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O Convento Franciscano e a Paróquia de Santo António do Estoril

João Aníbal Henriques, 26.11.13
 
 
 
por João Aníbal Henriques
 
A instalação do Convento Franciscano no Estoril aconteceu em 1527, no mesmo ano em que a Ordem entra em Portugal.  De características sui-generis, pela sua proximidade ao mar e pelo Santo de Devoção – Santo António do Estoril, o espaço em questão, mesclado de um intenso sabor a mar, pouco conhecido da generalidade dos espaços da Ordem, é também condicionado por uma forte presença da Serra de Sintra, marcando assim o desenvolvimento de um enorme potencial de aprofundamento religioso que os frades que ali se instalavam vão aproveitar de uma forma bastante profícua.
 
 
 
Pertença do Dr. Luís da Maia, clérigo do hábito de São Pedro, o terreno onde veio a instalar-se o convento, possuía já uma pequena capela dedicada a São Roque, mandada construir alguns anos antes, em data não determinada, por Leonor Fernandes, moradora no Casal do Estoril. O momento em que o ilustre prelado oferece o terreno à Ordem, que o recebe pela mãos de Rodrigo de Sant’Iago, é precisamente aquele que marca o início do processo de construção do idílio conventual, para o qual se utilizaram, trazidas do derruído Convento de Enxombregas, as pedras que vieram a consolidar as suas paredes.  A direcção das obras assumidas por Rodrigo de Sant’Iago foi de tal modo perene, que depressa se concluiu a construção do novo templo que, composto por uma única nave, possuía no entanto três altares, onde se prestava culto à imagem de Nossa Senhora da Boa Nova, a São Domingos e a São Francisco. Segundo a ‘Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves’, na qual se descrevem os edifícios da Ordem de São Francisco, existiria ainda uma imagem de Santo António ao lado da epístola, no altar-mor, que possivelmente seria datável de um momento anterior à edificação do edifício.
 
Ao que parece, o grande êxito que veio a enformar a existência do convento, e que lhe granjeou uma fama que trouxe a estas paragens uma série de importantes vultos da vida Nacional, ficou a dever-se à imagem da Santa Padroeira, a já referida Senhora da Boa Nova, com os seus três palmos de altos, e com feições consideradas «gráceis e perfeitinhas». Joana Manuel, a quem havia sido instituído o Morgado do Estoril, Manuel Jorge, síndico do convento, Álvaro Martins, marinheiro de água doce e o Marquês de Castelo Rodrigo, apoiante incondicional da submissão filipina, são apenas alguns dos mais evidentes apoiantes da Causa Franciscana estorilense, contribuindo com importâncias que, em conjunto com a exploração agrícola que os monges foram desenvolvendo nos terrenos que desciam até à praia, garantiam a possibilidade de se irem promovendo as obras de remodelação e de manutenção que permitiram ao convento subsistir e até desenvolver-se à medida em que se ia avançando para a segunda metade do século XVIII, quando o terramoto de 1755 veio pôr em causa a sua existência.
 
 
 
Os monges do Estoril, dedicados a uma vida de interiorização na qual o trabalho árduo das muito pouco férteis terras conventuais era , desenvolveram uma postura religiosa que em muito se afastou daquela outra que caracterizou a Ordem Carmelita instalada no Convento de Nossa Senhora da Piedade, em Cascais. Para estes últimos, a interacção com a comunidade, numa dinâmica de ensino e de aprendizagem, em que tecnicamente a sua mais-valia se ia transportando para as actividades profissionais dos cascalenses, principalmente na pesca mas também na horticultura, as portas do convento deviam estar abertas, recebendo no seu seio todos aqueles que dele necessitassem para resolver os problemas do quotidiano. Os monges estorilenses, possivelmente também como consequência da esterilidade do seu meio, onde as comunidades humanas não se haviam instalado de uma forma sistemática, mantendo um povoamento em pequenos casais e onde as únicas excepções são marcadas pelas aldeias de Alapraia e, mais a nascente, Caparide, tornaram o seu espaço no espaço eminentemente dedicado à interiorização, mantendo relações muito pouco próximas com a comunidade e alicerçando a sua dinâmica de trabalho no princípio da auto-subsistência que, aliás, era também consequência dos princípios fundamentais que norteavam a sua Regra.
 
