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Apresentação do Livro "Viva Estoril" de João Aníbal Henriques

João Aníbal Henriques, 02.05.23

 

 

Numa iniciativa conjunta da ALA – Academia de Letras e Artes e da Associação de Turismo de Cascais, foi apresentado publicamente o livro “Viva Estoril” da autoria de João Aníbal Henriques e com prefácio de Miguel Pinto Luz. Abordando a história recente do turismo na Costa do Estoril, o livro recupera a história de um grupo de hoteleiros que tomou em mãos a recuperação do sector durante os anos conturbados que se seguiram à revolução de 25 de Abril de 1974 e do PREC. António Simões de Almeida, António Pinto Coelho de Aguiar, Maurício Morais Barra, Fernando Fernandes e António Teixeira Murta, a que mais tarde se juntaram Pedro Garcia, Luís Athayde, António Soares e muitos outros, foram os protagonistas de uma história que mudou radicalmente os destinos da região do Estoril e de Cascais até à actualidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fotografias da autoria do Departamento de Comunicação da Câmara Municipal de Cascais e de Josefina Gonçalves

 

 

As Casas da Câmara de Grândola

João Aníbal Henriques, 15.09.22

 

por João Aníbal Henriques

No Século XVI a região de Grândola conheceu um período de crescimento sem par. Os bons anos agrícolas, transfigurados em colheitas de grande potencial, significaram fartura nos índices de produção locais. E o excesso, suprindo de forma cabal as necessidades alimentícias da população, foram escoadas para o mercado, rentabilizando assim a energia despendida no trabalho e reforçando o valor estratégico de toda a região.

Em 1544, a povoação recebeu a sua Carta de Foral, criando assim as bases da sua autonomia administrativa e, por consequência, todas as obrigações e responsabilidades que normalmente correspondiam aos municípios.

 

 

Este esforço, necessário para enfrentar os vários desafios políticos e económicos que acompanharam o crescimento e consolidação da estrutura municipal, exigiam infraestruturas de que a terra não estava dotada. E, para fazer face a essas necessidades, recebeu o município as devidas autorizações para iniciar a construção de raiz de um complexo que fosse capaz de albergar as instalações da Câmara Municipal, as dependências do tribunal e, no seu piso térreo, prisões masculinas e femininas, acompanhadas por habitação para albergar o carcereiro.

Assim, depois de muitos esforços para conseguir recolher os valores necessários para esse avultado investimento, iniciaram-se em 1725 as obras de construção das novas Casas da Câmara que, sem a monumentalidade de outros edifícios congéneres situados noutros concelhos, são bem demonstrativos da periclitante situação em que sempre viveu este município alentejano. A pouca qualidade dos materiais utilizados, e o carácter precário da obra de construção, obrigou à realização de várias obras de manutenção e requalificação ao longo do tempo.

 

 

E em 1755, quando o Grande Terramoto abalou de sobremaneira a estrutura construída da localidade, o edifício ficou profundamente danificado, gerando nova necessidade de recolha de dinheiro para fazer face às imensas despesas de recuperação. É nessa altura que a Coroa assume uma quota-parte das mesmas e, para viabilizar a intervenção urgente que era necessário fazer na construção, oferece ao município a quantia de 664.397 Réis, quantia com a qual se realizou a intervenção e que recuperou o edifício.

Depois de a câmara ter crescido e consolidado a sua importância no contexto municipal alentejano, já em pleno Século XX, o município arrendou outro espaço para instalar os serviços municipais. E as velhas Casas da Câmara, mercê do restauro da Comarca de Grândola, em 1919, foram cedidas para a instalação do tão almejado tribunal.

Pelas suas características urbanas e pelo desenho extraordinário das suas ruas, a Vila de Grândola é hoje um ex-libris da História do Alentejo. E se o final do Século XX lhe consolidou as memórias, sobretudo acentuadas pela ligação perene do município às alterações impostas pela revolução, trouxe também a Grândola um cunho de serenidade que se impôs na paisagem envolvente, transformando-a numa das mais atractivas de Portugal.

Nossa Senhora da Rocha em Linda-a-Pastora

João Aníbal Henriques, 02.05.22

por João Aníbal Henriques

Por detrás das lendas, muitas vezes escondendo sub-repticiamente os laivos maiores da identidade de um local, estão factos da História que marcam de forma efectiva o sentimento de cidadania e promovem a coesão que é determinante para que as comunidades se imponham equilibradas e saudáveis a bem de todos os que dela fazem parte integrante.

É o que acontece em Linda-a-Pastora, no Concelho de Oeiras, onde a memória colectiva define a Senhora da Rocha como plataforma potenciadora daquele agregado populacional, unido sempre em torno da loca (ou gruta) onde o sagrado e o profano se cruzam a partir de uma devoção sentida à imagem maior da Virgem Maria no seu orago associado aos mistérios da conceição.

 

 

Reza a lenda que em 1822, num mítico dia 28 de Maio, um grupo de crianças locais deambulava pelos campos junto à Ribeira do Jamor em busca de coelhos que lhes fugiam através dos matos que enchiam este local. Um dos animais, despertando a cobiça dos fedelhos, terá ousadamente entrado numa lura de difícil acesso e os rapazes, acicatados pelo desejo de o caçar, entraram atrás dele, desviando os arbustos e os silvados.

Para sua grande surpresa, porque rapidamente se viram envolvidos pelo negrume da escuridão, perceberam que estavam dentro de uma gruta desconhecida e que à sua volta, num registo de terror que lhes potenciava o medo, um grande conjunto de ossadas humanas os contemplava da lonjura das suas vidas ancestrais.

