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O Milagre Salgado de Nossa Senhora da Anunciada em Setúbal

João Aníbal Henriques, 04.03.22
 

por João Aníbal Henriques

Com uma História única que resulta de um conjunto extraordinário de acasos, a Cidade de Setúbal mistura as suas origens com a lenda, recriando um cenário onde o sonho e a realidade dão origem a uma palete de cores que condiciona a realidade e promove uma forma alternativa de ser, de estar e de viver a cidade.

A Igreja de Nossa Senhora da Anunciada é um exemplo paradigmático desta realidade e, traduzindo de forma muito eficaz a génese histórica de Setúbal, funciona aqui como uma espécie de máquina do tempo que nos permite regredir ao longo de muitas gerações para podermos perceber quais foram e como foram as várias eras que definiriam a cidade que hoje encontramos.

Quando a freguesia da Anunciada foi criada, em pleno Século XVI, já a igreja existia e era de tal forma velha e impactante que foi imediatamente transformada em Igreja Matriz. A sua importância no caso antigo da cidade, provavelmente porque as suas origens sagradas deverão ser anteriores à própria cristianização daquele território, foi determinante na forma como urbanisticamente se construíram as casas, as ruas e se definiriam os equilíbrios sociais entre Setúbal e as suas gentes.

Em termos arquitectónicos, a Igreja de Nossa Senhora da Anunciada, com novo orago depois da reconstrução que sofreu em virtude dos estragos provocados pelo grande terramoto de 1755 e a partir daí consagrada à devoção do Sagrado Coração de Jesus, apresenta hoje traços neoclássicos, com decoração barroca, que escondem a sua origem primitiva.

Quando, ainda no Século XIII, uma imagem de Nossa Senhora apareceu a uma pobre mulher que por ali circulava, pedindo-lhe que fosse constituída uma confraria em seu nome, e que a partir dela se instalasse naquele lugar um hospital para apoiar os mais necessitados, já Setúbal possuía mais de 1000 anos de uma História pujante. Pelo mesmo desde a ocupação romana, quando naquela zona se instalaram várias fábricas de salga e conserva de peixe que era exportado para a Península Itálica.

A lenda de Nossa Senhora da Anunciada de Setúbal tem, também ela, alguma coisa de estranho. É que, ao contrário do que acontece com outras aparições congéneres, principalmente aquelas que se prendem com a alimentação das populações que morriam à fome e que geralmente se consagram a Nossa Senhora da Conceição, a história que se esconde por detrás desta lenda prende-se com o fogo e com o poder dissuasor de Nossa Senhora relativamente ao elemento destruir que ele representa.

Enquanto circulava pela praia à cata de lenha para a sua fogueira, a pobre velha que dá corpo à lenda terá trazido um feixe de madeiras que deitou imediatamente para a sua fogueira. Mas, poara seu grande espanto, um pequenbo toro de madeira dos que ela tinha apanhado junto do rio, saltava teimosamente para fora do fogo de cada vez que ela teimava em pô-lo lá dentro. E a velha alertada por tão estranho acontecimento, terá olhado com atenção para o madeiro e percebido que era uma pequeníssima imagem da Virgem Maria que dessa forma parecia comunicar com ela.

Fácil se torna perceber, desta maneira, que tal acontecimento causou alvoroço na cidade. E a imagem de Nossa Senhora, anunciada pela velha a toda a gente como milagre maior que lhe aconteceu, acabou por gerar uma devoção que rapidamente se alastrou pelas gentes de Setúbal, potenciando a criação da confraria e, mais tarde, a construção da igreja e do seu vetusto hospital.

 

 

Nas imediações desta igreja, como se de um farol se tratasse, a vida seguia o seu rumo ligada às artes do mar e à exploração do sal que era riqueza maior naquele Portugal.

O sal de Setúbal, pedra angular da criação e desenvolvimento da cidade, era assim sustento e vida que dali se espalhava por todo o império romano, num movimento porventura milagroso do qual derivava uma forma alternativa de ser e de estar.

Provavelmente por esse motivo, quando a Ordem de Santiago se instalou em Alcácer-do-Sal e em Palmela, Setúbal conheceu o seu grande impulso populacional, para ali sendo enviados os recursos que permitiam aproveitar condignamente e rentabilizar a imensa riqueza que lhe era fornecida pelo Rio Sado.