Destacando-se dos demais, mais pelo seu esplendor espiritual do que propriamente pela sua maneira de funcionar em termos comunitários, Frei António de Palmela e Frei Cristóvão da Trindade, ali desenvolveram o seu percurso iniciático em direcção a Deus, mortificando a carne com a pobreza extrema e fortificando o espírito em orações e jejuns sistemáticos. A fama destes monges, de quem todos ouviam falar mais que poucos conheciam pessoalmente, acabou por garantir-lhes a recepção de muitos bens, que os habitantes das redondezas lhes ofertavam, com o objectivo de contribuírem para a vida de santidade que ali promoviam. As ofertas, no entanto, eram permanentemente redistribuídas pelos mais humildes, mantendo-se os monges de Santo António na mais pura e humilde das existências, gozando apenas da extraordinária vista que se alcançava das janelas do convento. Rocha Martins, o reputado jornalista que já mencionámos, descreve de uma forma paradigmática a envolvência do convento, a qual permite perceber quais foram as grandes transformações que o denominado progresso acabou por trazer a este lugar: «Um prado verdejava na vizinhança; a aragem suave coava-se pelo pinhal mas, por vezes, a ventania vergava o frondoso arvoredo; cresciam, na encosta virada ao mar, plantas selváticas e as águas brotavam, com a fama de milagrosas, sobretudo na parte mais baixa da serra de Santo António, a qual tinha ao sul o fortim de São Roque e a oeste o Casal do Estoril». Da mesma opinião, explicando ao mesmo tempo que a situação que caracterizava o convento em muito contribuiu para a forma como era procurado pelos mais fervorosos e dignos monges de todos os tempos em que durou a sua existência, era Frei Jerónimo de Belém que o visitou no início do século XVIII: «que o agradável da sua visita convidou em outros tempos a muitos religiosos para frequentarem nele a Escola do Céu, livres dos cuidados do Mundo que tanto embaraçavam os progressos da virtude e atrasam os espíritos mais fervorosos».
 
As notícias mais importantes relativas à localidade do Estoril, permanentemente relacionadas com o seu Convento de Santo António e com a actividade e apoio que os monges que nele habitavam forneciam aos que ali se dirigiam, situam-se já no século XVIII, quando o Rei Dom José I, habitando normalmente em Oeiras durante o período estival, se desloca amiúde ao convento, seguindo a sugestão do seu amigo e conselheiro Francisco da Fonseca Henriques, eminente físico da Corte, para usufruir dos poderes curativos das suas águas.
 
 
 
Com pouco mais de duas dezenas de monges nesta época, possivelmente como consequências das suas diminutas instalações, o Convento de Santo António do Estoril possuía, na véspera do terramoto de 1755, um aspecto que resultava do reconhecimento que havia conseguido angariar ao longo do tempo. Para além do já referido recheio interior, que sendo embora muito pobre possuía, no entanto, algumas peças dignas de uma nota muito especial, como uma relíquia do Santo lenho, um pedaço do cordão de São Francisco, e um osso de São Dionísio, o Mártir, o Convento possuía ainda no seu adro, junto ao cruzeiro, uma pequena capela externa dedicada a Santo António. Vai ser precisamente esta capela, com a imagem que se encontrava no seu interior, que vai marcar o processo reconstrutivo após o terramoto, pois o Santo Taumaturgo, com as características milagrosas de todos conhecidas, acabou por se tornar no principal símbolo da protecção conseguida pelos monges para levar a efeito, com uma rapidez extraordinária, os trabalhos de reconstrução do espaço.
 
Iniciadas em 1756 por Frei Basílio de São Boaventura, o guardião franciscano, após terem sido recolhidas as importâncias necessárias para o início dos trabalhos, as obras de reconstrução da Igreja e do Convento de Santo António processaram-se com uma enorme rapidez, tendo sido concluídas em 1758 com a colocação de uma imagem do Santo na fachada principal.
 