Incrédulos com o achado, e interpretando os ossos que viam como uma alucinação, resolveram trazer alguns para a luz do dia e levaram-nos para as suas casas contando a sua aventura aos aldeãos. Como ninguém acreditou neles, organizou-se então uma nova visita ao espaço com a presença dos adultos que viviam nesse lugar e, para grande surpresa de todos, não só confirmaram o relato das crianças como também encontraram, singelamente perdida no meio das ossadas, uma pequeníssima imagem de Nossa Senhora feita em barro, que imediatamente interpretaram como um sinal da presença divina naquele lugar especial.

 

 

Ajoelhando-se à sua frente em profunda devoção, os fiéis que encontraram a imagem da Virgem Maria deparam-se com novo mistério. Repentinamente, sem que ninguém desse conta disso, a imagem desaparece da sua vista, como se tivesse fugido deles e desaparecesse de forma inesperada. Alvoroçados, procurando perceber o que aconteceu, os devotos acabam por encontrar a imagem pousada numa oliveira situada junto à porta da velha gruta oeirense, interpretando este sinal como sendo a Providência Divina a comunicar com eles.

O sucesso desta história, com ecos insuspeitos que se estenderam até à capital, levaram o Rei Dom João VI a interessar-se pelo acontecido. Procurando controlar o fervor popular e ao mesmo tempo tentando recentrar o potencial da devoção na Sé de Lisboa, o monarca manda transferir a imagem para a capital. Temendo a sublevação popular, são enviadas tropas para acompanhar o processo mas a população, provavelmente condicionada pela presença sagrada que emanava da imagem, manteve a compostura e acompanhou o andar ao longo de todo o percurso.

 

 

Precisamente 71 anos depois da aparição da imagem, agora no mesmo dia 28 de Maio, mas do ano de 1893, conclui-se enfim a obra de construção de uma capela no local onde outrora estava a oliveira onde a imagem reapareceu. Com a presença da Rainha Dona Amélia, que promoveu uma devoção que havia marcado anteriormente os Reis Dom Miguel, Dom Pedro V e Dom Luís I, a consagração do espaço acontece com toda a pompa e circunstância marcando o regresso da singela imagem de barro a terras de Oeiras.

A devoção simbólica a Nossa Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, é um dos mais importantes apoios da portugalidade. Transversal a todo o território, a todas as eras da História e a todas as classes sociais e culturais de Portugal, esta ligação perene entre os portugueses e este dogma tardio da Igreja Católica é verdadeiramente ancestral, provavelmente antecedendo historicamente o próprio nascimento real da Mãe de Jesus Cristo.

Os cultos ancestrais da portugalidade, eivados de um apelo permanente à natureza e ao mito da Deusa-Mãe adaptaram-se escatologicamente à ideia do desejado, mito que promove o apelo imaginário a um quadro de futuro que mitiga as maleitas do presente e transfere divinamente para a Mãe Primordial o ónus do acompanhamento e protecção pela qual sempre se ansiou em Portugal.

 

 

Maria, a Virgem Santíssima que alquimicamente transmuta a matéria, conjugando os sonhos da comunidade com as oportunidades que o real vai oferecendo, é devoção profundamente entranhada na Portugalidade. É ela quem determina a construção da escada que salvificamente transporta os seres viventes até ao Céu, sendo por isso mesmo a grande padroeira das causas maiores que se prendem com as angústias determinadas pela existência.

A Senhora da Conceição, que na gruta da Rocha, junto à Ribeira do Jamor, foi sempre a guardiã dos restos humanos dos muitos que por ali viveram as suas vidas ao longo dos séculos, oferece uma réstea de luz para iluminar a escuridão que esta nossa existência fugaz sempre acarreta. Do fundo da caverna, espaço privilegiado para a introspecção e para o pensamento, a Mãe Celeste prepara o neófito para o regresso à luz do Sol e à terra. Até porque é lá dentro, naquele útero primordial onde a vida se estabelece, que o espírito se prepara para o desafio enorme que representa o seu regresso à terra.

 

 

Em Linda-a-Pastora, envolvida pelo carácter idílico de um espaço onde naturalmente a água do Jamor e o verde da floresta original se conjugavam para criar um cenário úbere e pleno de fertilidade, é nesta ponte que se faz entre as crenças e a Fé da comunidade e os desafios próprios do quotidiano e da vida, que se estebelecem os laços essenciais de um espírito de cidadania participada, coerente e significante.

Nossa Senhora da Rocha foi, desde a sua origem, fenómeno de Fé. Movimentou as gentes dos arredores e foi pedra angular na criação da matriz identitária de Linda-a-Pastora e do Município de Oeiras.

O Alto de Santa Eufémia em Sintra

João Aníbal Henriques, 25.01.22
 

por João Aníbal Henriques

Envolvida nas brumas do mito e de uma sacralidade mística que dá forma à própria identidade de Sintra, o Alto de Santa Eufémia, no pico nascente da Serra Sagrada, é um dos mais impressivos recantos daquela montanha ancestral. Os seus seis mil anos de História correm ao sabor de uma vivência sempre muito significante e integram os laivos primordiais que dão forma à essência espiritual de Sintra.

 

Com uma vivência histórica comprovada desde o 4º milénio A.C., o Alto de Santa Eufémia é tradicionalmente considerado como o berço de Sintra. O povoado neolítico ali existente, aproveitando e adaptando-se ao binómio formado pela riqueza do seu manancial de águas e pela situação estratégica do seu plano elevado em relação à envolvência, foi desde a sua origem um espaço fundamental para a definição daquilo que virá a ser a ocupação humana em toda a região Ocidental da península Ibérica.

De acordo com Vítor Manuel Adrião, investigador e historiador especialista na História de Sintra, as origens do culto a Santa Eufémia perdem-se nas origens do próprio tempo, estando relacionadas de forma directa com os cultos de fertilidade associados com a água, num apelo ancestral à Deusa-Mãe, Eufémia, origem simbólica de toda a ritualística Cristã da Senhora que concebe, ou seja, de Nossa Senhora da Conceição.

