Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

cascalenses

cascalenses

Cascais: um caminho para Portugal e para a Europa

João Aníbal Henriques, 12.06.20



por Pedro Gomes Sanches e João Aníbal Henriques

in "O Observador" 12 de Junho de 2020

Cascais é a mais sadia terra que se sabe em Portugal. Assim o disse Frei Nicolau de Oliveira, no seu "Livro das Grandezas de Lisboa" no Século XVI, e o confirmámos nós, desde o início dos anos 90 do século passado quando, num velho Mini Moke amarelo, calcorreamos juntos cada canto e recanto desta terra que agora festeja o seu 656.º aniversário.
 
Pode parecer presunção que dois Cascalenses de gema, criados com os aromas, as cores e as memórias muito vivas de uma infância em Cascais, venham agora a público dizer que a Europa também nasceu em Cascais. Mas não é. Porque a História, que nasce pujante nas pedras velhas da Villa Romana dos Casais Velhos , nos comprova que a púrpura ali fabricada alquimicamente teve papel decisivo na génese Católica, Apostólica e Romana da Europa em que vivemos.
 
Portugal, de uma forma geral, e Cascais, em particular, estão muito longe do estereótipo imposto à Europa pela centralidade franco-germânica. Não são, como muitos lá fora por desdém teimam em dizer, e muitos cá dentro por incúria teimam em confirmar, as periferias pobres e desinteressantes que, situadas no Finisterra dos Romanos, nada têm a acrescentar à História.
 
Pelo contrário. Portugal é a cara de uma magnífica Europa, plena de futuro e capaz de representar e acolher todos. Ou não tivesse já Pessoa, antes de qualquer União Europeia, afirmado que o rosto com que a Europa fitava o Ocidente, futuro do passado, era Portugal. A sua localização atlântica, vocação turística centenária e cosmopolitismo, transformam este país numa janela de oportunidades para uma Europa que respeite as diferenças e seja capaz de rentabilizar o seu conhecimento e a sua experiência para estabelecer alianças com outros povos. O Portugal que herdámos é a ponte de ligação directa a África, à América do Sul e à Ásia, tendo a potencialidade e também o dever de contribuir de forma pragmática para encontrar respostas que permitam inverter a crise geral em que parecemos mergulhados, e nos libertar do atavismo a que parecemos condenados.
 
E se há exemplo de que tal é possível, ele está precisamente aqui em Cascais. Na comemoração de mais um aniversário, ouvindo ao longe os passos abafados dos pescadores nossos avós que receberam o seu foral em 1364, temos um Cascais reforçado por um polo de ensino superior que reúne o melhor que existe no Mundo nas áreas da ciência, da economia e da gestão. Cascais hoje exporta saber, conjugando a experiência de muitos séculos e a sabedoria avoenga com a ambição futurista dos nossos filhos. E fá-lo com um património histórico e arqueológico recuperado para servir de atractivo à visita de todos aqueles que desejarem aprender e deslumbrar-se com as experiências extraordinárias que estamos preparados para lhes proporcionar, bem como alimentando a memória dos que cá vivem lembrando-os quem são e donde vieram.
 
A já recuperada Villa Romana de Freiria, em São Domingos de Rana; o antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade, actual Centro Cultural de Cascais; a Casa Sommer, actual arquivo histórico; as Grutas Neolíticas de Alapraia, cujo núcleo de interpretação será em breve devolvido aos Cascalenses; as Grutas Pré-Históricas do Poço Velho, em pleno coração da vila; ou a fábrica de púrpura dos Casais Velhos, junto ao Guincho; são apenas alguns exemplos de que estamos preparados para o futuro sem esquecer o passado.
 
Mas Cascais não é só património edificado. Num tempo, ora vagamente esquecido por força da crise pandémica, de emergência climática, Cascais está também na linha da frente na preservação do seu património ambiental e da sua biodiversidade. Da Duna da Cresmina à praia das Avencas, passando pela Ponta do Sal, Quinta do Pisão ou Ribeira das Vinhas; da aposta na mobilidade light ao envolvimento empenhado e estratégico na mobilidade metropolitana de Lisboa; são apenas alguns exemplos de que sabemos inovar sem deixar de preservar.
 
Mas que Europa é esta de que falamos e que país é este que projectamos a partir de Cascais?

Esta é uma Europa de Nações, assumindo a diferença de cada um como contributo inestimável para um todo mais forte. Uma Europa baseada no respeito pelo outro que, num Mundo em permanente convulsão, conhece as suas origens e tem a capacidade para se afirmar com contributos decisivos que nenhum outro pode promover. Um Europa, com Portugal na linha da frente, com a marca de um pluralismo onde todos cabem. E uma Europa livre, democrata e inovadora.
 
E o país? Um país à imagem de Cascais. Nos 656 anos de Cascais, o nosso mote é o reforço da identidade, da promoção da cultura, da gestão das memórias e por outro lado da capacidade de fazer por nós, de inovar e de olhar com optimismo e determinação o futuro. Porque nós Cascalenses temos orgulho no nosso passado, trabalhamos arduamente no nosso presente e estamos preparados para enfrentar sem medo o futuro. Chamando a nós, sem o velho fado do queixume, o desenho do nosso destino. É por isso, pelo futuro que constrói e pelo passado que honra, que Cascais está de parabéns!

 

El-Rei Dom Sebastião: O Desejado de Portugal

João Aníbal Henriques, 20.01.20
 
 
 
 
Cumprem-se hoje 466 desde o nascimento de Dom Sebastião de Portugal. O Desejado de Alcácer Quibir, que carrega consigo o fado maior que explica o fado de Portugal, transcende largamente o homem que foi Rei, pois enquadra, contextualiza e explica muito daquilo que é a essência mais profunda de Portugal. 466 anos depois do seu nascimento, urge celebrar o Desejado, porque nele subsistem, mesmo tantas agruras depois do seu misterioso desaparecimento, as esperanças maiores de um País inteiramente inquietante.
 
 
por João Aníbal Henriques
 
 
El-Rei Dom Sebastião, filho do Príncipe Dom João e neto d’El Rei Dom João III, nasceu num dos mais conturbados e controversos momento dinásticos de Portugal. A morte dos vários filhos do Rei e a inexistência de descendência por parte dos que sobreviveram, condicionou de tal maneira as possibilidade de sucessão no trono que, até ao nascimento de Dom Sebastião, a única possibilidade viável seria a da entrega do trono à Princesa D. Maria Manuela que, por força das contrariedades, sendo casada com o Rei D. Filipe II de Espanha, naturalmente representaria a entrega da independência de Portugal ao nosso vizinho do lado.
 