Em relação à catástrofe que afectou o Convento, e que hoje só conhecemos por intermédio do testemunho indirecto de um dos frades que habitavam no Convento Carmelita de Nossa Senhora da Piedade, em Cascais, há muito pouco a dizer, uma vez que a fúria dos elementos, que destruíram quase por completo a Vila de Cascais, acabaram por fazer desaparecer a quase totalidade deste espaço conventual, sendo que o que sobrou, devido à proximidade do mar e do solo pouco firme em que havia sido construído, acabou por ter de ser arrasado, não apresentando a solidez suficiente para tornar possível a sua recuperação. As palavras deste monge, incrivelmente semelhantes àquelas utilizadas pelas Memórias Paroquiais de alguns aos depois para caracterizar o estado em que se encontrava Cascais, são ilustrativas da situação em que ficou o convento, permitindo ainda perceber que quase todos os elementos que enquadraram a reconstrução, e que hoje fazem parte da estrutura externa da actual igreja, foram colocados de raiz nessa época (1): «De quer serve estar o Convento de Santo António, com algumas paredes inteiras, se a sua igreja veio toda ao chão e um dormitório do Poente; e o Nascente todo, até aos fundamentos, aberto, ainda que não caiu?»
 
Dois anos após o início das obras, quando o novo templo já estava completamente erecto e acabado, conheceu o Estoril um novo fôlego na sua história. Acompanhando o renascimento do convento, que passou a possuir condições que lhe permitiam albergar um maior número de religiosos, e que, segundo Ferreira de Andrade, mesmo nos piores momentos, nunca desceram abaixo dos dezoito, desenvolveu-se rapidamente a exploração das águas medicinais, as quais trouxeram em permanência a este lugar, que nunca mais vai deixar de desenvolver o seu cosmopolitismo e a sua vivência turisticamente invulgar, um número muito elevado de visitantes, que ali encontravam instalações, num espaço anexo ao do estabelecimento religioso, que permitiam a sua cómoda instalação. Muito antes de estar concluído, ou sequer pensado o Hotel das Termas, e muito menos as imponentes unidades hoteleiras que, anos mais tarde, vão trazer ao Estoril uma vivência turística marcada pelos seus aristocráticos visitantes, já o Convento de Santo António, na pequenez da sua pobreza votiva, contribuiu para desenvolver o nome, e levar bem longe a fama das pródigas águas e das formosas paisagens da Costa do Sol.
 
 
 
Frei Basílio de São Boaventura, principal fonte da energia utilizada na reconstrução, mostrou desde logo possuir uma virtude que o distinguia dos restantes membros desta comunidade eclesiástica: poder de visão. Foi precisamente esta característica, que as condicionantes do tempo lhe permitiram aproveitar, que serviu de pedra de fundo aos alicerces que depois suportarão o edifício dos modernos Estoris, no qual a igreja, com todo o esplendor de uma imponência cénica que o enquadramento nas arribas do mar ajudava a desenvolver, conseguiu desempenhar um papel fundamental, no qual Monsenhor António José Moita, com as características únicas que abordaremos mais adiante, se encaixou com uma perfeição digna de nota especial, pois mais do que inovar e modificar a postura que a Igreja Católica desenvolvia no Estoril, apenas continuou, no seguimento que já vinha acontecendo desde a segunda metade do século XVIII, com a figura enérgica, empreendedora e decidida deste monge franciscano. Contrariando as características que anteriormente possuía o templo, e tornando praticamente impossível determinar com rigor a sua formulação espacial e artística anterior, Frei Basílio de São Boaventura alargou o coro para o adro, em cerca de doze palmos dotando-o de três janelas rasgadas na fachada integralmente efectuada em pedraria, tal como ainda hoje podemos observar, e encimada pela já referida imagem do Santo Taumaturgo, que vem dotar o espaço de uma excelência e de uma magnificência que anteriormente não possuía. O novo templo, com custos que orçaram em cerca de oito mil Cruzados, totalmente resultantes das oferendas recebidas pela Congregação Religiosa, que como sabemos não possuía nada de seu, foi ainda totalmente azulejado no interior, trabalho que veio a ser realizado numa oficina que os próprios monges desenvolveram no convento. Ao que parece, das palavras que ficaram exaradas nas actas que a Comissão Encarregue da Reconstrução da Igreja, após o incêndio que novamente a destruiu em 1927 aprovou ao longo das muitas sessões em que reunião para determinar o andamento dos seus trabalhos, os painéis de azulejos da igreja de Santo António reconstruída após o terremoto, possuiriam uma espécie de moldura em tons de castanho, a acompanhar as cenas retractadas, a qual pretendia imitar os tons da madeira natural. Nas palavras do Arquitecto Tertuliano Marques, já em 1928, eram precisamente estas molduras que tornavam esta igreja muito característica, explicando que, por esse motivo, deveriam ser integradas nos novos painéis e nos frescos que o pintor Carlos Bonvalot se encontrava naquela altura a projectar.
 