 

 

Sem grandes registos dos seus primeiros anos de História, até porque nunca se realizaram naquele espaço escavações arqueológicas de largo espectro que permitissem conhecer detalhadamente o que ali se passou ao longo dos muitos milénios de vida que o lugar conheceu, Santa Eufémia de Sintra volta a surgir na historiografia medieval quando o cruzado Osberno descobriu o espaço e a fonte de água que descreve no seu relato sobre a Conquista de Lisboa como sendo rica em propriedades curativas.

Embora não existindo vestígios dessa época, presume-se que a primitiva capela que terá existido no local será desta época, eventualmente ocupando o mesmo lugar onde em momentos anteriores terão existido espaços sagrados com outros cultos e diferentes formas de Fé.

Já no Século XVIII, por ordem do Capitão Francisco Lopes e Azevedo, a aparição no local da própria Santa Eufémia terá sido a razão que determinou a reedificação do templo medieval, readaptando a sua zona de banhos e reforçando o culto que se prolongou até à actualidade.

E sublinhando o carácter místico do espaço, quando o romantismo do Século XIX se impõe, nova intervenção é efectuada no espaço, promovendo a sua identidade estética e transformando-o basicamente naquilo que ele é actualmente. A lápide colocada sobre a porta principal da capela, indicando que as obras foram mandadas fazer anonimamente por um “estrangeiro devoto”, reforça esse secretismo mítico que o investigador Vítor Manuel Adrião atribui como possível obra do Rei Dom Fernando II, marido da Rainha Dona Maria II e membro da linhagem Saxe-Coburgo-Gotha do Norte da Europa.

 

 

Foi o Rei Consorte, aliás, quem recuperou cenicamente a Serra da Sintra, reconstruindo o antigo eremitério da Pena e construindo ali o Palácio que hoje é ex-libris essencial de qualquer visita sintrense. A sua reinterpretação do espaço, em linha com a sua formação cultural de base germânica, é a principal responsável pela recuperação de grande parte da sua lendária sacralidade.

A lenda de Santa Eufémia, com todos os traços de uma intemporalidade que é transversal a estas histórias, carrega consigo os arquétipos mais essenciais do pensamento cultural e religioso de Portugal.

 

 

Rezam as histórias que a tradição oral sintrense perpectuou, que naquele local terá vivido uma antiga princesa de nome Eufémia. No auge da sua juventude, e no fulgor romântico dos seus verdes anos, a Princesa Eufémia apaixonou-se por um rapaz pobre e humilde que vivia nas redondezas. E seu pai, austero do alto do seu poder, determinou a proibição daqueles amores, gerando junto dos nubentes um profundo desgosto que no caso do rapaz terá degenerado numa doença grave a ponto de colocar em risco a sua própria vida. A princesa, incapaz de lidar com a morte provável do seu amado, lembra-se de o levar à fonte ali existente e de o banhar nas águas benignas que tradicionalmente curavam todos aqueles que as utilizavam. E o resultado não se fez esperar. O rapaz recuperou rápida e totalmente das suas maleitas e a princesa, para que ninguém se esquecesse do acontecido, marcou com o seu pé uma das rochas existentes na fonte, deixando uma marca que ali se mantém até à actualidade.

Classificado como Imóvel de Interesse Público desde 2002, o Alto de Santa Eufémia em Sintra é hoje um importante ponto de peregrinação fazendo parte dos calendários principais da Igreja Católica Romana. A romaria popular que ali acontece durante o mês de Maio, remetendo para as suas origens ritualísticas de índole vegetal, transporta-nos directamente para as linhas Marianas de pensamento, profundamente arreigadas no imaginário colectivo nacional.

A Ermida de São Miguel em Évora

João Aníbal Henriques, 19.10.21

 

 

por João Aníbal Henriques

São Miguel é o forte e sempre leal defensor dos oprimidos. É ele quem determina o desfecho das grandes lutas interiores, derrotando o mal e promovendo a ascenção dos pecadores em direcção ao céu. Guardião primordial do Trono Celeste, São Miguel é aquele que mais se aproxima do esplendor do Pai, mantendo a liderança dos anjos fiéis e garantido a vitória final contra o mal.

 

 



 

Em Évora, junto ao denominado Páteo de São Miguel, existe uma singela capela que esconde um preciso e ímpar segredo. A Ermida de São Miguel, fundada originalmente no Século XII logo depois da tomada da cidade aos Mouros, apresenta actualmente um traço arquitectonicamente pouco interessante, mercê de várias adaptações e transformações sofridas ao longo dos Séculos, mas guarda consigo a História extraordinária da mítica devoção do primeiro Rei Português ao mais forte de todos os Arcanjos.

Diz a lenda que quando Dom Afonso Henriques se preparava para resgatar a cidade de Santarém à mourama, apareceu no céu aos soldados lusos o braço armado de São Miguel e uma asa. Em virtude desse sinal, o monarca teria decidido ali mesmo criar uma Ordem Militar de Cavalaria que honrasse esse testemunho e que motivasse o exército Português a erguer a sua força através da Fé.

A Ordem Militar de São Miguel da ALA (ou da ASA), cresce assim na sombra da formação mítica da nacionalidade, emprestando-lhe uma aura de misticismo e de intervenção celeste que explica muito do fervor que os pequenos grupos de soldados lusitanos detinham quando empreendiam (e quase sempre venciam) as muitas pelejas que foram necessárias para criar o Estado Independente de Portugal.

Depois da Conquista de Évora, em 1165, Dom Afonso Henriques entrega o velho castelo (provavelmente não mais do que uma pequena fortificação precária situada numa das zonas mais altas da cidade) à Ordem Militar de São Bento de Calatrava, conferindo-lhe igualmente o dever de zelar pela reformulação da estrutura defensiva de Évora e, concomitantemente, pela construção de um templo dedicado ao Arcanjo São Miguel.