Dom Sebastião foi assim, mesmo antes do seu nascimento, o Rei desejado, aquele no qual Portugal inteiro depositava as suas esperanças e do qual se esperava a restauração do esplendor perdido de um País que ainda pouco tempos antes havia conseguido mudar o Mundo e enriquecer de forma desmesurada.
 
E as contrariedades, agravadas por ser ele filho único de um pai que faleceu dias antes do seu nascimento, originando um movimento fervoroso de misticismo em torno do seu bom parto, aumentaram ainda mais quando morreu igualmente o seu avô, El-Rei Dom João III, quando o novo príncipe tinha apenas três anos de idade.
 
Terá sido, aliás, este clima de super-protecção e quase endeusamento, que terá conferido ao príncipe o seu conhecido e reconhecido mau feitio e uma soberba sem igual. Rezam as história da História, numa crónica prenhe de detalhes, que Dom Sebastião era uma figura de muito difícil trato. Não recebia ninguém, não se permitia dar ouvidos a nada e decidia tudo a seu bel-prazer do alto do seu pedestal sagrado, numa atitude de autismo profundo que condicionada de forma grave a sua noção do Mundo e de tudo aquilo que o rodeava.
 
Depois de um período sem grandes histórias, que correspondeu à sua infância e às regências da sua avó Catarina da Áustria e do seu tio-avô o Cardeal Dom Henrique, Dom Sebastião subiu ao trono quando atingiu os quatorze anos de idade, numa cerimónia lendariamente marcada pela intervenção do matemático Pedro Nunes, de Alcácer do Sal, que alegadamente terá tentado adiar este acto por ter visto nos astros que a data  lhe era aziaga…
 
Os dez anos que durou o reinado foram marcados por um declínio paulatino de Portugal. O Rei, muito condicionado pela sua visão distorcida da vida e do Mundo, sonhou quimericamente com os grandes feitos das conquistas de outros tempos e a sua faceta religiosa, possivelmente resultante da pressão sofrida durante toda a sua infância, impunham-lhe a determinação de se transformar num novo cruzado. Extemporâneo e teimoso, dedicou a grande maior do seu tempo a rezar e a preparar uma incursão gloriosa no Norte de África, arrastando consigo, até porque a Corte não ousava contrariá-lo, as riquezas e o prestígio que ainda restavam ao País que ele governava.
 
Da sua privada resta também muito pouco. Tímido e introvertido, características que agravava com uma soberba sem igual, El Rei Dom Sebastião abominava as mulheres que considerava sempre serem a personificação do diabo. E, nessa luta contra a natureza e contra si próprio, agravava a componente mística da sua personalidade, mergulhando num cenário de irrealidade que o impediu de aceitar as normais rotinas de casamento e, por consequência, a descendência pela qual todo o povo ansiava.
 
 
 
 
A quimera africana, em linha com a megalomania egocêntrica que caracterizou todo o seu reinado, culminou, como todos sabem, na fatídica batalha de Alcácer Quibir que dizimou quase por completo a aristocracia de Portugal e deixou órfão o País inteiro. Ninguém viu morrer Dom Sebastião às mãos dos mouros naquela peleja. Até porque, sendo nobres os que foram e nobres igualmente os poucos que conseguiram regressar, parecia mal e era imoral deixar morrer o Rei sem por ele morrer primeiro… e por isso ninguém viu, ninguém soube nem ninguém sabe o que aconteceu ao jovem, inquieto e perdulário Rei de Portugal.
 
O Dom Sebastião que hoje recordamos não é exactamente aquele que nasceu há 466 anos, nem tão pouco o que pereceu de forma inglória no Norte de África. Por detrás desta figura, literalmente encoberto pelo nevoeiro de muitas eras e desfigurado pelo mais iniciático mito da Portugalidade, está o Quinto Império de Portugal, aquela ideia inconcreta do que há-de vir e que se afigurará num esplendor total para gáudio de todos e para glória da Nação.
 
O império salvífico que assim se esconde, conhecido de uns poucos, ansiado por outros tantos e pressentido por todos, não se traduz por palavras nem se concretiza na matéria vil do desencanto. É um sonho, que como tal comanda a vida e que, no caso concreto de Dom Sebastião, se traduz numa demanda geracional e secular por algo de bom que nunca chega mas que se sabe que está ali mesmo, escondida de forma harmoniosa por detrás da cortina de nevoeiro que nos envolve a Alma.
 
Esta é a Alma de Portugal. Esta é a demanda do Graal que corporiza a Lusitânia gloriosa que tantos sonharam. Este é a Via Verdadeira em direcção ao reinado pleno de quem conhece o segredo primordial…
 
Diz-se em Sintra que “quem nasce em Portugal é por missão ou por castigo”, e que mais importante do que o que temos ou fazemos, o que somos é que define a diferença entre o bem e o mal.
 
Dom Sebastião não existe. E apesar de ter nascido naquela madrugada fria de um Janeiro qualquer, perdeu-se na História e deu corpo a uma história que é a maior de Portugal.
 
Paz à sua Alma!

 

A Senhora da Conceição em Piódão

João Aníbal Henriques, 19.10.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Vive-se de contrastes em Piódão. O azul do céu, reflectindo de forma insana o verde das escarpas da serra, abre caminho para o negro do xisto, em contraste profundo com o branco e o azul celestial da Igreja Matriz. É terra de todos e de ninguém, alcandorada nas lembranças rudes da Serra da Estrela e nos sonhos inexpressivos das curvas e contra-curvas desérticas que temos de atravessar para chegar até ela. Mas impõe-se à vista e aos sentidos, quando sob a égide maior da Senhora que Concebe, se abrem as janelas da Alma para um transbordar imenso do suor de Portugal. Está prenhe de Portugal. Está plenamente cheia do contraste enorme que dá forma à Nação e que à sua volta congrega a vontade maior de todos os portugueses. Uma preciosidade!
 