Digno de uma nota especial, pelo relevo que representava na decoração interna da igreja, é o retábulo da autoria de Arcangelo Foschini, pintor pouco conhecido na actualidade mas grande apoiante do Estoril e do seu Convento. Filho de Francisco Foschini, bolonhês que se instalou em Lisboa, onde faleceu em 1805, o pintor nasceu em 1771, e iniciou os seus estudos artísticos aos treze anos com o Lente Joaquim Manuel da Rocha. A sua natural genialidade artística, alicerçada na pujança que lhe possibilitava a frequência dos mais requintados meios artísticos lisboetas do final do século XVIII, acabou por lhe dar a possibilidade de obter uma bolsa de estudo em Roma, onde conheceu e aprendeu os princípios da sua arte com o Mestre Labruzzi. Ao que parece, socorrendo-nos dos sempre preciosos apontamentos que Monsenhor Moita foi editando ao longo da vida, Arcangelo Foschini terá ganho em Roma um prémio especial pelas suas pinturas de nu, facto que o dota de um certo bem-estar económico que, por sua vez, lhe possibilita uma fuga para Florença, em 1792, devido às invasões francesas, e de lá, no ano seguinte, o retorno a Portugal, onde assumirá o cargo de Mestre do Infante D. Pedro Carlos, com 240:000 réis de pensão, moço criado e dois cavalos. O retábulo de Santo António, que Arcangelo Foschini pinta para a Igreja do Estoril, é exemplo paradigmático da forma como evoluiu o convento, que conheceu um período de grande apogeu desde que o terramoto de 1755 obrigou à completa re-elaboração da sua estrutura espacial interna. Os apoios, resultantes da grande fama que foi conseguindo angariar, dotaram o convento estorilense de meios e de incentivos que lhe permitiram iniciar um trabalho de grande mérito no acompanhamento e na formação das populações que habitavam em torno do Estoril.
 
 
 
Segundo os relatos publicados na imprensa da época, reportando-se ao abandono em que se encontravam grande partes dos imóveis religiosos nacionalizados, a Igreja de Santo António do Estoril, bem como o espaço conventual que a envolvia, foi quase completamente destruída no decorrer destes anos, só se salvando, porque se mantinha fechado e à guarda do próprio estado, o espaço da sacristia e do coro, onde estavam depositados os objectos de maior valor que, por isso mesmo, poderiam valorizar o imóvel na ocasião do seu leilão. Um dos factos mais apontados, e que nos permite perceber a grandiosidade física que o convento possuía nesta época, prende-se com o refeitório monacal, onde existiriam uma mesas de pedra de grandes dimensões que foram entretanto roubadas. Estas mesas, onde possivelmente se alimentariam os enfermos e infelizes visitantes do Estoril até àquela data, procurando o apoio necessário à utilização das águas termais, eram património de inestimável valor, tal como o aponta o novo proprietário logo após a tomada de posse e a assinatura da escritura que lhe entrega aquele espaço.
 
Quando Manuel Joaquim Jorge recebe o Convento, no qual vem a construir um edifício de apoio à actividade termal, acaba também por receber o encargo de zelar pela igreja, à qual a Junta de Freguesia não sabe o que há-de fazer, encarregando-se de a manter bem fechada mas, pelo menos, também minimamente preservada. Contrariando as análises históricas que têm vindo a ser publicadas pelo Estoril, é importante frisar que o espaço da Igreja de santo António do Estoril nunca foi incluído na arrematação pública que permite a Manuel Joaquim Jorge adquirir o espaço conventual. Os problemas que derivam deste mal entendido, e que vêm a complicar o processo de criação da Paróquia, em 1929, são firmemente esclarecidos pela neta do primitivo proprietário, Anna Thereza Jorge Goularde de Vasconcellos, em carta enviada ao Administrador do Concelho de Cascais, Lourenço Correia Gomes. Para além de referir expressamente que a Igreja de Santo António não estava incluída na arrematação do seu avô, a qual decorrera a 6 de Outubro de 1835, a então proprietária do Convento refere que tendo a igreja ficado ao abandono, a corporação local, de comum acordo com os seus antepassados, entregou a estes a sua conservação bem como a das respectivas alfaias e paramentos, tendo eles sempre mantido tudo com o maior interesse e tal e qual como o haviam recebido. Sublinhando o seu envolvimento pessoal em todo o processo, Anna Goularde refere que em 1906, quando o seu pai falecera e ela tomara posse da propriedade que o avô arrematara, a Junta de Freguesia lhe dirigiu um ofício, com a referência nº 2, e data de 15 de Outubro, conferindo-lhe igual encargo.
 