A construção, originalmente marcada pela singeleza que sempre surge associada a momentos de grande crise e alvoroço político, manteve o estilo chão tradicional daquela zona do Alentejo e foi-se reformatando aos gostos das várias épocas que se sucederam.

A abside manuelina, que a reconstrução seiscentista deixou intacta, é um dos poucos motivos de interesse formal do edifício, que se estende à escultura Joanina do arcanjo padroeiro.

Classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1939, a Ermida de São Miguel passa actualmente despercebida ao visitante mais distraído. Não só pela simplicidade com que se impõe no seio da monumentalidade extraordinária da cidade, como também pela sua integração no espaço de animação ali concretizado pela Fundação Eugénio de Almeida.

O segredo que guarda, e que poucos eborenses conhecem é, no entanto, muito maior do que a própria cidade, a região ou mesmo Portugal… porque encerra em si próprio o ensejo maior de um alicerce espiritual que deu forma à devoção e que permitiu consagrar o novo País numa Europa convulsa e avessa a esses feitos.

São Miguel Arcanjo, expoente máximo da devoção, encerra a força e a determinação necessárias para que se cumpra Portugal.É nele que reside a esperança e a Fé que Agostinho e outros congéneres colocaram na recupação do esplendor Nacional.

A Ponte Velha de Cheleiros (Mafra)

João Aníbal Henriques, 19.10.21

 

 

por João Aníbal Henriques

O profundo vale de Cheleiros, no actual Concelho de Mafra, surge marcado pelo profundo bucolismo e por um apelo à ruralidade ancestral da região. O rio, calcorreando lentamente os antigos quintais, serviu sempre de manancial do qual depende a sobrevivência daquelas gentes. E lá no meio, usufruindo de uma privilegiada posição de cenário numa paisagem que não deixa ninguém indiferente, a singela ponte velha transmite um carácter de vetustez que potencia os ecos antigos dos passos por ali dados pelos nossos avós.

 

 

Ninguém conhece com exactidão as origens da Ponte Velha de Cheleiros. A tradição popular, provavelmente assente nas muitas histórias que proliferam plenas de encanto, apontam para uma origem romana deste monumento.

E provavelmente terão razão. Até porque, no que à envolvente diz respeito, toda a região está repleta de vestígios da presença romana. E, nesse contexto, natural seria que a rede viária fosse essencial para facilitar o trânsito entre as várias comunidades e, dessa maneira, para sustentar o fluxo comercial que era determinante para o sucesso nesses tempos.

 

 

A ligação entre Mafra e Sintra, ambos pólos de reconhecida influência na estrutura económica romana, determinam a necessidade imperiosa de se transpor o Vale de Cheleiros e a ribeira que o divide a meio. A ponte, com a sua estrutura alicerçada em grandes silhares de excelente emparelhamento, aponta para essa origem construtiva, apesar de muito do seu aspecto actual resultar de sucessivas renovações e adaptações que lhe foram impostas ao longo dos séculos.

Assim, o arco de volta perfeita com provável origem romana, terá sido complementado já durante a Idade Média, pela estrutura actual, na qual, porventura devido à evolução técnica no uso da pedra, foi adossado um tabuleiro em cavalete, com dupla rampa ascendente, sinais evidentes de um trabalho marcadamente medieval.

A reforçar esta teoria, que linearmente nos remete para o dealbar da própria nacionalidade, está o facto de Cheleiros ter recebido Carta Foral emitida por Dom Sancho I em 1195. Esse facto, comprovativo da importância ancestral do povoado, foi certamente determinante para o reforço monumental da localidade, facto que fica plasmado na magnífica Igreja Matriz, provavelmente contemporânea destes factos e na existência de sinais relevantes da existência de uma antiga estrutura amuralhada que defendia as comunidades de ataques inimigos que por ali pudessem passar.

 

 

Mais tarde, já no Século XVI, o Rei Dom Manuel confirma o Foral de Cheleiros, reforçando os vínculos criados no Século XII. E já no Século XVIII, quando em Mafra se constrói o magnífico palácio-convento, Cheleiros terá reforçado a sua importância estratégica por ser canal essencial de passagem para essa nova centralidade.

Classificada como imóvel de interesse público desde 1982, altura em que foi novamente intervencionada e recuperada, a Ponte Velha de Cheleiros é hoje um símbolo incontornável da região, assumindo-se como testemunho histórico de primeira importância para percebermos como se processaram as dinâmicas políticas e sociais nesta região durante os inícios da medievalidade.

É uma visita obrigatória para quem quer conhecer Portugal. 

Montemor-o-Velho e a Igreja de Santa Maria da Alcáçova

João Aníbal Henriques, 10.11.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Montemor significa que é o monte maior… aquele que emerge da paisagem e se impõe perante quem passa. É simultaneamente um lugar visível, pela sua dimensão, e a partir do qual tudo se vê nas redondezas, sublinhando a sua importância estratégica na defesa daquele que ali vivem o quotidiano. Montemor-o-Velho, por ter sido um dos primeiros bastiões na defesa do recém-nascido Portugal, tem uma História extraordinária e um conjunto de histórias que não deixam ninguém indiferente. É porventura a pérola maior na consolidação da Portugalidade!
 
 
Fundado oficialmente algures em meados do Século IX, basicamente porque existem provas documentais da sua conquista em 848 pelo Rei Asturiano Ramiro I, o Castelo de Montemor-o-Velho foi sempre um dos mais importantes espaços na definição estratégica da ocupação humana do território onde se insere.
 