Miguel Torga, citado numa das pedras lavradas que se encontram à entrada desta Aldeia Histórica de Portugal, descreveu o Piódão como sendo o “ovo primordial de Portugal”. Ali, segundo o próprio, reencontrou a essência maior de uma País que espartilha desde há quase 900 anos uma gigantesca Nação. O Portugal do Piódão não é aquele que vem nos livros e nos enche as horas intermináveis das lições nas escolas. É um Portugal suado e vivido, assente na interpretação da natureza e na fusão quase perfeita entre a vontade de Deus, expressa na força física que a envolve, e a do Homem, traduzida no azul quase grotesco que lhe acentua as formas.
 
 
 
 
As suas origens, perdidas no meio das imensas nascentes de águas que fertilizam aqueles socalcos, fundam-se directamente na pujança física do território em que se insere. As primeiras comunidades humanas que ali se instalaram, algures nos idos longínquos do Neolítico mais remoto, interpretaram o carácter úbere daquelas terras e nele alicerçaram a sua vida e a sua sobrevivência numa rotina cíclica de interdependência sadia que perdurou ao longo de milhares de anos e de centenas de sucessivas gerações.
 
É daí que vem, muito provavelmente, a ligação mítica e mística aos mais ancestrais arquétipos sociais e religiosos que mais tarde hão-de consolidar a própria Nacionalidade, eivados da certeza (mais do que unicamente dos laivos periclitantes da Fé) de que a Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, era ali a força palpável e viva que determinava a própria existência.
 
 
 
 
Em termos decorativos, a formulação primordial de Piódão surge da confrontação aos opostos. O preto do xisto, determinante por resultar do aproveitamento natural e consistente dos recursos existentes, aparece aos nossos olhos sublinhado pelo azul cobáltico que delimita as portas e janelas, como se se tratasse de uma quase humanização do espaço, das coisas e das casas que ali foram sendo construídas. Mas o contrates maior, sobressaindo em harmonia plena da paisagem de conjunto do povoado, aparece em linha com a fachada inesperada e magnânima da sua Igreja Matriz dedicada precisamente a Nossa Senhora da Conceição.
 
Sendo recente, porque o actual templo que detém esta configuração somente desde o Século XIX, quando o Cónego Manuel Fernandes Nogueira ali instalou o seu colégio de preparação para a formação dos seminaristas e reformatou a velha igreja ao sabor de um estilo neo-barroco que interpretou o sentir da população e o traduziu no monumento pujante de impacto que hoje conhecemos, a Igreja Matriz de Piódão carrega consigo dois segredos que ajudam a contextualizar e a perceber a própria povoação. Em primeiro lugar, sabe-se que foi o estado de ruína eminente em que a igreja se encontrava que determinou a intervenção do clérigo já mencionado que, segundo reza a lenda, terá recolhido junto dos seus conterrâneos uma quantia insuspeita de dinheiro em volume suficiente para aquela imensa construção. Por isso, no mesmo lugar e provavelmente com contornos substancialmente diferentes, terá existido outro templo cuja origem está situada em pleno Século XVII.
 
Mas, tendo a mesmo orago, uma vez que existe ainda hoje uma imagem de Nossa Senhora da Conceição datada do Século XVI, ela própria reinterpretava realidade mais antiga, como se a força da Fé dos que ali habitavam fosse crescendo ao ritmo da passagem paulatina das gerações que se iam sucedendo…
 
 
 
De qualquer maneira, os ciclos de construção e de reconstrução do templo, mantendo a devoção original à Senhora que Concebe, reforçam a convicção de que o culto que lhe dá forma se centra na própria ancestralidade da ocupação do espaço, consolidado a partir de um movimento de cristianização que consolida os saberes e que denota um reforço permanente e sucessivo das certezas primordiais que caracterizam a própria comunidade. A Senhora da Conceição, na sua origem assente na imagem do Crescente que tem aos pés, carrega consigo a significância maior de uma tradição milenar. Mais do que os dois mil anos de História do Cristianismo, esta é um alicerce simbólico profundíssimo que reforça a certeza de que a natureza e os homens, quase sempre em uníssono, são capazes de conjugar as suas existências num plano de eternidade onde o sentido se perde no que somos, no que fazemos, no que dizemos e no que pensamos.
 
Nossa Senhora da Conceição, orago maior de um Piódão que não deixa indiferente ninguém que o visite, representa a reconfortante certeza de que os ciclos são eternos e que a vida, que o peso do corpo físico nos obriga a carregar durante um período muito curto de tempo, é afinal um mero interregno num caminho sinuoso mas profícuo de eternidade!
 
 
 
 
Visitar o Piódão e conhecer a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição é, assim, o mesmo que mergulhar de forma profunda na Alma de Portugal. E o ovo primordial que Torga descreve, um verdadeiro recomeço para todos aqueles que ousem perder-se por completo na amálgama de emoções que este espaço desperta.
 
Vale a pena. Mesmo!

 

A Capela de Santo António e de Nossa Senhora das Mercês na Aldeia do Penedo (Sintra)

João Aníbal Henriques, 19.05.19



 
 
por João Aníbal Henriques
 
Sítios especiais rimam geralmente com memórias únicas e inolvidáveis. É o que acontece na Aldeia do Penedo, junto a Colares, no Concelho de Sintra. Ali, no cimo de uma penedia vincada pelo guinchar permanente do vento, cruza-se a versão pagã original dos cultos anímicos ancestrais com a mística sagrada do Cristianismo mais recente… e se o touro morre às mãos do povo, é a sua carne que alimenta o corpo e a Alma do Imperador, Senhor do Espírito Santo. Vale a pena conhecer este recanto mágico de Portugal.
 
 
 
 
 
Perderam-se no tempos as informações fidedignas sobre a origem da Aldeia do Penedo, em Colares. A documentação histórica, marcada pelos tempos em que o registo já era prática comum, leva-nos directamente para o Século XVI, quando no primeiro numeramento oficial realizado em Portugal, se registava um total de 34 vizinhos a residir no Penedo.
 