Nossa Senhora Anunciada era, enfim, o motor a partir do qual se organizavam todos os importantes pilares definidores da vida na cidade e onde os mais necessitados encontravam o amparo de que precisavam nos momentos de maior aflição.

Olhando para a História e para a lenda que a acompanha, fácil se torna perceber o papel determinante que o dito milagre tem na formatação identitária de Setúbal. E, também, a importância que este espaço sagrado teve, tem e terá sempre na determinação daquilo que é a identidade arreigada desta velhíssima capital do sal.

Como disse Jesus: “Vós sois o sal da terra”. E em Setúbal, este sal que é vida, foi anunciado divinamente neste local!

A Igreja de Santa Maria da Graça em Setúbal

João Aníbal Henriques, 24.02.22
 

por João Aníbal Henriques

A cidade de Setúbal, com a sua origem provavelmente pré-histórica, tem uma relação directa e permanente com o Rio Sado. O alimento das suas gentes, bem como a prodigalidade dos seus engenhos, ofereciam condições extraordinárias de vida aos primeiros assentamentos humanos que escolheram este local para viver. Por esse motivo, e também porque o bem-estar geral providenciado pela abundância de recursos não trazia grandes exigências a quem ali morava, o burgo foi crescendo ao sabor das necessidades quotidianas, sem grande ensejo de uma pujança que de nada servia nem acrescentava absolutamente nada ao esforço permanente de angariação de sustento que determinava as leis da vida.

A invocação a Nossa Senhora das Graças, provavelmente de origem muito mais recente, é ela própria tradutora desta ligação milenar que determina a intercessão da Virgem Maria no dia-a-dia dos habitantes. Na sua faceta de defensora dos seus filhos humanos, a Senhora das Graças é a personificação adaptada da Imaculada Conceição de Maria, a Nossa Senhora da Conceição que é simultaneamente Protectora e Rainha de Portugal. Concebida sem pecado, a futura Mãe de Deus – e por extensão mãe divina de todos os homens – faz parte da matriz identitária da grande maioria das cidades portuguesas, carregando consigo um laivo de Fé que é transversal e que, até em última instância, justifica a independência política e o sucesso tantas vezes alcançado por Portugal.

 

 

No caso de Setúbal, em particular, a actual Igreja de Santa Maria da Graça é o resultado da reconstrução concretizada no Século XVI com traço do Arquitecto António Rodrigues. A magnanimidade do projecto, assente na força telúrica emprestada à sua fachada maneirista pelas duas enormes torres sineiras, é demonstrativa da pujança que tinha a sociedade sadina durante esse período áureo dos descobrimentos portugueses, nos quais o porto de Setúbal, bem como a linha de navegabilidade que o Sado definia e que era essencial para a ligação aos mananciais agrícolas daquela zona do Alentejo (veja-se p.e. a História da Herdade da Palma em Alcácer do Sal), acabavam por ser determinantes na capacidade de produzir e de comercializar que eram essenciais para suportar estruturalmente a estrutura dinâmica das próprias descobertas.

Digna de uma nota especial, não só pelo impacto que tem neste projecto, mas também porque simbolicamente ajuda a perceber essa situação verdadeiramente extraordinária no contexto do que foi Setúbal durante esse período virtuoso da História de Portugal, é a intervenção de Mestre José Rodrigues Ramalho na criação da Capela-Mor da igreja, em talha dourada, que em 1697 foi acrescentada ao templo original.

 

 

Nas suas origens documentalmente mais antigas, até porque provavelmente existirão pré-existências neste espaço que permitirão estender a sacralidade do lugar a mais alguns séculos, a igreja original que antecedeu estruturalmente a actual terá sido sagrada no dia de Nossa Senhora da Assunção no ano de 1245.

Em plena Idade Média, terá sido a Igreja de Santa Maria da Graça a definir o perímetro urbanístico da cidade, dela dependendo o surgimento dos primeiros bairros que estenderão a ocupação urbana até ao local onde actualmente se encontra a Praça Bocage, a Poente deste núcleo inicial.

Magnífica no seu enquadramento simbólico, e eminentemente tradutora da significação mais profunda da Cidade de Setúbal no contexto nacional, a Igreja de Santa Maria da Graça é hoje um testemunho muito importante que nos permite compreender melhor a interacção existente entre os recursos disponíveis para uma determinada comunidade humana e a consolidação da sua estruturação identitária a partir de uma concepção do sagrado que lhe define os contornos mais profundos.