 
 
 
A elevação natural, conferindo potencialidades únicas ao nível da defesa contra-ataques inimigos, fez convergir para ali muitas comunidades humanas, possivelmente desde que os primeiros Seres Humanos ali se instalaram nos rocambolescos tempos do Paleolítico Superior. Os vestígios que ficaram dessas ocupações remotas, provavelmente sem construções de carácter permanente como acontece com o actual castelo, foram-se esbatendo paulatinamente à medida em que outras comunidades e outras civilizações foram ocupando o espaço e nele deixando a impressão perene da sua forma de ser e de viver.
 
Antes da Cristandade que dará forma a Portugal, também os Romanos, os Visigodos e os Muçulmanos fizeram desde monte maior a sua casa, ali construindo (e também sucessivamente destruindo os vestígios dos que os antecederam) os seus aglomerados habitacionais.
 
Com uma História que se confunde com o desenvolvimento da metalurgia em terra da Beira Alta, porque metais como o estanho eram extraídos da terra e transportados para a capital através das águas nem sempre serenas do Rio Mondego, o Castelo de Montemor-o-Velho foi sempre peça-chave na defesa de quem ali passava, cadinho de conforto e refúgio transitório para quem deambulava por aquelas terras em épocas de grande agitação e nenhuma segurança.
 
Um dos momentos mais impactantes da sua longa História prende-se com a sua conquista por parte de Almançor. Ainda antes do arranque do novo milénio, quando D. Urraca se entretinha a redefinir as estruturas de defesa Cristãs da Linha do Mondego, o chefe muçulmano conquista a fortaleza e altera de forma radical a sua estrutura de implantação no espaço, reformatando a sua lógica de defesa e preparando-a para uma ocupação longa e profícua por parte da direcção Islâmica. E, até 1006, quando Mendo Luz a reconquistou para a Cristandade, assim se manteve Montemor-o-Velho e o seu velho paço real, coadjuvados em termos espirituais por uma vetusta mesquita que terá ocupado o espaço que hoje é sensivelmente o mesmo da Igreja da Alcáçova.
 
 
 
 
O Templo, com invocação de Nossa Senhora da Assunção, refulge com a pujança que lhe foi atribuída por D. Jorge d’Almeida no Século XVI, conferindo-lhe a face renascentista que ainda agora apresenta. A estatuária, decalcando simbolicamente o antigo espaço da mesquita muçulmana, assenta numa curiosa figura da Senhora do Ó, marcada com o sinal perene do sangue, numa invocação extraordinária das histórias maiores que deram corpo às vicissitudes maiores da História da localidade…
 
 
 
Reza a lenda que algures no Século IX, o contingente militar Cristão que defendia o espaço foi atacado por um poderoso exército muçulmano que, com uma grande superioridade militar, não deu aos defensores qualquer possibilidade de sobrevivência. E estes, denotando um desespero imenso, tomaram a decisão de degolar todos os Cristãos que ali habitavam, inclusivamente os seus familiares, numa tentativa de evitar que os mesmos fossem literalmente chacinados e sodomizados pelos muçulmanos. Mas, com a força redobrada pelo misterioso martírio, e também possivelmente porque já nada tinham a perder, acabaram por ser eles próprios a atacar os muçulmanos e o seu ensejo foi tal que surpreendentemente ganharam a peleja e desbarataram os invasores. E quando regressaram da batalha, terão sido eles próprios surpreendidos com a recepção que lhes foi feita pelos compatriotas mortos que, mercê de um milagre divino, terão sido libertados dos esteios da morte e ressuscitado para agradecer ao contingente…
 
Independentemente da veracidade da lenda, em linha com muitas outras que corporizam de forma quase mágica o nascimento de Portugal, o certo é que o Castelo de Montemor-o-Velho e a sua velha capela, depressa se tornaram num eixo estruturante e fundamental para a afirmação da reconquista Cristã, tendo sido palco, ao longo das décadas seguintes, de grande parte dos mais importantes episódios da História Nacional.
 
Terá sido aqui, no dealbar de 1355, que Dom Afonso IV se reuniu com os seus conselheiros e decidiu a morte de Inês de Castro, num episódio que manchou com o sangue da pobre mulher a longa História deste local.
 
 
 
 
E terá sido também aqui que, já no Século XIX, as tropas francesas se aquartelaram aquando das invasões napoleónicas, que com a derrota sofrida infligiram importantes perdas à localidade e ao seu património histórico-cultural, acentuando de forma muito evidente a perda da sua importância estratégica e encetando um período de declínio que se arrastou durante muitos anos.
 
Independentemente de tudo isso, e até de algum desleixo que Montemor-o-Velho conheceu depois da extinção das Ordens Religiosas, cada cantos e recanto desta localidade denota o fulgor da sua História. E as pedras das suas paredes, muitas delas para ali transportadas há mais do que um milénio, carregam consigo as memórias fortes de episódios que são basilares para a compreensão do que é Portugal e da importância enorme que a Identidade Nacional tem para o futuro de todos os Portugueses.
 
 
 
A sua linha de afirmação religiosa (não é possível esquecer que este castelo foi propriedade essencial no domínio Templário do centro de Portugal) surge aqui de forma quase inusitada nos interstícios das suas lendas e histórias. E a Senhora da Assunção que ali se venera, num apelo inclemente às agruras da vida em antagonismo à plenitude do Céu, representa Ela própria um caminho de ascenção que este espaço soube fornecer.
 
Assumido Altar na triangulação que a reconquista impôs entre Coimbra, Lisboa e Santarém, é aqui que se centram as decisões estrategicamente essenciais para a afirmação de Portugal. E a partir deste espaço, bem implantado na companhia das águas cálidas do Mondego, se organizam quase todas as actividades que vão permitir à Cristandade a continuidade do esforço de reconquista e, em última instância, a actual configuração de Portugal.
 