Mas este número de habitantes, indicador potencial de uma aldeia já com certo peso histórico, contradiz de sobremaneira os sinais existentes no terreno, que denotam uma origem remota e muito longínqua para a generalidade das mais antigas construções que ali encontramos.
 
No ciclo das construções e das reconstruções, temos então uma Aldeia do Penedo cuja principal marca surge associada à documentação mas, não só pelas evidências arqueológicas como até pela etnografia do local, tudo aponta para uma origem muito mais antiga deste local.
 
A Capela do Penedo, com um duplo orago dedicado a Santo António e a Nossa Senhora das Mercês, foi instituída em 1547 por Francisco Nunes Dias e sua mulher Maria dos Anjos Gonçalves. Através desta instituição, procuraram apaziguar a ira dos deuses, através de um acto de entrega simbólica de uma parte substancial dos seus haveres aos irmãozinhos mais desafortunados pela vida que habitavam naquele lugar.
 
Com decoração opressivamente marcada pela azulejaria polícroma representando hagiograficamente o santo lisboeta, todo o interior do templo transparece da ligeireza formal dos templos de origem chã da região saloia. O Altar Mor, com as imagens de Santo António e de Nossa Senhora das Mercês, cumpre o duplo efeito de recuperar as principais memórias religiosas do povo que frequente o templo e, em épocas festivas, de servir de cenário para a coroação imperial votiva do Império do Espírito Santo.
 
Anualmente, num ritual também ele perdido nas brumas do tempo, uma criança impúbere do sexo masculino era escolhida e coroada como Imperador do Penedo, recebendo as honrarias próprias de quem comanda a terra dos seus. E, sendo notoriamente um papel que todas as famílias desejavam ocupar, era simultaneamente uma honra e uma responsabilidade que se cruzavam no ritual de alimentar os pobres da região…
 
 
 
 
As raízes provavelmente proto-históricas deste ritual, assente na lide à corda de um touro no espaço público, recuperam valores que desde sempre caracterizaram a população do local. Simbolizando a força e a determinação, obviamente imprescindíveis para quem quisesse sobreviver no topo fustigado pelas intempéries de uma Serra sempre especial, o touro é o animal que contrapõe a balança da singeleza imposta pela pureza original da criança coroada imperador. Se um é forte e possante, sendo lidado por todos para que a comunidade imponha a sua vontade aos deuses, quem manda verdadeiramente, ou seja, o próprio imperador, é escolhido e coroado sempre por ser o mais jovem, o mais puro e o mais desprotegido de todos os jovens da região, simbolizando a grandeza de quem é pequeno e a enormidade dos valores e princípios que mais tarde o Cristianismo plasmará no Sermão da Montanha de Jesus Cristo.
 
Antes de ser morto sem se saber exactamente por quem, encoberto por um véu de mistério que só a história permite desvendar, o touro é transportado à volta da capela três vezes. Uma primeira em honra do Pai, seguindo do Filho e, por fim, em honra do Espírito-Santo. E é depois desta terceira volta, quando é benzido pelo Prior local num holocausto místico em que todos participam também, que o animal é morto e esquartejado, sendo o seu corpo cozinhado em pleno largo da capela e a refeição servida aos pobres da zona como bodo cerimonial. 
 
 
 
 
Um culto ancestral, provavelmente muito mais antigo do que a própria capela que agora ali temos e que, num registo anímico de entrega à espiritualidade, recupera de um só ensejo a marca perene do paganismo pré-histórico em linha com os valores espirituais da cristianização galopante. A caridade que dali deriva, porque os mais desprovidos da materialidade ali obtêm as proteínas da carne de que tanto necessitam para viver, encobre-se ritualisticamente para não ser “caridadezinha”, partilhando de forma relevante ensinamentos essenciais para que verdadeiramente ali se cumpra o destino maior de Portugal.
 
Quadro maravilhoso que sobressai do cenário idílico da Serra de Sintra, a Aldeia do Penedo e a Capela de Santo António são visita obrigatória para quem deambula pela Alma de Portugal. Ali se encontram, num cruzamento sentido, as marcas maiores que fizeram coisa enorme deste país tão pequeno.
 
Porque quem sabe entende.
 
 

 

Joaquim António Pereira Baraona (1930-2018)

João Aníbal Henriques, 30.05.18
 
por João Aníbal Henriques
 
O Comendador Joaquim Baraona nasceu em 1930, em Ourique, e era orgulhosamente um alentejano dos quatro costados. Quando chegou a Cascais, onde veio criar a Conservatória do Registo Predial, assumiu de Alma-e-Coração esta terra de adopção onde deixou uma marca perene e extraordinária que o triste dia de hoje não vai conseguir abalar.
 
Em Cascais, quase tudo transborda com os ecos do trabalho, do empenho e da paixão do Comendador Baraona. A antiga maternidade onde nasceram milhares de Cascalenses; o hospital; as conservatórias; os bairros sociais; as academias e as colectividades; o jornais, as revistas e a imprensa local; os movimentos cívicos e de cidadania; as grandes causas que acenderam os ânimos e mudaram a face da Nossa Terra… Por todos os lados, em todos os cantos e recantos de Cascais existe obra do Comendador Baraona.
 
E para além desta, da qual ele passava sempre ao lado, como se não fosse coisa sua mas que todos sabiam e nela reconheciam a sua intervenção, um vastíssimo legado de entrega à comunidade, ao próximo, a Cascais e a Portugal que ele nunca permitiu que se soubesse que tinha sido ele. Generoso como só ele sabia ser, foram milhares aqueles a quem ele literalmente salvou nos piores momentos, exigindo somente discrição nesses actos, para que ninguém soubesse a grandiosidade indescritível que ele sabia ter.
 
Não existem palavras no léxico Português onde caiba a obra e o legado do Comendador Joaquim Baraona. Porque ela, sendo reconhecidamente enorme na parte pública, era incomensuravelmente maior na componente que poucos tiveram a sorte de conhecer…
 
Joaquim Baraona, foi erudito, académico, escritor, diplomata, político, empresário, benfeitor e tantas outras coisas onde expressou a profundidade da sua excelência. Foi condecorado pela Presidência da República como reconhecimento público pela sua obra e, depois da revolução, perseguido de forma injusta pelos mesmos motivos.
 
