência, são vários os momentos em que a defesa da localidade e, por consequência, a defesa de Portugal, foram empreendidas com muito êxito por mulheres.
 
Aconteceu no Século XVII, com as intervenções da Condessa de Castelo Melhor e de D. Helena Peres que, em ocasiões diferentes e separadas por um hiato temporal de quinze anos, tomaram em mãos o encargo de defender a sua terra.
 
Mas a mais célebres das Monçanenses, sepultada actualmente na sua Igreja Matriz e oferecendo o seu nome para topónimo da praça principal daquela vila verdejante, foi Deu-la-Deu Martins, casada com D. Vasco Rodrigues de Abreu, o Alcaide-Mor de Monção.
 
Reza a lenda que em 1368, durante a guerra entre o monarca Português Dom Fernando I e o rei castelhano Dom Henrique de Trastâmara, foi montado cerco à vila minhota. A capacidade das forças atacantes era brutal e a duração do cerco foi fazendo mossa nas já muito depauperadas reservas nacionais, a tal ponto que se perspectivava uma rápida capitulação por falta de víveres, água e mantimentos.
 
Num laivo de genialidade a que certamente não é alheio a capacidade estratégica da heroína, a mulher do alcaide decide juntar todos os poucos víveres que restavam e, perante o espanto e certamente a incompreensão dos seus conterrâneos, manda lança-los por terra das muralhas altaneiras que protegem a vila.
 
Os castelhanos, convencidos da prosperidade que se vivia lá dentro, reforçada pelo facto de verem atirar fora mantimentos que eles consideravam essenciais à sobrevivência da população, resolverem então desistir do cerco e abandonar a cidade que desta forma sobreviveu.
 
 

 

Praça Deu Lá Deu - Monção

 

 

Igreja dos Capuchos - Monção

 

 
 

A Capela de Nossa Senhora da Conceição em Arcos de Valdevez

João Aníbal Henriques, 13.08.15

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Existem locais que transcendem o tempo com a sua capacidade de atravessar incólumes as eras pelas quais a humanidade vai passando. É o que acontece num dos recantos menos conhecidos mas mais emblemáticos de Arcos de Valdevez na antiquíssima capela de Nossa Senhora da Conceição.
 
O vetusto monumento, erigido provavelmente ainda no Século XIV quando Dom Fernando, o Formoso, ainda respirava saúde e a Rainha Leonor Teles, a Aleivosa, se entretinha com o estrangeiro João Fernandes  Andeiro, é um dos mais interessantes exemplares da arquitectura românica do Norte de Portugal.
 
Essencialmente com cunho funerário, remetendo para os ancestrais arquétipos da Senhora da Conceição, a que concebe, a capela apresenta uma formulação espacial sóbria ao gosto da sua época, apesar das alterações impostas na transição para o período gótico, como o arco da frontaria principal e, mais recentemente, pelo altar de orientação “quase” barroca e já de finais do Século XVIII.
 
Na sua intemporalidade solidamente arreigada ao poder das grossas cantarias que a sustentam, a Capela de Nossa Senhora da Conceição de Arcos de Valdevez remete-nos para um imaginário profundamente ligado ao período de consolidação da nacionalidade, no qual a memória antiga associada à Identidade de Portugal se mostra no seu total esplendor, oferecendo um espectáculo emocionante no qual os princípios de uma religiosidade católica muito profundamente sentida se misturam com os laivos distantes de uma espiritualidade ainda bárbara mas significante.
 
 
 
 
A Senhora da Conceição, venerada aqui através de um monumento que deixa antever a orientação sagrada da própria localidade, assume simultaneamente a sua fácies Cristã e pagã, num esforço de gerar consensos que estabeleçam pontes entre o passado e o futuro daqueles que por ali lutam quotidianamente por uma sobrevivência sã. A morte e a vida, partilhando aqui uma espécie de universo místico que contrasta de forma evidente com a vida quotidiana que se vive lá fora, dão o mote para o choque dual entre os contrastes formados pela luz e pela sombra, pelo calor e pelo frio e pela magia e misticismo que se impõe à religiosidade canónica da comunidade envolvente.
 
São emoções únicas que valem a pena conhecer em Arcos de Valdevez.