As sombras impostas à sua volta pela altura determinada pelas suas torres, ainda hoje significa para os setubalenses a cobertura provida pelo manto de Nossa Senhora enquanto padroeira maior da cidade e de Portugal.  

 

O Castelo de Palmela

João Aníbal Henriques, 31.05.18

 

 
 
 
por João Aníbal Henriques
 
 
Altaneiro no cimo da Serra de São Luís, o Castelo de Palmela é, provavelmente, aquele que tem o melhor enquadramento cenográfico natural de Portugal. Com vista privilegiada para o Estuário do Sado, controlando as Serras da Arrábida e as terras de Tróia, o castelo apresenta características típicas das várias épocas construtivas a que foi sujeito.
 
A ocupação original do espaço, provavelmente da época Neolítica, ainda em período Pré-Histórico, enquadra-se na vivência mais comum deste tipo de construções, aproveitando a sua situação estrategicamente relevante para, num laivo de recrudescimento de eventuais posturas, se impor perante a envolvência e definir em seu turno uma vasta área de paz e de prosperidade.
 
 
 
 
A ocupação deste local é, assim, linear e contínua ao longo dos séculos, com focos permanentes de ocupação humana que lhe foram conferindo, através das suas intervenções na paisagem, a forma e as características que hoje apresenta.
 
Depois de Visigodos e de Muçulmanos terem feito de Palmela uma povoação de destaque no contexto da ocupação humana do território agora Português durante a Idade Média, foi na época conturbada da reconquista que se definiram em definitivo as suas dinâmicas de ocupação e de desenvolvimento.
 
 
 
Quando Dom Afonso Henriques, no esforço de reconquista das Terras de Portugal, derruba Lisboa, em 1147, abriu caminho para outras lutas e vitórias, que se estenderam, ainda na mesma data, a Sintra, Alenquer e Palmela.
 
Mas foi sol de pouca dura… a sua posição privilegiada na paisagem e a situação estratégica na defesa das entradas por mar via Rio Sado, tornavam Palmela demasiado importante para que a reconquista Cristã fosse facilmente concretizada e definitiva. Estratégias de contra-ataque, numa tentativa permanente de recuperar esta peça tão importante para a afirmação do poderio militar muçulmano, tornaram este castelo alvo de vários episódios sangrentos de conquistas e reconquistas, passando sucessivamente de mão para mão com evidentes prejuízos para a população e para a paz do local. Depois de recuperada pelos Árabes, Palmela foi reconquistada e novamente perdida pelas forças da Cristandade em 1158 e em 1165, data em que o Rei Dom Sancho I, numa tentativa fugaz de condicionar o destino do local, entrega o castelo à Ordem Militar de Santiago.
 
Mesmo assim, perante o poderio inaudito do líder muçulmano Abu Yusuf Ya’qub al-Mansur, voltou a cair nas mãos do inimigo e só em 1205 entrou em definitivo em mãos Cristãs.
 
 
 
 
Mas mesmo assim não foram de paz permanente os tempos do Castelo de Palmela. Mesmo depois de estar definitivamente integrada no Reino de Portugal, foi alvo de investidas e ataques que a desfiguraram, gerando um clima de insegurança e de incerteza que se prolongou pelos tempos. Em 1382, durante o reinado do Rei Dom Fernando, as tropas Castelhanas saquearam a cidade o o seu castelo, produzindo um índice de devastação que desfigurou de forma perene a estrutura defensiva daquele baluarte, obrigando à realização de obras profundas com vista à sua recuperação e ao reforço da sua capacidade de resistência às investidas dos inimigos, que lhe confeririam o aspecto que hoje lhe conhecemos.
 
Em 1384, novamente no âmbito de um cerco que punha em causa da sobrevivência do próprio Estado de Portugal, foi dos torreões do Castelo de Palmela que Santo Condestável Dom Nun’Álvares Pereira, o monge consagrado à devoção de Maria, avisou o Mestre de Aviz da chegada dos Castelhanos, acendendo ali enormes fogueiras que foram vistas a partir de Lisboa.
 
 
 
 
O Castelo de Palmela é, desta forma, uma das peças mais interessantes do património militar Português. Não só pelas características específicas que denotam a conturbação de quase dois mil anos de uma história pouco fácil, mas também pela sua intervenção específica nos destinos que a História reservou a Portugal.