Soube, porque era figura maior do que os pequenos personagens com quem se cruzou na vida toda, virar a página e abraçar Portugal como causa sua, continuando, praticamente até ao último dia, a trabalhar a favor de toda a gente.
 
O dia de hoje é marcante para Cascais e para Portugal. Já nada voltará a ser com era. O desaparecimento físico do Comendador Joaquim Baraona representa o fim definitivo de uma era e, para desgraça dos que cá ficam com a sua boa memória, a certeza absoluta de que é insubstituível para sempre.
 
Que descanse em paz. Porque o merece.
 
A bem de Cascais.

108º Aniversário do Regicídio

João Aníbal Henriques, 01.02.16

 

 
 
Cumprem-se hoje 108 anos desde o dia em que o Rei Dom Carlos e o Príncipe Herdeiro Dom Luís Filipe foram assassinados em Lisboa. No dia 1 de Fevereiro de 1908, pondo fim a mais de 750 de Monarquia e de História, a carbonária, braço armado da maçonaria e grupo de terrorista a soldo de interesses estrangeiros, disparou sobre a carruagem real quando o rei e a sua família atravessavam o Terreiro do Paço depois de uma viagem a Vila Viçosa. Com esse acto de terror, a organização terrorista impulsionou os laivos republicanos que tinham chegado a Portugal fruto dos tempos que então se viviam e das vicissitudes recentes que tinham afectado Portugal. Neste dia, para gáudio daqueles que colocavam os seus interesses à frente dos interesses do nosso país, iniciou-se um período negro na nossa história. Depois da coroação do Príncipe Dom Manuel e do turbilhão de golpes e de contra-golpes que visavam somente a destabilização do país, Portugal caminhou rapidamente para a república, encetando um período de intensa convulsão e de instabilidade permanente que se arrastou ao longo de mais de 20 anos.
 
 
 
 

 

Não tendo sido um rei perfeito, até porque o seu espírito humanista e a sua profundíssima cultura o transportavam rapidamente para um mundo onírico que era muito diferente daquele que se vivia em Portugal nessa época, Dom Carlos foi um dos mais marcantes monarcas de finais do Século XIX, tendo ajudado o país a modernizar-se e a ganhar as dinâmicas do novo século. Foi uma pena ter visto a sua vida ceifada de forma prematura, inconsequente e, sobretudo, injusta para Portugal e para os Portugueses. 
 
 

 

 

 

Um Aborto

João Aníbal Henriques, 20.11.15

 

 

PS, PCP, BE e os Verdes vão aprovar hoje novas mudanças à lei do aborto. Totalmente liberalizado ate às 10 semanas, o aborto vai voltar a ser uma prática médica livre e sem constrangimentos de qualquer espécie. Como se de um método contraceptivo se tratasse, qualquer mulher pode ir ao hospital e abortar livremente.
 
Desta maneira, uma vez mais, os Portugueses serão obrigados a pagar taxas moderadoras se partirem uma perna ou um braço, se tiverem um qualquer acidente, se adoecerem ou se precisarem de mudar de óculos ou de tratar uma dor de dentes.
 
Mas se quiserem abortar é grátis!
 
É este o país que temos. 

As Aparições Marianas na Asseiceira (Rio Maior)

João Aníbal Henriques, 08.10.15

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Simplicidade, amor e oração, num apelo que chega de forma sublime e que se repercute sistematicamente pela comunidade, são as principais características transversais a todos os fenómenos relacionados com aparições marianas que acontecem em Portugal.
 
Tal como aconteceu em Fátima, na Fonte Santa, na Nazaré, em Coruche e em tantos outros cantos e recantos de Portugal, as aparições de Nossa Senhora que ocorreram na Asseiceira, concelho de Rio Maior, foram um fenómeno que assentou na figura de uma criança e que, com laivos quase pueris que são comuns às outras centenas de casos, foram posteriormente vistos e confirmados por dezenas de outras pessoas que acompanharam o vidente.
 
Sendo certo que existem fenómenos reais e que comprovadamente aconteceram, porque são muitos aqueles que os partilharam e que testemunharam a sua existência, é certo também que a sua descodificação é sempre um fenómeno de Fé que resvala para uma linha personalizada de relação com a religião e com o cosmos.
 
Nos casos portugueses, a Fé em Nossa Senhora, Mãe de Jesus e padroeira de Portugal, acompanha o país desde antes da formulação da nacionalidade, sendo possivelmente essa continuidade histórica que explica as explicações que são dadas sobre os fenómenos. Mas, sendo certo que é de Fé que se fala quando se discutem aparições marianas, o certo é que existem constantes que remetem para uma análise mais concreta que, nunca podendo ser científica, permitem perceber que é inquestionável o seu valor na definição dos valores e princípios sócio-identitários que dão forma à própria existência de Portugal.
 
 
 
 
A começar pela própria História. As aparições marianas em Portugal não são exclusivas de um determinado período ou contexto, nem tão pouco de uma determinada época de contornos bem definidos em termos económicos, políticos ou sociais. Pelo contrário. Atravessando os nossos quase 900 anos de História, as aparições de Nossa Senhora acontecem em vários locais e em vários tempos, adaptando-se obviamente aos contextos específicos nos quais ganham forma, mas sempre assentes em pressupostos que ultrapassam a esperança de vida daqueles que as vêem ou sequer as gerações às quais pertencem. É inquestionável, por isso, que as aparições não são um fenómeno que explica (ou ajuda a explicar) um momento histórico, nem tão pouco uma forma de vida determinada, antes respondendo de forma transversal aos arquétipos mais profundos da Portugalidade ao longo dos tempos.
 
Depois, de forma surpreendente pela diversidade de épocas e de locais em que acontecem, as semelhanças perante os fenómenos físicos que as acompanham. Raios de luz, alterações no Sol, vozes que somente alguns escutam e a pequenez das imagens que se vêem, são omni-presentes em quase todos os casos que se conhecem, deixando pistas que são quase referências em termos daquilo que se conhece. E se, pelo menos nalguns casos, é lícito pensar que os ditos videntes teriam acesso a histórias relacionadas com fenómenos idênticos que tentariam replicar no seu presente, na generalidade dos casos, a pureza pueril dos mesmos, associada a pouca formação académica e a contextos de isolamento profundos em que essas vidas acontecem, deitam por terra esse pressuposto e tornam quase impossível colocar a explicação nesse campo.
 