 
 
 
Conhecer Montemor-o-Velho, o seu ancestral castelo e a Igreja de Santa Maria da Alcáçova é, por isso, essencial para quem pretender conhecer – e compreender – Portugal. Visita obrigatória.
 

 

Castelo Rodrigo – Memórias Urbanas da Nossa História

João Aníbal Henriques, 06.11.19

 

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
 
Beira Alta rima com pedra. Os aglomerados gigantescos de granito que cobrem as encostas das serras e que dão forma às ruas, aos monumentos e às casas, corporizando um cenário virtualmente dantesco e prenhe de beleza, no qual as forças telúricas se pressentem em cada detalhe, são aqui causa e consequência da própria história. E se os vestígios da acção do homem conspiram entre si para ganhar o ensejo da eternidade, as eras e os tempos impõem-se como causa maior de um destino que o vento carrega consigo e nos deixa impunes perante a nossa natural ineficiência. É isto que acontece em Castelo Rodrigo, onde em cada recanto da calçada ainda ecoam os passos dos nossos avós.
 
 
Castelo Rodrigo é uma povoação mais antiga do que a própria História. Quando, no Século XII, se formava o Portugal Moderno, já esta localidade expunha milhares de anos de História, num exercício cíclico em que a passagem dos séculos e das eras se perpectuava no tempo.
 
As suas origens, muito provavelmente contemporâneas do próprio surgimento do Homem na Terra, estão atestadas documentalmente a partir do período Paleolítico, uma vez que nas suas imediações, provavelmente aproveitando as características morfológicas do espaço, existem diversos vestígios de pinturas rupestres datadas dessa época.
 
 
 
 
Composta por sociedades de caça-recolecção, nas quais o território era mero cenário no qual se desenvolvia tudo aquilo que era necessário fazer para garantir a sobrevivência, a zona onde actualmente se localiza Castelo Rodrigo dispunha de meios únicos em termos de fauna e flora para sustentar de forma coerente e suficiente os pequenos grupos humanos que então existiam. E eles, materializando em pedra e nos demais materiais que lhes eram propiciados pela natureza as mais profundas essências dos seus sonhos, não se coibiram de transpor para a eternidade os posicionamentos fortes que já então tinham e a força básica dos seus pensamentos.
 
Daí por diante, à medida em que se aperfeiçoavam as técnicas e em que o acumular da experiência impunha novos destinos ao próprio destino, o caminho fez-se através do aprofundar desta linear relação de dependência entre o homem e o espaço. E nesta altura, com a bitola paulatina da sobrevivência sempre presente, surgem as primeiras necessidades de adaptação da natureza para responder melhor às cada vez maiores necessidades específicas que as comunidades iam apresentando.
 
 
 
A linha de horizonte de Castelo Rodrigo vive por inteiro, provavelmente como mais nenhuma em Portugal, os altos e baixos da sua longuíssima História. E o recorte ambíguo da sua forte muralha, num plano de continuidade que nos transporta ao longo da sinuosidade dos velhos arruamentos até ao espaço do castelo, surge pontilhada pelas cores das casas, dos telhados e das cantarias estruturantes dos postigos e janelas.
 
A mistura de estilos, a profusão de cores e mesmo a imensa panóplia de características díspares que caracterizam a população fica desta forma a dever-se por um lado à longuíssima linha de tempo que acompanha a localidade e a sua História e, por outro, ao facto de a mesma ter sido construída e reconstruída em registos civilizacionais completamente diferente entre si.
 
 
 
 
Depois dos povoamentos ancestrais, dos quais nos chegaram os sinais artísticos deixados pelos nossos pré-históricos avoengos, estiveram naquela que é agora a localidade de Castelo Rodrigo os Túrdulos e os Romanos, antes de a mesma ter sido bastião da urbanidade muçulmana que antecedeu de forma imediata a recristianização nos primórdios da medievalidade Ibérica.
 
Nessa época, mercê das lutas de conquista e de reconquista, assistimos a um declínio enorme da antiga pujança de Castelo Rodrigo, visível na maior precariedade e na insegurança que resultava da sua estratégica situação no nóvel País acabado de nascer, condicionando assim a sensação de longevidade e de bem estar que são necessários a quem corajosamente investe os seus meios na construção e na reconstrução dos seus alojamentos.
 
Mercê da sua localização em plena rota da peregrinação Ibérica a Santiago de Compostela, conheceu novo alento a partir do renascimento com o reforço da sua oferta religiosa que, como é natural, significou um aumento da pujança económica do sítio, o enriquecimento eos seus principais habitantes e novo reforço das estruturas construídas então. É esse fenómeno que explica grande parte das estruturas renascentistas que por ali ainda se encontram, nomeadamente as muitas janelas extraordinárias que ostentam em si a magnificência de um País ele próprio pujante e muito empenhado em alargar as fronteiras do Mundo de então.
 
 
 
 
A Igreja Matriz de Castelo Rodrigo, construída no Século XIII, foi dedicada a Nossa Senhora de Rocamador, em linha com a sua entrega a uma Ordem de Frades Hospitalários que se dedicavam a ajudar os peregrinos que ali passavam em direcção a Compostela.
 
Muito interessante, até porque reforça a conflituosa identidade de castelo Rodrigo no seio do seu papel estruturante na definição da própria História de Portugal, é o antigo brasão da localidade com o seu escudo invertido e a inusitada disposição dos vários elementos que lhe dão forma. E a explicação, resultante de uma decisão Real tomada por Dom João I aquando da sua aclamação como Rei de Portugal, deriva do apoio que a povoação e os seus habitantes deram a Dona Beatriz, herdeira legítima da Coroa mas casada com o Rei de Castela, que definiu a grande crise dinástica de 1383-1385 e determinou o início da nova Dinastia de Aviz ao poder. Por castigo Real, as armas de Portugal eram ali ostentadas de pernas para o ar!
 