 
 
O prédio de rendimento, que a herdeira recebeu na mesma data, e no qual funcionou também uma escola primária, possuía acessos pelos terrenos que envolviam a igreja, facto que levanta alguma celeuma na ocasião da criação da nova paróquia estorilense, no dia 13 de Junho de 1929, e sobretudo no decurso da reconstrução do espaço após o incêndio de 1927. Já falecida nesta altura, e com um testamento em que deixa às Oficinas de São José a totalidade da propriedade em questão, torna-se evidentemente necessário delimitar as fronteiras entre as duas partes, de modo a dar carácter oficial ao documento que marca o início do funcionamento da nova paróquia já pela mão de Monsenhor António José Moita.
 
 
 
A actuação dos frades Franciscanos, criando as bases que vêm permitir um aproveitamento coerente das águas termais, facto que possibilitou ainda a utilização da paisagens e dos recursos naturais que o território apresentava, foi fundamental para que o Estoril se afirmasse no seio do concelho de Cascais e até no seio da área suburbana de Lisboa. Sem este primeiro ensejo monástico, que dotou o território de uma aura de pureza e de fascínio que nunca mais se perdeu, jamais o Estoril conseguiria usufruir de todos os benefícios que recebeu com a escolha do seu espaço para a construção das habitações de uma série de grandes personalidades da vida política económica e social portuguesa. Sem estes, por seu turno, jamais encontraríamos no Estoril a pedra fulcral que ele definitivamente foi no processo de reconstrução da estrutura religiosa da Igreja Católica, nem tão pouco a grande importância que este espaço possuiu na redignificação da vivência Nacional.
 
 

 

 

A Paróquia de Santo António do Estoril

João Aníbal Henriques, 18.10.13


por João Aníbal Henriques


Quando abordamos pela primeira vez o Estoril, com um horizonte onde o mar e a Serra de Sintra se misturam criando um ambiente diferente e muito sugestivo, é natural que a imagem que dele retemos seja marcada pela imponência visual de uma paisagem verdadeiramente apelativa.

A este apelo paisagístico, sempre entendido por todos aqueles que ali habitaram ao longo do século XX como resultante das condições da natureza, vem juntar-se um património construído de inestimável valor em Portugal. As casas, as ruas, os jardins e até a própria envolvência da praia, num caso único do urbanismo português, foram projectados de raiz, funcionando como uma espécie de cenário, num teatro magnífico, que aprofunda ainda mais o deslumbramento que se sente quando ali se vai.

O grande problema que enforma uma abordagem correcta ao Estoril, prende-se assim com a grande discrepância que permanentemente se desenvolve entre os que somente o observam e aqueles que verdadeiramente o vêm, uma vez que para além da sua componente física, enquadrando a paisagem com o património construído, o Estoril possui ainda uma comunidade humana que, como é natural, se afigura como a principal responsável pelo seu devir histórico.

Por tudo isto, e iniciando agora o primeiro contacto com a povoação, analisar historicamente o Estoril é misturar a simplicidade que dele emana, com a complicação dos muitos acontecimentos que ali se sucedem, num ritmo de tal maneira alucinante que se apresenta difícil analisar.