Por fim, temos ainda os conteúdos das mensagens. Com excepção de Fátima, na qual a mensagem surge encriptada e filtrada pelas determinações institucionais que as vão controlando ao longo do tempo, a quase totalidade das restantes remete para um apelo à singeleza da oração, da paz e da pureza que, parecendo coisa menor quando comparadas com uma descida à terra da própria Mãe de Jesus Cristo, são profundamente vincadas, marcantes e até revolucionárias nas comunidades em que as mesmas acontecem. Será crível pensar que tantas crianças, normalmente pobres e quase sempre analfabetas, repliquem com tanta exactidão uma mensagem que nada (ou pouco) lhes diz e que é transversal a todas elas?
 
 
 
 
No caso de Asseiceira, em que as aparições nunca foram sancionadas pela Igreja Católica, o padrão é o mesmo e, mesmo sem o cunho da oficialidade que certamente as teria transformado em algo de completamente diferente daquilo que aí verdadeiramente aconteceu, evocam valores, princípios e orientações que se encaixam de forma perfeita num vastíssimo conjunto de fenómenos no mesmo género.
 
No dia 16 de Maio de 1954, o menino Carlos Alberto da Silva Delgado, de 11 anos, apartando-se dos seus colegas de escola para rezar pelo sucesso de um exame que teria de fazer, ouve uma voz que lhe garante o êxito e que lhe pede que reze o Terço diariamente. Durante oito meses, todos os dias 16, o fenómeno voltava a acontecer, sendo acompanhado por um cada vez maior número de gente que acorria ao local para partilhar o dom de estar junto da Mãe de Deus.
 
Sem que se conheça qual outra mensagem e/ou orientação diferente do apelo sereno à oração e à santidade, o menino foi sujeito a vários exames médicos que determinaram ser o mesmo saudável não padecendo de nenhuma doença psiquiátrica que pudesse explicar o que estava a acontecer. Simultaneamente, tal como acontece em Fátima e noutros locais reconhecidos pela Igreja, as muitas testemunhas que acorrem ao local das aparições, divergem entre aqueles que vêem e ouvem o mesmo do que o vidente; aqueles que somente ouvem mas nada vêem; e os que vêem mas nada ouvem… Como se explica que seja assim em todos os locais e em todos os tempos?
 
Desde então até ao presente, o menino vidente faleceu prematuramente num acidente de automóvel, sem que no local deixasse de se reunir um número substancial de gente para cumprir a vontade da Mãe de Deus. Tinha 37 anos, não se lhe conhecem laivos de riqueza ou de grande poder, era casado, tinha dois filhos e uma vida normal, trabalhando como administrativo num banco. Ou seja, nada ganhou com o seu papel de vidente.
 
Mas o certo é que, até hoje, todos os dias 16, a meio da tarde, reza-se o Terço. Na comemoração do cinquentenário das aparições, em 2004, com dinheiro dos crentes, foram feitas obras de remodelação do espaço para que se continue sempre a cumprir aquela obrigação pungente.
 

O que é uma arruada? por Vasco Pulido Valente

João Aníbal Henriques, 02.10.15

arruada.jpg

 

A dois dois de eleições legislativas, as televisões Portuguesas foram inundadas com um fenómeno de propaganda que é transversal a todos os partidos e que parece estar na moda: a ARRUADA! Mas, segundo Vasco Pulido Valente, não é fácil definir o que é isso da ARRUADA: "À primeira vista, elas parecem tentativas para atrair à força a atenção do povo. O chefe do partido chega, com a sua corte, a sua “segurança” e uma camioneta ou duas de militantes, a uma rua suficientemente frequentada e começa a falar a desconhecidos que estão ali a tratar da sua vida. Aparecem uns maluquinhos que abraçam ardorosamente o chefe do partido, porque gostam de abraçar celebridades e abraçariam Ronaldo com igual ardor. Não se retira nada desta lusitana (?) espécie de exercício: nem uma ideia, nem um voto, nem um tostão. Alguns zelosos patetas pensam que uma “boa arruada” demonstra “força”. Erro deles. Mas quem somos nós para pedir melhor? A farsa da política portuguesa não parava com certeza à porta da campanha".

 

Leia AQUI o texto integral de Vasco Pulido Valente no Jornal Público

A China – Quando a Natureza e a Verdade se Renegam a Cada Esquina…

João Aníbal Henriques, 27.05.15

 

 

por João Aníbal Henriques
 
A China é o maior e o mais populoso País do Mundo. Com os seus perto de um bilião e meio de habitantes, ocupando uma imensidão de mais de nove milhões de quilómetros quadrados, a República Popular da China conjuga uma história milenar, patente em cada canto e recanto e sensível em milhares de pequenos laivos da vivência cultural do seu povo, com uma espécie de história nova, de pouco de setenta anos, que acompanha algo a que por lá se chama “revolução cultural” e que ditou os destinos do controle do Partido Comunista Chinês desde o fim da guerra civil que aconteceu em meados do Século XX.
 
Quando se chega à China tudo é inesperado e a sensação que perdura, mais do que os sons marcantes e os cheiros que preenchem todos os detalhes da sua paisagem marcante, é uma sensação de choque cultural que se traduz num impacto muito grande.
 
Com um regime político muito marcado pelo totalitarismo político do Partido Comunista, bem visível nos símbolos, nas cores e na profusa presença de militares nas ruas das cidades, a China empreendeu um esforço hérculeo ao longo das últimas décadas para literalmente apagar das memórias dos seus habitantes os ensinamentos antigos que haviam dado corpo à identidade  nacional. Quem hoje visita a China, e salvo as raríssimas excepções de monumentos ancestrais que não foi possível demolir pelo impacto que tiveram e continuam a ter um pouco por todo o Mundo, como a Cidade Proibida, a Grande Muralha da China, etc. vê um país marcadamente ocidentalizado, com avenidas largas repletos de milhões de carros em engarrafamentos constantes, enormes arranha-céus ao jeito do que se faz na Alemanha e na América e centenas de gigantescos centros comerciais, copiados dos que existem no Ocidente mas agigantados ao gosto chinês, nos quais se encontram as marcas e as lojas mais importantes da Europa actual.