 
 
 
Castelo Rodrigo, depois da desgraça política que lhe aconteceu, instada também pelo declínio natural que toda a região conheceu em época mais recente, acabou definitivamente por perder a importância que sempre teve e viu-se desagrada em termos municipais com a construção de Figueira de Castelo Rodrigo uns quilómetros ao lado.
 
Ficou a pujança de um sítio único. Ficou a sua beleza sem igual… e a harmonia que dela emana como cadinho especial e único de toda a excelência que traduz a Identidade Nacional. A visita é obrigatória.
 

 

A Igreja de Nossa Senhora da Graça em Évora

João Aníbal Henriques, 20.10.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
 
Os “Meninos da Graça” como é conhecida em Évora a Igreja Renascentista de Nossa Senhora da Graça, são míticas figuras Atlantes. E, cumprindo o desígnio maior de zelar pela memória de Portugal, estão ali na qualidade de guardiões das quatro partes do Mundo descobertas pelos Portugueses. Todo o templo, resquício inesperado do substracto místico e mítico de Portugal, transparece em lendas e em mistério, rendendo homenagem maior aos feitos enormes que noutras eras e noutros tempos caracterizaram este País tão especial…
 
 
Considerada por muitos como o mais antigo templo renascentista do Alentejo, a Igreja de Nossa Senhora da Graça, situada no coração da egrégia cidade de Évora, é um dos mais interessantes monumentos de Portugal.
 
Integrando o antigo Convento dos Frades Eremitas Calçados de Santo Agostinho, a igreja que agora conhecemos foi construída depois da instalação da Ordem em Portugal, no ano de 1511, com traço de Miguel de Arruda e esculturas de Nicolau de Chanterene.  Terá vindo ocupar o lugar de um templo de menores dimensões e de pouca exigência arquitectónica que os frades construíram naquele lugar logo depois da sua chegada a Évora, sendo provavelmente sido na década de 1520 que se iniciaram as obras que lhe conferem o aspecto actual.
 
 
 
 
Integrando de forma sublime todos os detalhes que definem o período renascentista em Portugal, a Igreja da Graça leva quase ao extremo a sua inquietante demanda pelos símbolos maiores da nacionalidade, apelando de forma directa ao alicerce raramente assumido do inconsciente colectivo de Portugal. A temática marítima, em voga na época em que a igreja foi edificada, cruza-se com as lendas maiores do Globo Terrestre, espécie de brinquedo temático que se consagra por inteiro a Portugal, como se o Universo todo conspirasse de uma forma global para canalizar para este recanto encantado os destinos maiores da humanidade em geral. Resultam daí as escapadelas ao ideário Atlante, numa sede quase mística do desconhecido e do inexplorado, um pouco em linha com a mítica demanda do Santo Graal e, em Portugal, com a espera eterna pelo Rei Desejado.
 
Este caminho, feito nas sombras visíveis de uma sociedade ainda maioritariamente dependente dos equilíbrios e das certezas medievais, assume especial relevo se nos reportarmos ao Alentejo de então. A região, marcada de forma telúrica por uma dependência extrema relativamente às agruras da natureza, sustenta o seu edifício simbólico no tronco maior que dá relevo à inovação da Senhora da Graça, ou seja, àquela que contra tudo e contra todos, se materializa na miraculosa capacidade de tudo fazer.
 
 
 
 
A Atlântida, continente mítico elevada de forma eterna à plenitude maior do saber e da sabedoria, consubstancia-se na Igreja da Graça através de toda a simbologia que dá forma ao edifício. Mas também, porque o Céu e a Terra são ambos necessários para a compreensão integral de Deus, nas práticas seguidas e cumpridas de forma sentida pelos frades que ocuparam este convento durante muitas gerações. É a eternidade, composta pela mistura integral entre o finito e o infinito, que nos surpreende quando nos deparamos com a fachada granítica e imponente desta igreja. Uma eternidade que é sustentada pelo conhecimento superior e pela sabedoria daqueles que regressaram de um lugar diferente. O ideal celeste, condicionado pelas necessidades próprias da vida terrena, resulta aqui numa amálgama de símbolos que se interligam num plano de consciência que tem necessariamente de estar alterada para ser verdadeiramente entendida e compreendida.
 
 
 
 
O ímpeto cenográfico da Igreja da Graça, de carácter fortemente impactante na pujante vida cultural eborense da época renascentista, dá corpo ao reforço deste movimento arquitectónico e artístico em Portugal. Na sua evolução para o maneirismo, o templo congrega o carácter humanista profundo que enforma a acção dos seus mecenas originais, El-Rei Dom João III e o seu primo o Bispo Dom Afonso de Portugal.  São eles, mercê da formação que tiveram no contexto da Europa em que viveram, que canalizam para este espaço de Évora os meios que permitem a construção de um tão vetusto templo. E com esse acto, aparentemente singular, dão um contributo extraordinário para a viragem cultural que definirá Portugal ao longo dos séculos seguintes.
 
A importância da Igreja da Graça é, por isso, muito superior ao seu valor patrimonial. Ela é o testemunho mais evidente da forma como Portugal, assente num conjunto de valores espirituais profundamente difundidos por todo o território, foi capaz que os plasmar na sua realidade física, social e política e, dessa maneira, concretizar o sonho imenso dos descobrimentos. Atesta, numa linha de continuidade que nos carrega até à actualidade, que o espírito transcende de facto a matéria, tornando possíveis os milagres e enfatizando que as fronteiras são pouco mais do que meros obstáculos que se interpõem durante a vida de cada um.
 
 
 
 
Única na sua formulação física e patrimonial, mas também na mensagem que carrega, a Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Évora, é pilar axial essencial para compreender a Portugalidade.