A complicação, como nos indicam, logo à partida, todos os factores que utilizámos como base de uma investigação que procura constantemente compreender a essência da povoação, mais do que os pormenores documentais que contribuem somente para afastar dessa história, que deve traduzir os lugares e as pessoas, todas as pessoas que habitando no lugar não encontram nela nada que lhes permita desenvolverem uma identificação pessoal com o espaço e as suas gentes, reside fundamentalmente na existência de um binómio que o Estoril utiliza amiúde para traduzir a sua realidade: o interior e o litoral. Estas duas posições, vincadamente alicerçadas numa existência ambígua, em que a denominada Lei dos Contrates está sempre presente, permitem ao Estoril que todos conhecemos, turístico, cosmopolita e cenicamente quase perfeito, equilibrar posições e fundamentar a sua existência num Estoril rural ou ruralizante, de características tantas vezes consideradas toscas ou rudes, mas que fornecem a matéria-prima que permite fundamentar as bases que suportam o cenário fulgurante que se constrói junto ao mar.

O carácter trabalhoso, fruto directo da necessidade de permanentemente se destrinçar a realidade da fantasia que deriva do facto, da forma como o acontecimento que dele surgiu se viu constrangido pela necessidade efectiva de o adaptar às necessidades sociais, económicas ou políticas, acaba por transformar pequenos acontecimentos do quotidiano em grandes elementos evidenciadores das orientações e das sensibilidades daqueles que por eles foram responsáveis.




A Lei dos contrastes, ou seja, a forma implacável que a ciência exige para fundamentar a observação do Homem, surge assim, em permanência, como o ponto de observação estorilense por excelência, ou seja, o ponto a partir do qual se desenvolve verdadeiramente a possibilidade de observar todas as partes envolvidas nas questões abordadas, distinguindo assim, entre os efeitos que de uma forma permanente nos fustigam os sentidos, aqueles que verdadeiramente traduzem a essência do devir histórico estorilense.

Compreender o Estoril, nesta perspectiva, exige assim um afastamento que poderíamos apelidar de histórico, ou seja, um distanciamento cronológico em relação aos factos que garanta uma certa idoneidade na maneira de os abordar. Exige também, de acordo com o nosso ponto de vista, um completo distanciamento em termos sócio-culturais, pois o Estoril de hoje, tal como aquele que Monsenhor António José Moita conheceu quando em 1914 para aqui se dirigiu, é ainda o espaço onde se fazem sentir os mesmos constrangimentos que a tradição e o conservadorismo não permitem ultrapassar.




A grande virtude do Estoril, ou seja, a capacidade de manter incólumes os seus valores, permitiu-lhe, por um lado, uma capacidade de afirmação que o dota da excelência de que necessita para se transformar numa das mais cosmopolitas e desenvolvidas povoações de Portugal. Por outro, essa mesma capacidade, acabou por se traduzir numa espécie de travão que, em sectores chave da vivência do lugar, contribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento de obstáculos que jamais vieram a ser ultrapassados.

Esta lei, que contrapõe sempre a necessidade de compreender ambas as partes, foi enunciada desde sempre como um dos princípios básicos que regem a vida do Homem; segundo alguns, é mesmo nela que reside, em última instância, o próprio cerne da existência humana, na qual o mal e o bem, por existirem ambos, dotam-se reciprocamente de uma lógica que dá sentido à própria existência. A povoação do Estoril, na mais ampla abordagem filosófica da sua existência, consegue unir as duas partes que compõem este todo, conjugando os dois contrastes que, numa primeira instância derivam da interioridade do seu litoral e da litoralidade do seu interior, produzindo inevitavelmente um terceiro estado perfeito e independente em que se confundem, e se absorvem reciprocamente, as partes piores de cada uma das suas próprias partes.

Desde sempre se sabe que o Homem, enquanto ser individual, perante o turbilhão incessante da vida, pouco vale. O seu valor, baseado na necessidade de encontrar uma identidade que lhe permita partilhar com o próximo as bases da própria existência, fundamenta-se quase em exclusivo na memória. Esta, por seu turno, está fundamentalmente sujeita aos lugares onde viveram.




Os grandes homens que viveram no Estoril, aproveitando de toda a perfeição que a povoação ainda hoje traduz, usufruíram de tudo aquilo que o Estoril lhes deu, enquanto ali viveram, para desenvolverem a sua genialidade. Aproveitar o saber, a perseverança, a capacidade empreendedora, o discernimento e o amor de todos os que viveram no Estoril, passa fundamentalmente por conhecê-lo, à sua história e às suas histórias, utilizando os ombros sempre disponíveis dos que nos precederam para subirmos mais alto, vendo de cima de tudo o que foi construído, a linha de horizonte que o mar, pela frente, e a serra, por detrás, aqui nos oferecem.