 
 
É por isso um banho de água fria, para quem lá chega à espera de encontrar os vestígios da cultura milenar chinesa, da sua forma de vestir e de estar, bem como os retorcidos telhados dos pagodes ancestrais. Tudo isso desapareceu mercê da revolução dita cultural que o regime empreendeu, e foi paulatinamente substituído por uma espécie de grande cenário Ocidental onde se tenta copiar de forma espampanante o que se faz por cá.
 
Mas tenta-se somente. Porque por detrás das fachadas de vidro, dos carros alemães e das lojas mais requintadas de Paris, sobressaem ainda os gestos antigos que os Chineses teimam em perder… os arrotos sonoros em plena rua, a preparação de comida à porta de casa, as cuspidelas para o chão e o lixo que esvoaça por todo o lado, contrastam de sobremaneira com aquilo que imaginamos para um lugar assim. E depois a desordem ordenada e controlada que existe por todo o lado. Num País onde não é possível navegar livremente na internet, as ruas estão cheias de prostitutas e chulos que perseguem os poucos turistas ocidentais que por ali andam, oferecendo o seu produto e tentando levar os mais incautos para aventuras estranhas e muitos caras das quais poucos têm a coragem de voltar a falar mais tarde.

 
 
E o engano é palavra de ordem que não deixa ninguém indiferente. À sombra da sua incapacidade de falar outra qualquer língua para além do Chinês e da natural dificuldade de comunicação que daí advém, qualquer ocidental que entre num táxi, que tente comprar o que quer que seja e que não esteja habituado aos usos e costumes daquela gente, será enganado com toda a certeza.
 
Apesar de tudo isso, da falta que fazem as memórias antigas de um País antiquíssimo e que tanta importância teve na nossa forma de estar e de ser, o impacto de uma visita à China traduz-se numa experiência de vida, provavelmente mais impactante do que qualquer outra viagem que alguém possa tentar fazer.
 
Vale a pena? Vale certamente!
 

Pequim vs Beijing

 
 
 
 
Existem elementos incontornáveis numa visita a Pequim. Para além da sua imponência e antiguidade, são marcos fulgurantes na imaginação de qualquer um e definem com rigor aquilo que um turista Ocidental pensa antes de chegar a um destino tão impactante. A Cidade Proibida, a Praça de Tian’anmen, a Grande Muralha ou o Templo do Céus, são parte da paisagem e da aura de mistério que acompanha esta enorme metrópole asiática.
 
Tendo anteriormente designações diferentes, como Zhongdu, Dadu ou Cambuluc, Pequim (ou Beijing na ortografia local) é a actual capital da China. Com uma imensa população de quase 24 milhões de habitantes, é a segunda cidade chinesa depois de Shanghai e aquela que conjuga maior simbolismo no contexto da ditadura comunista que actualmente se está ali a viver.



 
 
Fundada originalmente no Século XIII, quando Genghis Khan unificou um conjunto de pequenos povoados ali existentes, Pequim (ou Capital do Norte) foi crescendo ao sabor das muitas vicissitudes que deram forma à sua História. Ali residiram as principais figuras da História da China e ali se centralizam as estruturas de poder ao longo dos últimos séculos.
 

A Praça da Paz Celestial ou Praça de Tian’amnen

 
 
 
 
A Praça da Paz Celestial, como optou por chamar-lhe o regime comunista que controla o País, também conhecida por Praça de Tian’amnen, é a maior do Mundo e foi inaugurada em 1651 às portas da Cidade Proibida. Por ali se representaram as encenações das grandes paradas e dos espectáculos com maior impacto políticos da Ásia e nela se desencadearam acontecimentos políticos que mudaram para sempre a percepção do Mundo em relação a este país tão marcante. Foi ali, em 1989, que centenas de estudantes foram massacrados pelo regime depois de tentaram mostrar a sua insatisfação pelo que estava a acontecer.
 
Hoje, rodeada de enormes medidas de segurança muito visíveis (e também de outras que ninguém vê mas que se sentem), alberga o monumento de memória ao antigo líder comunista Mao Tsé-Tung (1893-1976) e a tumba onde se encontra exposto o seu corpo embalsamado e está permanentemente cheia com centenas de milhares de visitantes maioritariamente chineses que, com um permanente sorriso nos lábios, por ali deambulam horas e horas a fio para poderem ver de perto o corpo daquele a quem, por medo ou respeito, continuam a chamar o “Grande Timoneiro”. E quase faz impressão olhar para aquele mar de gente, ali às portas da antiquíssima Cidade Proibida, gesticulando de satisfação em filas intermináveis que rodeiam o monumento várias vezes e onde passam horas após horas só para comprar o bilhete.

 
 

Mao Tsé-Tung e a Revolução Cultural Chinesa

 
 
 
 
E se a cidade tem uma história ancestral, marcante principalmente no Século XV quando a Cidade Proibida foi construída, o certo é que a sua importância foi reforçada no dia 1 de Outubro de 1949 quando Mao Tsé-Tung (1893-1976) ali proclama o nascimento da actual República Popular da China. Tendo sido conquistada pelo poder Nipónico em 1937, que manteve o controle sobre a cidade até à sua derrota na II Guerra Mundial em 1945, Pequim foi libertada pelo exército liderado por Mao e posteriormente reconquistada pelo poder comunista após a Guerra Civil que impôs o actual regime político.
 
E foi precisamente o auto-designado Grande Líder que, com a ajuda de uma das suas mulheres, empreende entre 1966 e 1969 aquilo a que optou designar por Revolução Cultural que literalmente deu forma à China actual e que tanta influência tem ainda hoje na formulação plástica e social o povo Chinês.
 