 

A Senhora da Conceição em Piódão

João Aníbal Henriques, 19.10.19

 

 
 
por João Aníbal Henriques
 
Vive-se de contrastes em Piódão. O azul do céu, reflectindo de forma insana o verde das escarpas da serra, abre caminho para o negro do xisto, em contraste profundo com o branco e o azul celestial da Igreja Matriz. É terra de todos e de ninguém, alcandorada nas lembranças rudes da Serra da Estrela e nos sonhos inexpressivos das curvas e contra-curvas desérticas que temos de atravessar para chegar até ela. Mas impõe-se à vista e aos sentidos, quando sob a égide maior da Senhora que Concebe, se abrem as janelas da Alma para um transbordar imenso do suor de Portugal. Está prenhe de Portugal. Está plenamente cheia do contraste enorme que dá forma à Nação e que à sua volta congrega a vontade maior de todos os portugueses. Uma preciosidade!
 
Miguel Torga, citado numa das pedras lavradas que se encontram à entrada desta Aldeia Histórica de Portugal, descreveu o Piódão como sendo o “ovo primordial de Portugal”. Ali, segundo o próprio, reencontrou a essência maior de uma País que espartilha desde há quase 900 anos uma gigantesca Nação. O Portugal do Piódão não é aquele que vem nos livros e nos enche as horas intermináveis das lições nas escolas. É um Portugal suado e vivido, assente na interpretação da natureza e na fusão quase perfeita entre a vontade de Deus, expressa na força física que a envolve, e a do Homem, traduzida no azul quase grotesco que lhe acentua as formas.
 
 
 
 
As suas origens, perdidas no meio das imensas nascentes de águas que fertilizam aqueles socalcos, fundam-se directamente na pujança física do território em que se insere. As primeiras comunidades humanas que ali se instalaram, algures nos idos longínquos do Neolítico mais remoto, interpretaram o carácter úbere daquelas terras e nele alicerçaram a sua vida e a sua sobrevivência numa rotina cíclica de interdependência sadia que perdurou ao longo de milhares de anos e de centenas de sucessivas gerações.
 
É daí que vem, muito provavelmente, a ligação mítica e mística aos mais ancestrais arquétipos sociais e religiosos que mais tarde hão-de consolidar a própria Nacionalidade, eivados da certeza (mais do que unicamente dos laivos periclitantes da Fé) de que a Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, era ali a força palpável e viva que determinava a própria existência.
 
 
 
 
Em termos decorativos, a formulação primordial de Piódão surge da confrontação aos opostos. O preto do xisto, determinante por resultar do aproveitamento natural e consistente dos recursos existentes, aparece aos nossos olhos sublinhado pelo azul cobáltico que delimita as portas e janelas, como se se tratasse de uma quase humanização do espaço, das coisas e das casas que ali foram sendo construídas. Mas o contrates maior, sobressaindo em harmonia plena da paisagem de conjunto do povoado, aparece em linha com a fachada inesperada e magnânima da sua Igreja Matriz dedicada precisamente a Nossa Senhora da Conceição.
 
Sendo recente, porque o actual templo que detém esta configuração somente desde o Século XIX, quando o Cónego Manuel Fernandes Nogueira ali instalou o seu colégio de preparação para a formação dos seminaristas e reformatou a velha igreja ao sabor de um estilo neo-barroco que interpretou o sentir da população e o traduziu no monumento pujante de impacto que hoje conhecemos, a Igreja Matriz de Piódão carrega consigo dois segredos que ajudam a contextualizar e a perceber a própria povoação. Em primeiro lugar, sabe-se que foi o estado de ruína eminente em que a igreja se encontrava que determinou a intervenção do clérigo já mencionado que, segundo reza a lenda, terá recolhido junto dos seus conterrâneos uma quantia insuspeita de dinheiro em volume suficiente para aquela imensa construção. Por isso, no mesmo lugar e provavelmente com contornos substancialmente diferentes, terá existido outro templo cuja origem está situada em pleno Século XVII.
 
Mas, tendo a mesmo orago, uma vez que existe ainda hoje uma imagem de Nossa Senhora da Conceição datada do Século XVI, ela própria reinterpretava realidade mais antiga, como se a força da Fé dos que ali habitavam fosse crescendo ao ritmo da passagem paulatina das gerações que se iam sucedendo…
 
 
 
De qualquer maneira, os ciclos de construção e de reconstrução do templo, mantendo a devoção original à Senhora que Concebe, reforçam a convicção de que o culto que lhe dá forma se centra na própria ancestralidade da ocupação do espaço, consolidado a partir de um movimento de cristianização que consolida os saberes e que denota um reforço permanente e sucessivo das certezas primordiais que caracterizam a própria comunidade. A Senhora da Conceição, na sua origem assente na imagem do Crescente que tem aos pés, carrega consigo a significância maior de uma tradição milenar. Mais do que os dois mil anos de História do Cristianismo, esta é um alicerce simbólico profundíssimo que reforça a certeza de que a natureza e os homens, quase sempre em uníssono, são capazes de conjugar as suas existências num plano de eternidade onde o sentido se perde no que somos, no que fazemos, no que dizemos e no que pensamos.
 
Nossa Senhora da Conceição, orago maior de um Piódão que não deixa indiferente ninguém que o visite, representa a reconfortante certeza de que os ciclos são eternos e que a vida, que o peso do corpo físico nos obriga a carregar durante um período muito curto de tempo, é afinal um mero interregno num caminho sinuoso mas profícuo de eternidade!
 
 
 
 
Visitar o Piódão e conhecer a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição é, assim, o mesmo que mergulhar de forma profunda na Alma de Portugal. E o ovo primordial que Torga descreve, um verdadeiro recomeço para todos aqueles que ousem perder-se por completo na amálgama de emoções que este espaço desperta.
 
Vale a pena. Mesmo!