Tendo reformulado praticamente todos os aspectos da via quotidiana no seu País, o regime comunista optou por uma solução final que pusesse cobro a toda e qualquer possibilidade de protesto ou de sublevação. Para além de destruir grande parte do património histórico e cultural do País, que associava à possibilidade de descentrar as atenções do povo das inovações e do progresso que o regime comunista pretendia impor, a revolução cultural foi palco de grandes perseguições a oposicionistas, artistas e a todos os que ousassem pensar de maneira diferente. A autêntica lavagem cerebral levada a cabo por Mao Tsé-Tung, apagando os vestígios da milenar história chinesa e reforçando os laços com o movimento comunista, estendeu-se a escolas, empresas e às suas, que se encheram de simbologia do regime e apagaram por completo tudo aquilo que dissesse respeito a outros tempos.

 
 
Ainda hoje, na fachada principal da entrada da Cidade Proibida, se ostenta a fotografia do líder revolucionário, literalmente vigiando o seu povo e reverenciado como se de uma divindade se tratasse… 
 

A Cidade Proibida

 
 
 
 
E o maior choque para quem visita a China pela primeira vez será possivelmente a Cidade Proibida. Conjunto monumental de templos e palácios utilizados pelos vários imperadores chineses desde 1420, quando foi construído, a Cidade Proibida é possivelmente o monumento chinês que transversalmente acompanha o imaginário de todos aqueles que já pensaram estar neste lugar tão diferente.
 
Palco de filmes e de dramas imperiais, vedada ao acesso do cidadão comum, a Cidade Proibida é um autêntico e maravilhoso palco onde se recriavam os espectáculos que sustentavam a magnificência do poder político Chinês.


 
Actualmente, depois da revolução cultural de Mao Tsé-Tung, franquearam-se os portões antigamente sempre fechados e o povo literalmente tomou conta do espaço. Perdendo grande parte da sua mística e o antigo silêncio que dava corpo à apreciação do lugar e que é contado e recontado por todos os viajantes antigos que tiveram a sorte de lá entrar, a Cidade Proibidade está sempre literalmente a abarrotar de milhares e milhares de visitantes, maioritariamente chineses, que entram aos gritos, preenchem cada recanto e vão (literalmente) arrancando bocados dos adornos existentes no local.
 
Sem qualquer outra espécie de orientação para além de umas ténues informações muitos genéricas acerca dos nomes ancestrais daquelas vastas praças e terraços, os visitantes seguem ao ritmo da curiosidade, espreitando aqui e além as muitas salas que enchem o lugar e ouvindo aqui e ali algumas palavras ditas por algum guia mais descuidado. Não existe informação escrita, placas indicativas ou sequer livros à venda com notas sobre o lugar (o único sítio onde encontrámos um livro em inglês sobre a história da Cidade Proibida foi na área de embarque do Aeroporto), tudo acontecendo ao sabor do nada que tudo enche! Perde-se a simbologia, o significado profundo e a magnificência milenar de uma história que importava recordar.






 





 




 


 
 

Shanghai ou Xangai e Pudong

 
 
Situada junto à foz do Rio Yangtze, importante empório comercial durante muitos séculos, a Cidade de Shanghai é actualmente a maior cidade da China e possivelmente uma das maiores metrópoles do Mundo.

 
 
Considerada como “Cidade Mercado” em 1074, foi sempre ponto central na distribuição das riquezas produzidas no vastíssimo território Chinês e um porto da maior importância. De tal forma assim foi que, em 1842, quando a revolução industrial simplesmente começava na Europa, Shanghai se tornou no ponto-angular do comércio asiático, facto que ficou consubstanciado no Tratado de Nangum.
 
Profundamente ocidentalizada, com a sua estrutura urbana marcada por alguns dos maiores arranha-céus do mundo, Shanghai consubstancia o seu impacto na linha costeira do Rio Huangpo e no magnífico cenário do Pudong e a Torre Pérola Oriental, visto a partir do Bund.
 
A torre, construída entre 1991 e 1995, foi desenhada por Jia Huan Cheng e, com os seus 468 metros de altura, é actualmente uma das mais altas torres de televisão do Mundo, tendo-se assumido como ex-libris da cidade. O seu traço, baseado num poemos da Dinastia Tang, procura recriar a linha de paisagem com os traços de um alaúde…
 
Do outro lado, causando estranheza por ter sobrevivido ao surto implacavelmente destruir da revolução comunista, sobrevive um antigo palacete colonial actualmente utilizado como Embaixada da Rússia na China.


 






 
 

Guangzhou e o Cantão

 

 
De todas as cidades Chinesas, Guangzhou é possivelmente aquela que melhor traduz o estado em que se encontra China actual. Empório comercial antiquíssimo, fundada no Século II a.C. e com mais de dois milénios de História, Guangzhou ou Cantão, como é conhecida no Ocidente, é a capital da província de Guangdong, um dos mais prósperos territórios do País.
 
E se o Cantão é bem conhecido dos Portugueses, existindo centenas de relatos e descrições de viagens feitas à cidade ao longo de muitos séculos, até porque um tratado de 1511 atribui a Portugal o monopólio do comércio em Guangzhou, já pouco resta da magnificência de outrora.
 
Os antigos bairros, as casas típicas, os templos e as ruelas estreitas, foram progressivamente substituídos por enormes arranha-céus com dezenas e nalguns casos centenas de andares de altura, muitas vezes pintados de dourado e verdadeiramente resplandescentes, num processo de descaracterização total que cumpre os objectivos ditados pela dita revolução cultural comunista. Sendo actualmente a terceira metrópole da China continental, com mais de 13 milhões de habitantes, Guangzhou é uma espécie de enorme centro comercial, cruzando vários centros comerciais entre si e que se estende por cima e por baixo da terra.
 
Da sua história mais rocambolesca, subsiste o velho abrigo anti-bombardeamentos, resquício da pressão japonesa durante a II Grande Guerra, mas que se encontra literalmente perdido debaixo de uns quantos arranha-céus e de uma amálgama de centenas e centenas de lojas aglomeradas em vários centros comerciais subterrâneos.
 
O que sobrevive da antiquíssima cultura Chinesa? Pouco mais de nada. Os maus hábitos arreigados por práticas de sucessivas gerações, a sujidade que permanentemente vai enchendo as ruas das suas cidades, alguns hábitos alimentares também eles associados a práticas de pouca higiene e… nada mais. 
 
Uma pena.